Omaggio a PETER BRÖTZMANN (1941-2023)

Por Fabricio Vieira

Era o dia 29 de julho de 2012, domingo, céu aberto em tarde cinzenta em São Paulo. Apesar de ser julho, naquele fim de tarde era possível ver pessoas tentando tomar algum raio de sol que aparecia e se escondia, enquanto outros nadavam na piscina do Sesc Belenzinho. Peter Brötzmann estava encostado à grade, olhando de cima o que acontecia lá embaixo nas piscinas. Fumando seu incontornável charuto, estava ali sozinho, ignorado pelas muitas pessoas que iam e vinham pela unidade do Sesc. Às 19h, Brötzmann faria a terceira e última apresentação programada para aquela breve tour acompanhado de John Edwards e Steve Noble. Era a segunda vez que o saxofonista alemão vinha ao Brasil. Em junho de 2008, ele desembarcou com outro trio, o Full Blast, em noite histórica em uma época em que ouvir free jazz na cidade ainda era algo muito raro. Cheguei naquele dia no Sesc Belenzinho bem antes do show e, andando por ali, eis que vejo o lendário saxofonista lá, encostado na grade, fumando. Com passos apressados, sem pensar em nada, atraído por aquela força, fui em sua direção: era um encontro de profundo caráter pessoal, um dos nomes mais pesados de toda a música, em todos os tempos, ali, sozinho. Não era um encontro profissional, naquele momento eu não era um jornalista prestes a iniciar uma entrevista agendada. Era apenas um encontro ao acaso com um ídolo maior da música que vivo. Brötzmann foi muito atencioso nos minutos que ficamos ali conversando. Falou o quanto era curioso estar voltando relativamente rápido à América do Sul, onde só tinha tido a oportunidade de se apresentar pela primeira vez após quatro décadas de carreira. Disse que o teatro do Sesc era agradável, o público receptivo, mas que faltava algo no ajuste do som da sala, que esperava que naquela noite estivesse finalmente como desejava... coisas assim... Desse contato pessoal com Brötzmann, restou um improvisado autógrafo que pedi desajeitadamente em um pedaço de papel. Uma década depois, Peter Brötzmann se cala...

Podemos dizer, nós que vivemos o mundo do free jazz, que tivemos a sorte de ver Peter Brötzmann por aqui em diferentes oportunidades (afinal, não são poucos os artistas da free music de sua geração que nunca pisaram no Brasil...). O lendário saxofonista alemão veio ao país em quatro oportunidades, em 2008, 2012, 2016 e 2018. E tocou em diferentes cidades: além de São Paulo, subiu ao palco no Rio de Janeiro (onde inclusive gravou um disco na Audio Rebel em 2016), Porto Alegre, Salvador, Ribeirão Preto, Belo Horizonte... ou seja, pessoas de diferentes cantos do país tiveram a oportunidade de, em algum momento, ver Peter Brötzmann em ação. Privilégio inimaginável até meados dos anos 2000. Obrigado, Mr. Brötzmann, por nos ter agraciado com sua arte única.     

 

Alemão nascido na pequena cidade de Remscheid, em meio à Segunda Guerra, no dia 6 de março de 1941, Brötzmann dedicou toda a vida à arte. Seu foco principal na juventude era as artes plásticas, o que o levou a se graduar na Art Academy of Wuppertal. Antes de enveredar de vez pela música, se envolveu com o pessoal do Fluxus, tornando-se próximo do influente artista sul-coreano Nam June Paik. O Brötzmann pintor e gravurista manteve-se vivo por toda sua trajetória, sendo possível ver sua face de artista plástico em muitas capas de discos, seus e de amigos. Mas o que o tornaria famoso universalmente seria de fato a música. Brotada sem compromisso em meio à ansiedade juvenil, a música para Brötzmann veio inicialmente na forma de clarinete, instrumento que aprendeu a manusear antes dos saxes e com o qual inicialmente tocou em bandas de dixieland e swing de sua cidade. Não tardaria para ser seduzido pelo nascente free jazz, que dialogava de forma mais profunda com as artes plásticas que praticava. Seu mais antigo registro data de uma apresentação em trio em 1964, aos 23 anos de idade, na sua Wuppertal, material que só veio a público muito tempo depois. Sua estreia oficial levaria alguns anos ainda para aparecer e viria como “For Adolphe Sax”, onde já empunhava de forma fulminante os saxes tenor e barítono, álbum que saiu em 1967 pelo selo independente (“BRÖ”) que criou à época. E já no ano seguinte apareceria Machine Gun, sua obra-prima e uma das joias da história do free jazz. Simbolicamente gravado em maio de 68, Machine Gun era um petardo como pouco se ouvira no mundo da música até aquele momento. A partir daí, seu nome passaria a ser descoberto por mais gente, logo ocupando o espaço que merecia na cena global. Sua ininterrupta carreira, que se estendeu até pouco tempo atrás (em março deste ano, após um show na Polônia, ele teve um colapso que o levou à UTI, deixando seus fãs alertas para o pior que acabou chegando), ficou registrada, sem pausas, com lançamentos em praticamente todos os anos desde que estreou, gerando algumas centenas de álbuns. E quantos clássicos, quantos discos obrigatórios em qualquer discoteca! Brötzmann permaneceu como um artista independente e underground, estrela maior de um mundo sonoro que passa ao largo do mainstream mas que, mesmo assim, com a força de seu sopro, conseguiu atingir corações e ouvidos em todos os continentes, influenciando e inebriando gerações. Hoje, nesse dia em que parte, aos 82 anos de idade, sua memória é homenageada mundo afora; sua música chegou a todos os cantos e hoje é dia de celebrá-la sem fronteiras. Uma de suas últimas importantes parceiras, Heather Leigh disse, segundo o The Guardian, que ele morreu pacificamente enquanto dormia, em sua casa em Wuppertal, na Alemanha. Sua música, sinônimo de liberdade e transgressão, fica como um legado de uma arte revolucionária que permanecerá viva, iluminando nossos dias.

 

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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)