O pianista de NY Matthew Shipp se apresentou pela primeira
vez no Brasil na noite de sexta-feira e mostrou o porquê de sua música ser um dos
momentos maiores da Arte de hoje.
Por Fabricio Vieira
Matthew Shipp adentrou o palco em passos ligeiros. Uma breve
pausa, um cumprimento rápido e, sem perder tempo com palavras, iniciou a apresentação
única que fez no festival Jazz na Fábrica, na noite de sexta-feira em um Teatro
do Sesc Pompeia que, se não plenamente ocupado, contou com um grande público. O
que se viu dali em diante foi um pouco do que de mais significativo tem sido
criado no piano contemporâneo.
A experiência oferecida ao público pelo pianista de Nova
York se estendeu por uma hora e cinco minutos, mas poderia ter sido apenas 30
minutos ou talvez duas horas: esse é o tipo de concerto no qual a
temporalidade ganha outra dimensão, em que, ininterruptamente, vemos o artista
tecer sua obra pelo tempo que for necessário, nada a mais ou a menos: a
apresentação dura o tempo em que se mantém a conexão entre o instrumentista e as
energias cósmicas que capta e transforma em música. “Eu sou um pianista cósmico”,
diz Shipp. “Tudo é vibração. Eu olho para qualquer criação do universo como
ondas se unindo, e é o que tento fazer na música, que seja um canal aberto para
as ondas cósmicas, tento trazê-las para o piano.”
Nesse processo, composições próprias, standards e
improvisação livre se juntam para formar um todo; nessa noite, uma peça de
exata 1 hora, que concentrou o núcleo do concerto (houve ainda um pequeno bis),
sendo apresentada como um fluxo contínuo de ideias e expressões que se
desenvolvem sequencialmente e de forma imbricada: nada ali é supérfluo ou pode
ser extraído; sem uma daquelas peças, o todo perderia sua unidade. Infelizmente
pudemos ver apenas um concerto de Shipp: uma outra apresentação traria soluções
diversas, com escolhas e combinações outras, compondo um distinto (apesar de
pertencer à mesma linguagem) universo expressivo, uma outra obra, em suma: cada
show se estrutura como uma peça única em que, mesmo que certos temas retornem,
tal acontece em um diversificado contexto criacional. É como se o pianista nos
conduzisse por uma estrada que conhecemos vagamente, em que a surpresa nos
espreita de tempos em tempos; mesmo quando nos sentimos confortáveis pelo
reconhecimento de um tema dedilhado, logo somos conduzidos a experiências
novas, engolfados pela improvisação e a imaginação sem limites do pianista.
Esse esquema atual difere de sua postura de meados da década
de 1990, quando começou a gravar e se apresentar em formato solista; dentro de
uma linhagem mais claramente ligada ao universo tayloriano, a improvisação
livre era nuclear naquele tempo, como atestam registros como o pioneiro “Before
the World”. Já o processo que vimos, armado por meio de composição própria–standard–improvisação livre, tem marcado
seus últimos trabalhos de piano solo, como “Creation out of Nothing” e “I’ve
been to many Places”.
Infelizmente nem todos que foram ao Teatro do Sesc na noite
de sexta-feira pareciam saber o que esperar, o que acabou se convertendo em pessoas
deixando a sala antes do término do concerto, provavelmente desconectadas da beleza
única que emanava do palco.
Quem conhece as composições de Shipp teve a alegria de ouvir
algumas delas ali, ao vivo. Foi arrepiante se deparar logo com a intensa “Wholetone”,
isso com menos de 15 minutos de concerto. Para quem não conhecia as peças de
Shipp, houve talvez o prazer de identificar algum standard ecoando ora ou outra (um
senhor na plateia, que se dizia pianista, não se conteve e cantarolou um tema
que reconheceu, sendo logo repreendido por quem estava próximo dele). De
qualquer forma, o surgimento de um tema próprio ou clássico sempre ocorre
dentre desse contexto criacional de Shipp, sendo reinterpretado por sua
linguagem particular, de forma a gestar um conjunto coeso e perfeitamente
equilibrado. Interessante notar que Shipp saiu de cena rapidamente assim
que encerrou a apresentação (que durou exata 1 hora) para retornar pouquíssimo depois (segundos?) para o bis, como se não pudesse deixar o fluxo
comunicativo que estabeleceu se romper. Difícil afirmar que o melhor ficou
para os últimos 15 minutos, mas a sequência final ofertada foi excepcional: de
uma intensa improvisação se abriu o standard “Yesterdays”, que não tardou em desaguar
na arrebatadora “Patmos”, com seu tema mínimo repetitivo que inebria os sentidos;
breve respiro e o bis, de cinco minutos, aberto com nada menos que “Gamma
Ray”, outra de suas composições maiores extraída do álbum “One”.
Se podemos dizer que faltou algo à noite, faltou “Module”, a
mais encantatória e embriagante peça que Shipp já compôs. Mas talvez o tema não
estivesse circulando pelas vibrações do teatro naquela noite, pelas ondas captadas
durante o transe criacional de Shipp. Essa fica guardada para uma próxima
visita do pianista, que esperamos não tarde tanto...
*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado na área
literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi
ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre
literatura e jazz para o Valor Econômico. Também colabora com o site português Jazz.pt.
É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de
Roscoe Mitchell (Selo Sesc), e “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo
Records)