FILMEs Trazemos
aqui diferentes documentários que abordam a cena free jazzística, filmes
realizados em diversas épocas que registram e ajudam a preservar a memória
dessa música...
Por Fabricio Vieira
Se o free jazz foi
praticamente ignorado no famoso documentário Jazz, de Ken Burns, outros
diretores trataram de retratar a face mais radical do gênero. Diferentes
registros têm ajudado a preservar a memória e a história do free jazz (e
cercanias), formando já um painel relativamente extenso e abrangente desse
universo sonoro. Fizemos um apanhado de diferentes documentários que, nas
últimas décadas, investigaram o mundo da free music. São filmes realizados em
diversos formatos e países, alguns deles editados em DVD, outros que circularam
apenas por festivais; sempre que possível, disponibilizamos um link para
assistir. Aqui selecionamos apenas documentários centrados na própria cena free,
em algum recorte do gênero ou em grupos/coletivos. Os filmes de perfil
biográfico, que focam exclusivamente a história de um músico, foram apresentados
na Parte I desse especial...
Documentário pioneiro no registro do universo do free
jazz, Imagine the Sound foca sua câmera em quatro destacadas figuras
do gênero: Cecil Taylor, Archie Shepp, Paul Bley e Bill Dixon. Entre
entrevistas e apresentações, o filme exibe um pouco da arte desses pioneiros –
protagonistas do ápice do free jazz em meados dos anos 1960 – e ajuda a
construir uma narrativa muito pouco documentada em vídeo até aquele momento. Os
quatro músicos foram convidados a criar novas peças para o filme; Taylor, por
exemplo, apresenta uma de suas intensas criações solistas, além de aparecer
recitando seus intrigantes poemas. Após longo período
fora de catálogo, foi reeditado em DVD em 2007.
O pano de fundo deste filme é o Sound Unity Festival –
precursor do icônico Vision Festival, organizado por William Parker e Patricia
Nicholson –, realizado em Nova York em 1984, que reuniu grandes nomes
do free europeu e dos EUA (Peter Brotzmann, Rashied Ali, Jemeel
Moondoc, Don Cherry, Irène Schweizer, Dennis Charles, Marilyn Crispell, Charles
Tyler, Roy Campbell Jr., David S. Ware, Frank Wright, Jeane Lee...). Mas quem
polariza mesmo o documentário são duas figuras: o baixista alemão Peter
Kowald (1944-2001) e o saxofonista norte-americano Charles Gayle (1939-2023). São eles que
concentram as entrevistas e aparecem em ação juntos em diferentes contextos.
Com Kowald e Gayle, o diretor Ebba Jahn demarca dois extremos: o músico europeu
já reconhecido e respeitado no universo do free, que passava uma temporada nos
EUA; e o saxofonista outsider, à margem dentro da
própria marginalizada cena – Gayle, então com 45 anos, nunca tinha lançado um
disco. Disponível em DVD.
Há outros documentários sobre Sun Ra (1914-1993), como Mistery, Mr Ra ou Brother from Another Planet. Mas A Joyful Noise encontrou o tom perfeito para abordar a obra
deste que foi um dos artistas mais vibrantes da segunda metade do século XX. O
diretor Robert Mugge acompanhou durante dois anos Sun Ra e sua Arkestra, a
partir de 1978, para fazer este documentário, que se estrutura baseado em
imagens e depoimentos coletados nesse período. Partindo de Germantown
(Filadélfia), onde ficava o QG da Sun Ra Arkestra à época, o filme traz também
imagens de apresentações em Washington e Baltimore. Não se trata de um doc
biográfico, mas de um retrato de Sun Ra e sua Arkestra, que tinha então uma de
suas formações mais fortes, com John Gilmore, Marshall Allen, Danny Ray
Thompson, Eloe Omoe e June Tyson (que abre os trabalhos cantando a clássica
"Astro Black"). O filme inicia com Sun Ra em meio a artefatos
egípicios no museu da Universidade da Pensilvânia, falando sobre sua arte e a
importância do "poder criativo que vem do espaço sideral". Uma viagem
estético-sonora pelo universo de Ra. Disponível em DVD.
*ART ENSEMBLE OF CHICAGO: GREAT BLACK MUSIC (1982)
Este filme nasceu de uma proposta do canal de TV britânico
Channel 4. A ideia era apresentar o Art Ensemble of Chicago ao público do Reino
Unido. O que os produtores fizeram foi ir a Chicago, onde aconteceram as
gravações em estúdio e com os músicos na sua cidade. No estúdio, eles fazem uma
apresentação que, contando com o fato de estarem em casa, permitiu que levassem
todo seu arsenal instrumental para o palco. Em um show em que a teatralidade
foi explorada ao máximo, entregam algo memorável. Intercalado com a música
estão entrevistas com os membros do AEC, que falam sobre a banda e explicam
algumas das peças apresentadas. Documento riquíssimo para conhecer melhor o
AEC.
*NULL SONNE NO
POINT (1997)
Dir.: Nicolas
Humbert, Werner Penzel
Este é um outro registro que documenta o Art Ensemble of
Chicago. O subtítulo do filme, Preparations for a Concert, sinaliza o que ele
pretende nos ofertar: os diretores enfocam os músicos do AEC nos bastidores e
ensaios para uma apresentação em Munique, em outubro de 1996, montando um
delicado filme não linear e não narrativo. A Roscoe Mitchell, Famoudou Don
Moye, Malachi Favors e Lester Bowie se une o músico alemão Hartmut
Geerken – sentimos a falta de Joseph Jarman, que à época estava afastado
do grupo, concentrado em seus estudos budistas. O que o filme captura, em
imagens em sua maioria feitas a partir de planos fechados, detalhistas, é o
clima por trás da música que esperamos que os artistas nos ofereçam. Editado em DVD.
Escrito e narrado pelo guitarrista britânico Derek
Bailey, este documentário sobre improvisação foi produzido para a TV britânica.
Dividido em quatro partes (“Passing It On”, “Movements in Time”, “A Liberation
Thing” e “Nothin’ Premeditated”) com cerca de 50 minutos cada, foi apresentado
pelo Channel 4 no começo de 1992. Partindo do livro “Improvisation: Its Nature
and Practice”, do próprio Bailey, o documentário aborda a improvisação em suas
mais variadas formas, tanto na música ocidental quanto oriental. No longo
panorama apresentado, podemos assistir em ação, tocando e expondo suas ideias,
alguns dos expoentes do universo do free: Butch Morris, Steve Noble, George
Lewis, Alex Ward, Douglas Ewart, John Zorn... Mas a viagem é bem mais ampla que
o mundo do free; encontramos músicos das mais variadas origens e perspectivas
lidando com a liberdade criacional e interpretativa, sem preconceitos, apenas
música viva.
Com o subtítulo An Expressionist Journey into the World
Known as Free Jazz, o diretor Alan Routh não deixa dúvidas sobre sua intenção
ao realizar este documentário. E para essa jornada no mundo do free jazz, ele
convocou figuras destacadas dos tempos primeiros do gênero: Joseph Jarman, Alan
Silva, Burton Greene, Baikida Carroll, Roswell Rud, Marion Brown e John Tchicai.
Há também a participação de gerações posteriores no filme, como Matthew Shipp,
Susie Ibarra e William Parker. Alternando depoimentos e passagens de concertos
(a maioria captado nos anos 90), Inside Out in the Open busca falar
do free jazz de ontem e de hoje, num panorama relativamente rápido (afinal, são
cinco décadas de gênero para cerca de 60 minutos de filme), mas envolvente. Lançado em DVD e Blu-ray pelo selo
ESP-Disk.
Interessante documentário que busca retratar a improvisação
livre destacando nomes que não estão entre as estrelas do gênero, como é mais
comum ocorrer nesse tipo de filme. Focado na Bay Area, em San Francisco, Tim
Perkis destaca sete artistas locais que, apesar de já terem razoável trajetória
artística, talvez sejam menos lembrados e reconhecidos, como os baixistas Damon
Smith e George Cremasch, o trompetista Tom Djll e o saxofonista Dan Plonsey.
Essa proposta de dar voz a figuras que costumam aparecer menos oferece um
frescor extra ao documentário. Há algumas rápidas aparições ilustres, como a de
Anthony Braxton – na parte dedicada a Plonsey, que já gravou com o mestre –,
mas o foco está totalmente nos outros instrumentistas. Um filme sobre quem
ajuda a fermentar a cena, mesmo que de forma mais discreta.
Seguindo a linha do que o subtítulo do documentário promete
(“An Introduction to Free Improvisation: Practicioners and their Philosophy”),
o diretor Phil Hopkins entrevistou nomes destacados da improvisação livre para
compor esse painel. Preferindo se focar no que cada músico ouvido tinha a dizer
– deixando de lado a manjada fórmula de mostrar partes de shows entre as
entrevistas –, Hopkins apresenta uma variedade de perspectivas no fazer
improvisativo. Passam por sua câmera algumas autoridades no assunto: Evan
Parker, Eddie Prévost, Otomo Yoshihide, John Butcher, Keith Rowe, John Tilbury,
dentre outros. Um documentário que nos ajuda a pensar o quanto a improvisação
livre pode ser complexa: de gratuito, não há nada aqui.
O The New York Art Quartet foi um grupo seminal do
free jazz que reuniu entre 1964 e 65 o percussionista Milford Graves, o
saxofonista John Tchicai e o trombonista Roswell Rudd – e alguns
diferentes baixistas, como Reggie Workman e Lewis Worrell. A eles também se
juntava às vezes o poeta e ativista Amiri Baraka. O documentário registra um
encontro de comemoração dos 35 anos do New York Art Quartet, que culminou com
uma apresentação em NY, em junho de 1999, registrada em disco. O concerto e um
jantar na casa de Rudd, que reuniu Graves, Tchicai, Workman e Baraka, formam o
núcleo do filme. Depoimentos dos músicos e trechos da apresentação vão se
alternando para compor a narrativa.
Este filme realizado na Hungria se estrutura de forma mais
esquemática, intercalando entrevistas e trechos de shows. O diretor Czaban
Gyorgy aproveitou a passagem de alguns dos nomes mais fortes da cena
contemporânea pelo seu país (Matthew Shipp, Mats Gustafsson, Ken Vandermark,
Paal Nilssen-Love, Joe McPhee...) para colher o material que utilizou no
documentário. Peter Brötzmann é quem ganha destaque um pouco maior, abrindo e
encerrando o filme. Interessante vê-lo falando o que pensa sobre o free e se colocando
como “apenas um músico de jazz”. Em sua fala final, diz Brötzmann: “Penso que o
conceito de free jazz teve sentido por um curto período nos anos 60... Usar o
termo hoje pode gerar mal-entendido. Neste mundo, nada é free. E nas últimas
décadas, desenvolvemos formas e estruturas nas quais a liberdade tem uma
diferente pegada do que era feito nos anos 60”.
O diretor de Luxemburgo Antoine Prum, que anteriormente
realizou “Sunny’s Time Now”, sobre o baterista Sunny Murray, apresenta neste
seu documentário a cena free impro britânica. Para compor este painel, que fala
desde os inícios da cena nos anos 60 até as manifestações atuais, Prum
entrevistou figuras centrais do Reino Unido, como Phil Minton, John Edwards,
Maggie Nichols, Eddie Prévost, John Russell, Roger Turner e Trevor Watts, além
de recorrer a imagens de shows. Nesta jornada, Prum é auxiliado pelo
saxofonista Tony Bevan e pelo comediante/diretor Stewart Lee, que conversam com
os músicos e percorrem a cena. Editado em DVD duplo com extras e um CD bônus.
Mais recente documentário a abordar a cena free
jazzística, Fire Music: The Story of Free Jazz levou vários anos para
ficar pronto. Em 2014, já com diferentes entrevistas realizadas, os produtores
iniciaram uma campanha colaborativa para levantar recursos para finalizar o
filme, que teria pré-estreia em 2018, mas edição final só em 2021. O
documentário se arquiteta a partir de umas duas dúzias de entrevistas
realizadas com músicos do meio – Gunter Hampel, Bobby Bradford, Burton Greene,
Sonny Simmons, Oliver Lake, Noah Howard, Carla Bley, John Tchicai... – e
imagens de shows e arquivos, mantendo o foco na cena de Nova York e destacando
histórias do “período de ouro” do free jazz, na década de 1960, passando rapidamente pelos seus desdobramentos em Chicago e na Europa.
*THE BLACK ARTISTS’ GROUP OF ST. LOUIS: CREATION EQUALS
MOVEMENT (2020)
Dir.: Bryan Dematteis
O Black Artists’
Group (BAG) foi um fundamental coletivo que teve sua vida concentrada
entre os anos de 1968 e 1972, sendo uma das forças vitais do free jazz fora de
Nova York. Tendo criado sua história em St. Louis, o BAG ia além da música, tendo
teatro, dança, poesia e artes plásticas como outros polos de grande relevância
em sua vida criativa. Da parte musical saíram alguns dos maiores do free jazz.
Esse importante documentário resgata essa história, com entrevistas e material
raro de arquivo. Oliver Lake, Hamiet Bluiett, JD Parran, Charles Bobo Shaw e
Julius Hemphill são alguns dos protagonistas do BAG que vemos falar sobre
aquela experiência única. O filme tem sido exibido apenas em festivais. Quem
sabe não chega por aqui em uma próxima edição do In-Edit...