“Black Mystery School Pianists”: escritos de Mr. Shipp


LIVROs
O pianista Matthew Shipp lança livro que reúne textos seus escritos em diferentes tempos e contextos... 



Por Fabricio Vieira

Matthew Shipp é um dos mais significativos artistas do jazz contemporâneo. Sua discografia – que deve ir pelos 80 títulos apenas como líder/colíder – representa um dos capítulos mais excitantes e inventivos de nosso tempo. Tivemos o prazer de vê-lo de perto, tocando no Brasil, em apresentação solista (encanto puro!) na noite de 19 de agosto de 2016, no Teatro do Sesc Pompeia (SP). Quem esteve lá, sabe o quanto a noite foi única. Para os que já se perderam na riqueza da música de Mr. Shipp, vai ler com muito interesse seus escritos que acabam de ser editados. Black Mystery School Pianists and Other Writings (Autonomedia, 94 págs.) traz 22 variados textos, de crônicas e ensaios a poemas em prosa e notas de turnês, originados em diversos contextos e tempos. Tematicamente, vemos o autor abordar memórias (“Me and ’80s New York”), paixões (“Boxing and Jazz” – ele diz: “Like free jazz can be boxing is direct, visceral.”), celebrar músicos amigos (“Saying Goodbye To Tenor Colossus David S. Ware”, “Why Roscoe Mitchell Is Important”), em uma deliciosa prosa que nos faz saltar de um texto a outro sem pausas. O livro traz introdução, reveladora e íntima, da artista Yuko Otomo, que, junto com seu falecido marido, o poeta Steve Dalachinsky, foi muito próxima de Shipp desde que ele chegou em Nova York, em meados dos anos 80.

De um modo geral, os textos aqui reunidos são breves (alguns nem enchem meia página), mas de sensível toque poético. O ensaio que dá título ao livro (originalmente publicado na New Music USA, em dezembro de 2020) ocupa um lugar central nos escritos de Shipp. “I have come to see a subgroup of jazz pianism that has influenced me as something I call the Black Mystery School of Pianists”, diz ele neste ensaio, no qual aborda seu panteão pianístico. O pai espiritual desta escola é Thelonious Monk. “Of course being a Black Mystery School pianist does not necessary equal avant-garde”, diz, apontando os outros nomes selecionados por ele: Herbie Nichols, Mal Waldron, Randy Weston, Cecil Taylor, Andrew Hill, Horace Tapscott, Hasaan Ibn Ali e Sun Ra”, um desfile de artistas iconoclastas que, de diferentes formas, revolucionaram a arte. É um muito instigante artigo que ajuda a compreender melhor a música de Shipp, por que caminhos se sedimentou sua tão particular visão estética e linguagem artística.

I have a very specific understanding of the nature of my own talents as an improvisor. I carry within my head a complete spaceship piano. When I play the piano, I become one with this spaceship and I can project myself to a realm of heaven which I have been in­structed since I was a kid by an angel there who has taught me a com­plete system of mathematics – a system that is the premise for the musical language that I articulate on the piano”, diz em “On The Process of Improvisation”, um interessante texto reflexivo sobre os mistérios da improvisação. 

O livro fecha com “Zero Lecture”. Este texto – sua leitura, na verdade – apareceu como CD bônus em “Zero”, álbum para piano solo editado em 2018. O que ouvimos no CD é a voz de Shipp, por cerca de 1 hora, em uma leitura ao vivo realizada em 23 de julho de 2017 no clube novaiorquino The Stone. Trata-se de uma ampla reflexão sobre arte, linguagem, jazz, filosofia, sobre ele mesmo. Poder agora ter o texto em mãos e colocar o CD para rodar, ouvindo a declamação de Shipp, é um encerramento perfeito para o livro, um fechamento a essa aproximação a suas ideias e palavra poética, uma chance de aprofundar o contato com sua fina arte. 

When I talk about zero, I am talking about my relationship to the void. (...) Well, I like the void. I like Lao Tzu. Voidness is emptiness. Emptiness is fullness. Improvi­sation, to me, is voidness.”   


 

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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez Mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)