Por Fabricio
Vieira
Era o dia 29 de
julho de 2012, domingo, céu aberto em tarde cinzenta em São Paulo. Apesar de
ser julho, naquele fim de tarde era possível ver pessoas tentando tomar algum
raio de sol que aparecia e se escondia, enquanto outros nadavam na piscina do
Sesc Belenzinho.
Peter Brötzmann estava encostado à grade, olhando de cima o que
acontecia lá embaixo nas piscinas. Fumando seu incontornável charuto, estava
ali sozinho, ignorado pelas muitas pessoas que iam e vinham pela unidade do
Sesc. Às 19h, Brötzmann faria a terceira e última apresentação programada para
aquela breve tour acompanhado de John Edwards e Steve Noble. Era a segunda vez que o saxofonista alemão vinha ao Brasil.
Em junho de 2008, ele desembarcou com outro trio, o Full Blast, em noite
histórica em uma época em que ouvir free jazz na cidade ainda era algo muito
raro. Cheguei naquele dia no Sesc Belenzinho bem antes do show e, andando por
ali, eis que vejo o lendário saxofonista lá, encostado na grade, fumando. Com
passos apressados, sem pensar em nada, atraído por aquela força, fui em sua
direção: era um encontro de profundo caráter pessoal, um dos nomes mais pesados
de toda a música, em todos os tempos, ali, sozinho. Não era um encontro
profissional, naquele momento eu não era um jornalista prestes a iniciar uma
entrevista agendada. Era apenas um encontro ao acaso com um ídolo maior da
música que vivo. Brötzmann foi muito atencioso nos minutos que ficamos ali
conversando. Falou o quanto era curioso estar voltando relativamente rápido à
América do Sul, onde só tinha tido a oportunidade de se apresentar pela
primeira vez após quatro décadas de carreira. Disse que o teatro do Sesc era
agradável, o público receptivo, mas que faltava algo no ajuste do som da sala,
que esperava que naquela noite estivesse finalmente como desejava... coisas assim... Desse
contato pessoal com Brötzmann, restou um improvisado autógrafo que pedi
desajeitadamente em um pedaço de papel. Uma década depois, Peter Brötzmann se
cala...
Podemos dizer,
nós que vivemos o mundo do free jazz, que tivemos a sorte de ver Peter Brötzmann
por aqui em diferentes oportunidades (afinal, não são poucos os artistas da
free music de sua geração que nunca pisaram no Brasil...). O lendário
saxofonista alemão veio ao país em quatro oportunidades, em 2008, 2012, 2016 e
2018. E tocou em diferentes cidades: além de São Paulo, subiu ao palco no Rio
de Janeiro (onde inclusive gravou um disco na Audio Rebel em 2016), Porto Alegre,
Salvador, Ribeirão Preto, Belo Horizonte... ou seja, pessoas de diferentes
cantos do país tiveram a oportunidade de, em algum momento, ver Peter Brötzmann
em ação. Privilégio inimaginável até meados dos anos 2000. Obrigado, Mr. Brötzmann, por nos ter agraciado com sua arte única.
Alemão nascido na pequena cidade de Remscheid, em meio à
Segunda Guerra, no dia 6 de março de 1941, Brötzmann dedicou toda a vida à
arte. Seu foco principal na juventude era as artes plásticas, o que o levou a
se graduar na Art Academy of Wuppertal. Antes de enveredar de vez pela música,
se envolveu com o pessoal do Fluxus, tornando-se próximo do
influente artista sul-coreano Nam June Paik. O Brötzmann pintor e gravurista manteve-se
vivo por toda sua trajetória, sendo possível ver sua face de artista plástico em
muitas capas de discos, seus e de amigos. Mas o que o tornaria famoso
universalmente seria de fato a música. Brotada sem compromisso em meio à
ansiedade juvenil, a música para Brötzmann veio inicialmente na forma de
clarinete, instrumento que aprendeu a manusear antes dos saxes e com o qual
inicialmente tocou em bandas de dixieland e swing de sua cidade. Não tardaria
para ser seduzido pelo nascente free jazz, que dialogava de forma mais profunda
com as artes plásticas que praticava. Seu mais antigo registro data de uma
apresentação em trio em 1964, aos 23 anos de idade, na sua Wuppertal, material
que só veio a público muito tempo depois. Sua estreia oficial levaria alguns
anos ainda para aparecer e viria como “For Adolphe Sax”, onde já empunhava de forma fulminante os saxes tenor e barítono, álbum que saiu em 1967 pelo selo independente (“BRÖ”) que criou à época.
E já no ano seguinte apareceria
Machine Gun, sua obra-prima e uma das joias da história do
free jazz. Simbolicamente gravado em maio de 68,
Machine Gun era um petardo
como pouco se ouvira no mundo da música até aquele momento. A partir daí, seu
nome passaria a ser descoberto por mais gente, logo ocupando o espaço que merecia na cena global. Sua
ininterrupta carreira, que se estendeu até pouco tempo atrás (em março deste ano, após um
show na Polônia, ele teve um colapso que o levou à UTI, deixando seus fãs
alertas para o pior que acabou chegando), ficou registrada, sem pausas, com
lançamentos em praticamente todos os anos desde que estreou, gerando algumas
centenas de álbuns. E quantos clássicos, quantos discos obrigatórios em qualquer discoteca! Brötzmann
permaneceu como um artista independente e underground, estrela maior de um
mundo sonoro que passa ao largo do mainstream mas que, mesmo assim, com a força de seu sopro, conseguiu atingir corações e ouvidos em todos os continentes, influenciando e inebriando gerações. Hoje, nesse dia em
que parte, aos 82 anos de idade, sua memória é homenageada mundo afora; sua
música chegou a todos os cantos e hoje é dia de celebrá-la sem fronteiras. Uma
de suas últimas importantes parceiras, Heather Leigh disse, segundo o The
Guardian, que ele
morreu pacificamente enquanto dormia, em sua casa em
Wuppertal, na Alemanha. Sua música, sinônimo de liberdade e transgressão, fica
como um legado de uma arte revolucionária que permanecerá viva, iluminando
nossos dias.
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*quem assina:
Fabricio
Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária.
Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda
correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como
Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e
literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns
“Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”,
de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e
Matthew Shipp (SMP Records)