LIVROs Obra fundamental de Amiri Baraka da década de 1960,
na qual ele aborda o free jazz nascente, finalmente ganha sua primeira versão no Brasil...
Por Fabricio Vieira
A bibliografia dedicada ao universo do free jazz cresceu consideravelmente
a partir dos anos 2000. Biografias essenciais como as de Art Ensemble of
Chicago, William Parker e Irène Schweizer apareceram na última década para
ampliar nossa compreensão de artistas basilares desse universo sonoro. Estudos
dedicados a períodos/momentos transformacionais chaves para o gênero também
chegaram às livrarias, a destacar “A Power Stronger Than Itself: The AACM and
American Experimental Music” (2008, de George E. Lewis) e “Loft Jazz:
Improvising New York in the 1970s” (2017, de Michael C. Heller). Infelizmente
não há nada disso disponível no Brasil. Mas, nesse deserto, surge uma primeira
luz: agora os brasileiros terão a oportunidade de ter acesso a um dos clássicos
da literatura free jazzística: Black Music.
Reunindo textos de Amiri Baraka (ou LeRoi Jones, como ainda
assinava até meados dos anos 60), Black Music: free jazz e consciência negra é
um essencial testemunho da primeira década do estilo, de um momento
sonoro-cultural revolucionário e único no universo jazzístico. Mais ainda: foi
escrito in loco, enquanto as coisas aconteciam em Nova York (algo que talvez
somente “As Serious As Your Life”, de Valerie Wilmer, editado em meados da
década de 1970, pode também nos oferecer). Black Music reúne ensaios, liner
notes, críticas e resenhas de discos escritos por Baraka entre os anos de 1959
e 1967. Publicado pela editora sobinfluencia, a edição tem prefácio da pesquisadora
Nathalia Grilo e tradução de André Capilé – vale destacar o trabalho cuidadoso
e bem elaborado do tradutor, com detalhadas notas que elucidam as escolhas
feitas nas passagens mais complicadas.
O livro não é dividido em partes, mas podemos destacar, em
suas diferentes origens, alguns agrupamentos para os textos – mesmo que todos
sejam atravessados e tecidos por uma linha discursiva comum. No período textual
abarcado no livro, se nos atentarmos às datas de cada escrito (que não estão organizados cronologicamente), vemos como Baraka vai se sedimentando como sólido crítico,
criando uma voz muito própria (necessária para expressar suas ideias
revolucionárias), deixando para trás termos como vanguarda e new thing, rotulações usadas pela
crítica branca para falar da música explosiva que surgia, chegando, assim, a seu conceito de New Black Music.
Os textos poderiam ser reunidos em blocos
imaginário-temáticos como: os que tratam de jazzistas/momentos que não fazem
parte propriamente do free jazz, mas que rondavam o entorno do mais criativo
feito então, como “Monk Atual”, “Um dia com Roy Haynes” e “Minton’s”. Há aqueles
dedicados a artistas que surgiam junto com o free jazz (Archie Shepp, Don
Cherry, Bobby Bradford, Dennis Charles, Sunny Murray...). Pilares como John Coltrane
e Cecil Taylor protagonizam mais de um texto. Tem ainda uma sequência de resenhas
trazidas de sua seminal coluna que chacoalhava a relativamente conservadora
Down Beat, a “Apple Cores”, que devem ter tido um impacto gigante entre os
leitores da incensada revista (que sempre carregou uma visão menos
revolucionária do fazer jazzístico).
E no bloco de ensaios de maior fôlego, ao lado de O Jazz e a Crítica Branca brilha “A Vanguarda do Jazz”. Datado de 1961, mostra toda a perspicácia de Baraka para ver o que estava acontecendo no jazz mais inventivo naquele momento. Além de falar sobre o que marcava essa nova sonoridade, ele apresenta uma lista de músicos que estavam na linha de frente da vanguarda que nascia. Parte deles sedimentaria as bases do free jazz; outros, não seguiriam nessa seara. Entre suas apostas dentre o que aparecia de mais avançado no jazz vemos, por exemplo, dois saxofonistas que fariam muito sucesso, mas seguindo caminhos diferentes dos do free: Wayne Shorter (1933-2023) e Oliver Nelson (1932-1975). Outro nome que aparece como uma voz que prometia fazer o free acontecer é o baixista Wilbur Ware, do qual muitos devem se lembrar tocando no grupo de Monk. Infelizmente Ware deixaria Nova York pouco depois, em 1963 (problemas com drogas fizeram de sua carreira algo errático no decorrer daquela década; ele morreria em 1979), deixando de estar no centro do que aconteceria no free nos anos seguintes.
“Aqui Fala Archie Shepp, o Novo Sax Tenor” (1965) e “Don
Cherry” (1963) são dois ensaios importantíssimos mais longos que traçam um
perfil (além de entrevistar) desses artistas em um período em que iam se
destacando. À época, Cherry havia deixado o quarteto de Coleman e tocado por
uma temporada com Sonny Rollins. Em 1963, Cherry ganhou como “rising star” no Critics
Poll da Down Beat. Baraka pondera, iluminando como eram (são) as coisas: “É claro que isso não o ajudará a conseguir
mais trabalho (...) Ganhar tal prêmio ajudaria Cherry a encontrar trabalho se
ele quisesse tocar como Miles Davis”. E segue: “Mas, infelizmente, tudo o que
Cherry tem pra oferecer é sua extraordinária inteligência musical que, pode
apostar, só presta pra morrer de fome na cena do jazz de Nova York”.
A chegada deste livro é um marco, sem dúvida. Não apenas
pela sua relevância para a disseminação do free jazz entre nós, mas também por
trazer a obra de Amiri Baraka ao país. Quase não traduzido ao nosso português
(encontramos mais em teses/trabalhos acadêmicos versões de sua poesia e
dramaturgia; comercialmente, em livros, a carência é gigante, encontramos apenas
perdida em algum sebo uma edição dos anos 1960 de “Blues People”, fora de
catálogo há muito), fica agora a expectativa de que a publicação de Black Music
tenha forte repercussão e retorno, estimulando e viabilizando a edição de
outras obras desse artista/pensador fundamental.
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Algumas considerações.
Como já dito, a tradução do livro foi muito bem realizada e
com esclarecedoras e extensas notas. Apenas alguns deslizes, possivelmente de
revisão, são perceptíveis na edição e poderiam, em uma futura reimpressão,
serem revistos (segue, então, a página e em destaque o trecho com algum visível
problema, seguido de comentário).
Pg. 135: “Altoist Lyons parece ter certeza...” Aqui a tradução
embolou no começo da frase. Afinal, o cara não chama Altoist Lyons... Deveria
ser algo assim: “O altista (ou sax-altista) Lyons parece ter certeza...”
Pg. 152: “...Marion Brown, que é um dos trompistas mais
empolgantes de Nova York hoje.”. Mas Brown não tocava trompa, era um saxofonista.
Provavelmente em inglês apareça “hornist”, literalmente “trompista”. Mas no
contexto jazzístico usa-se horn também de forma genérica, para se referir a
instrumentos de sopro. Na edição em espanhol do livro, lemos: “Marion Brown,
que es uno de los vientos más interesantes...”. Vientos funciona aqui como
sopros (em referência a quem toca um instrumento de sopro). Talvez um caminho
então fosse: “...Marion Brown, que é um dos sopros mais empolgantes de Nova
York hoje.”.
Pgs. 190/191: Por duas vezes, a clássica peça “Naima”, de
Coltrane, aparece grafada como “Niema”. Não sei se é um erro do texto original,
mas talvez merecesse uma nota explicativa ou mesmo um ajuste/correção.
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Um outro apêndice que o livro traz é uma seleção de discos
que ilustram sonoramente o universo tratado por Amiri Baraka em Black Music. Preparamos
então uma Playlist com duas horas de música especialmente selecionada dessa
lista...
*quem assina:
Fabricio
Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária.
Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda
correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como
Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e
literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns
“Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”,
de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e
Matthew Shipp (SMP Records)