FREE JAZZ: Documentando a cena (II)


FILMEs
 Trazemos aqui diferentes documentários que abordam a cena free jazzística, filmes realizados em diversas épocas que registram e ajudam a preservar a memória  dessa música...  

 



Por Fabricio Vieira

Se o free jazz foi praticamente ignorado no famoso documentário Jazz, de Ken Burns, outros diretores trataram de retratar a face mais radical do gênero. Diferentes registros têm ajudado a preservar a memória e a história do free jazz (e cercanias), formando já um painel relativamente extenso e abrangente desse universo sonoro. Fizemos um apanhado de diferentes documentários que, nas últimas décadas, investigaram o mundo da free music. São filmes realizados em diversos formatos e países, alguns deles editados em DVD, outros que circularam apenas por festivais; sempre que possível, disponibilizamos um link para assistir. Aqui selecionamos apenas documentários centrados na própria cena free, em algum recorte do gênero ou em grupos/coletivos. Os filmes de perfil biográfico, que focam exclusivamente a história de um músico, foram apresentados na Parte I desse especial...

 

*IMAGINE THE SOUND (1981)

Dir.: Ron Mann

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Documentário pioneiro no registro do universo do free jazz, Imagine the Sound foca sua câmera em quatro destacadas figuras do gênero: Cecil Taylor, Archie Shepp, Paul Bley e Bill Dixon. Entre entrevistas e apresentações, o filme exibe um pouco da arte desses pioneiros – protagonistas do ápice do free jazz em meados dos anos 1960 – e ajuda a construir uma narrativa muito pouco documentada em vídeo até aquele momento. Os quatro músicos foram convidados a criar novas peças para o filme; Taylor, por exemplo, apresenta uma de suas intensas criações solistas, além de aparecer recitando seus intrigantes poemas. Após longo período fora de catálogo, foi reeditado em DVD em 2007.

 

*RISING TONES CROSS (1985)

Dir.: Ebba Jahn

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O pano de fundo deste filme é o Sound Unity Festival – precursor do icônico Vision Festival, organizado por William Parker e Patricia Nicholson –, realizado em Nova York em 1984, que reuniu grandes nomes do free europeu e dos EUA (Peter Brotzmann, Rashied Ali, Jemeel Moondoc, Don Cherry, Irène Schweizer, Dennis Charles, Marilyn Crispell, Charles Tyler, Roy Campbell Jr., David S. Ware, Frank Wright, Jeane Lee...). Mas quem polariza mesmo o documentário são duas figuras: o baixista alemão Peter Kowald (1944-2001) e o saxofonista norte-americano Charles Gayle (1939-2023). São eles que concentram as entrevistas e aparecem em ação juntos em diferentes contextos. Com Kowald e Gayle, o diretor Ebba Jahn demarca dois extremos: o músico europeu já reconhecido e respeitado no universo do free, que passava uma temporada nos EUA; e o saxofonista outsider, à margem dentro da própria marginalizada cena – Gayle, então com 45 anos, nunca tinha lançado um disco. Disponível em DVD.

 

*SUN RA: A JOYFUL NOISE (1980)

Dir.: Robert Mugge

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Há outros documentários sobre Sun Ra (1914-1993), como Mistery, Mr Ra ou Brother from Another Planet. Mas A Joyful Noise encontrou o tom perfeito para abordar a obra deste que foi um dos artistas mais vibrantes da segunda metade do século XX. O diretor Robert Mugge acompanhou durante dois anos Sun Ra e sua Arkestra, a partir de 1978, para fazer este documentário, que se estrutura baseado em imagens e depoimentos coletados nesse período. Partindo de Germantown (Filadélfia), onde ficava o QG da Sun Ra Arkestra à época, o filme traz também imagens de apresentações em Washington e Baltimore. Não se trata de um doc biográfico, mas de um retrato de Sun Ra e sua Arkestra, que tinha então uma de suas formações mais fortes, com John Gilmore, Marshall Allen, Danny Ray Thompson, Eloe Omoe e June Tyson (que abre os trabalhos cantando a clássica "Astro Black"). O filme inicia com Sun Ra em meio a artefatos egípicios no museu da Universidade da Pensilvânia, falando sobre sua arte e a importância do "poder criativo que vem do espaço sideral". Uma viagem estético-sonora pelo universo de Ra. Disponível em DVD.

 

*ART ENSEMBLE OF CHICAGO: GREAT BLACK MUSIC (1982)

Dir.: Bryan Izzard

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Este filme nasceu de uma proposta do canal de TV britânico Channel 4. A ideia era apresentar o Art Ensemble of Chicago ao público do Reino Unido. O que os produtores fizeram foi ir a Chicago, onde aconteceram as gravações em estúdio e com os músicos na sua cidade. No estúdio, eles fazem uma apresentação que, contando com o fato de estarem em casa, permitiu que levassem todo seu arsenal instrumental para o palco. Em um show em que a teatralidade foi explorada ao máximo, entregam algo memorável. Intercalado com a música estão entrevistas com os membros do AEC, que falam sobre a banda e explicam algumas das peças apresentadas. Documento riquíssimo para conhecer melhor o AEC.  

 

*NULL SONNE NO POINT (1997)

Dir.: Nicolas Humbert, Werner Penzel

Este é um outro registro que documenta o Art Ensemble of Chicago. O subtítulo do filme, Preparations for a Concert, sinaliza o que ele pretende nos ofertar: os diretores enfocam os músicos do AEC nos bastidores e ensaios para uma apresentação em Munique, em outubro de 1996, montando um delicado filme não linear e não narrativo. A Roscoe Mitchell, Famoudou Don Moye, Malachi Favors e Lester Bowie se une o músico alemão Hartmut Geerken – sentimos a falta de Joseph Jarman, que à época estava afastado do grupo, concentrado em seus estudos budistas. O que o filme captura, em imagens em sua maioria feitas a partir de planos fechados, detalhistas, é o clima por trás da música que esperamos que os artistas nos ofereçam. Editado em DVD. 

 

*ON THE EDGE: Improvisation in Music (1992)

Dir.: Jeremy Marr

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Escrito e narrado pelo guitarrista britânico Derek Bailey, este documentário sobre improvisação foi produzido para a TV britânica. Dividido em quatro partes (“Passing It On”, “Movements in Time”, “A Liberation Thing” e “Nothin’ Premeditated”) com cerca de 50 minutos cada, foi apresentado pelo Channel 4 no começo de 1992. Partindo do livro “Improvisation: Its Nature and Practice”, do próprio Bailey, o documentário aborda a improvisação em suas mais variadas formas, tanto na música ocidental quanto oriental. No longo panorama apresentado, podemos assistir em ação, tocando e expondo suas ideias, alguns dos expoentes do universo do free: Butch Morris, Steve Noble, George Lewis, Alex Ward, Douglas Ewart, John Zorn... Mas a viagem é bem mais ampla que o mundo do free; encontramos músicos das mais variadas origens e perspectivas lidando com a liberdade criacional e interpretativa, sem preconceitos, apenas música viva.

 

*INSIDE OUT IN THE OPEN (2001)

Dir.: Alan Roth

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Com o subtítulo An Expressionist Journey into the World Known as Free Jazz, o diretor Alan Routh não deixa dúvidas sobre sua intenção ao realizar este documentário. E para essa jornada no mundo do free jazz, ele convocou figuras destacadas dos tempos primeiros do gênero: Joseph Jarman, Alan Silva, Burton Greene, Baikida Carroll, Roswell Rud, Marion Brown e John Tchicai. Há também a participação de gerações posteriores no filme, como Matthew Shipp, Susie Ibarra e William Parker. Alternando depoimentos e passagens de concertos (a maioria captado nos anos 90), Inside Out in the Open busca falar do free jazz de ontem e de hoje, num panorama relativamente rápido (afinal, são cinco décadas de gênero para cerca de 60 minutos de filme), mas envolvente. Lançado em DVD e Blu-ray pelo selo ESP-Disk.

 

*NOISY PEOPLE (2007)

Dir.: Tim Perkis

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Interessante documentário que busca retratar a improvisação livre destacando nomes que não estão entre as estrelas do gênero, como é mais comum ocorrer nesse tipo de filme. Focado na Bay Area, em San Francisco, Tim Perkis destaca sete artistas locais que, apesar de já terem razoável trajetória artística, talvez sejam menos lembrados e reconhecidos, como os baixistas Damon Smith e George Cremasch, o trompetista Tom Djll e o saxofonista Dan Plonsey. Essa proposta de dar voz a figuras que costumam aparecer menos oferece um frescor extra ao documentário. Há algumas rápidas aparições ilustres, como a de Anthony Braxton – na parte dedicada a Plonsey, que já gravou com o mestre –, mas o foco está totalmente nos outros instrumentistas. Um filme sobre quem ajuda a fermentar a cena, mesmo que de forma mais discreta.

 

*AMPLIFIED GESTURE (2009)

Dir.: Phil Hopkins

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Seguindo a linha do que o subtítulo do documentário promete (“An Introduction to Free Improvisation: Practicioners and their Philosophy”), o diretor Phil Hopkins entrevistou nomes destacados da improvisação livre para compor esse painel. Preferindo se focar no que cada músico ouvido tinha a dizer – deixando de lado a manjada fórmula de mostrar partes de shows entre as entrevistas –, Hopkins apresenta uma variedade de perspectivas no fazer improvisativo. Passam por sua câmera algumas autoridades no assunto: Evan Parker, Eddie Prévost, Otomo Yoshihide, John Butcher, Keith Rowe, John Tilbury, dentre outros. Um documentário que nos ajuda a pensar o quanto a improvisação livre pode ser complexa: de gratuito, não há nada aqui.

 

*THE BREATH COURSES THROUGH US (2013)

Dir.: Alan Routh

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O The New York Art Quartet foi um grupo seminal do free jazz que reuniu entre 1964 e 65 o percussionista Milford Graves, o saxofonista John Tchicai e o trombonista Roswell Rudd – e alguns diferentes baixistas, como Reggie Workman e Lewis Worrell. A eles também se juntava às vezes o poeta e ativista Amiri Baraka. O documentário registra um encontro de comemoração dos 35 anos do New York Art Quartet, que culminou com uma apresentação em NY, em junho de 1999, registrada em disco. O concerto e um jantar na casa de Rudd, que reuniu Graves, Tchicai, Workman e Baraka, formam o núcleo do filme. Depoimentos dos músicos e trechos da apresentação vão se alternando para compor a narrativa.

 

*FREE THE JAZZ (2014)

Dir.: Czaban Gyorgy

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Este filme realizado na Hungria se estrutura de forma mais esquemática, intercalando entrevistas e trechos de shows. O diretor Czaban Gyorgy aproveitou a passagem de alguns dos nomes mais fortes da cena contemporânea pelo seu país (Matthew Shipp, Mats Gustafsson, Ken Vandermark, Paal Nilssen-Love, Joe McPhee...) para colher o material que utilizou no documentário. Peter Brötzmann é quem ganha destaque um pouco maior, abrindo e encerrando o filme. Interessante vê-lo falando o que pensa sobre o free e se colocando como “apenas um músico de jazz”. Em sua fala final, diz Brötzmann: “Penso que o conceito de free jazz teve sentido por um curto período nos anos 60... Usar o termo hoje pode gerar mal-entendido. Neste mundo, nada é free. E nas últimas décadas, desenvolvemos formas e estruturas nas quais a liberdade tem uma diferente pegada do que era feito nos anos 60”.

 

*TAKING THE DOG FOR A WALK (2014)

Dir.: Antoine Prum

Trailer

O diretor de Luxemburgo Antoine Prum, que anteriormente realizou “Sunny’s Time Now”, sobre o baterista Sunny Murray, apresenta neste seu documentário a cena free impro britânica. Para compor este painel, que fala desde os inícios da cena nos anos 60 até as manifestações atuais, Prum entrevistou figuras centrais do Reino Unido, como Phil Minton, John Edwards, Maggie Nichols, Eddie Prévost, John Russell, Roger Turner e Trevor Watts, além de recorrer a imagens de shows. Nesta jornada, Prum é auxiliado pelo saxofonista Tony Bevan e pelo comediante/diretor Stewart Lee, que conversam com os músicos e percorrem a cena. Editado em DVD duplo com extras e um CD bônus.

 

*FIRE MUSIC (2021)

Dir.: Tom Surgal

Trailer

Mais recente documentário a abordar a cena free jazzística, Fire Music: The Story of Free Jazz levou vários anos para ficar pronto. Em 2014, já com diferentes entrevistas realizadas, os produtores iniciaram uma campanha colaborativa para levantar recursos para finalizar o filme, que teria pré-estreia em 2018, mas edição final só em 2021. O documentário se arquiteta a partir de umas duas dúzias de entrevistas realizadas com músicos do meio – Gunter Hampel, Bobby Bradford, Burton Greene, Sonny Simmons, Oliver Lake, Noah Howard, Carla Bley, John Tchicai... – e imagens de shows e arquivos, mantendo o foco na cena de Nova York e destacando histórias do “período de ouro” do free jazz, na década de 1960, passando rapidamente pelos seus desdobramentos em Chicago e na Europa.

 


*THE BLACK ARTISTS’ GROUP OF ST. LOUIS: CREATION EQUALS MOVEMENT (2020)

Dir.: Bryan Dematteis

Black Artists’ Group (BAG) foi um fundamental coletivo que teve sua vida concentrada entre os anos de 1968 e 1972, sendo uma das forças vitais do free jazz fora de Nova York. Tendo criado sua história em St. Louis, o BAG ia além da música, tendo teatro, dança, poesia e artes plásticas como outros polos de grande relevância em sua vida criativa. Da parte musical saíram alguns dos maiores do free jazz. Esse importante documentário resgata essa história, com entrevistas e material raro de arquivo. Oliver Lake, Hamiet Bluiett, JD Parran, Charles Bobo Shaw e Julius Hemphill são alguns dos protagonistas do BAG que vemos falar sobre aquela experiência única. O filme tem sido exibido apenas em festivais. Quem sabe não chega por aqui em uma próxima edição do In-Edit...