CRÍTICAs Há 55 anos, em maio de 1968, Peter Brötzmann registrava sua
obra-prima e uma das mais importantes gravações da free music: nascia Machine
Gun...
Por Fabricio Vieira
O ano de 1968 pode
ser lembrado por múltiplos eventos que marcaram o mundo, sacudindo e implodindo
barreiras de um lado, suprimindo direitos e levando destruição de outro. No
Brasil, a ditadura militar apertava o cerco com a promulgação do AI-5, que significou
o mais duro golpe na democracia nacional. Também é o ano em que Martin Luther
King Jr. foi assassinado. A França adentrava uma onda de protestos iniciados
com manifestações estudantis que desembocaram em uma greve geral
gigantesca, deixando abalado o governo De Gaulle. A Primavera de Praga,
que acabou duramente reprimida pela URSS, agitava a Tchecoslováquia com anseios
por mudanças políticas e culturais. Houve ainda o massacre de My Lai, quando o
exército dos Estados Unidos comandou, em uma aldeia de camponeses, a maior
matança de civis durante a Guerra do Vietnã... Foi ainda naquele ano, mais
precisamente em maio de 1968, que o saxofonista alemão Peter Brötzmann entrou
em estúdio com seu octeto para criar uma das peças seminais do free
europeu: Machine Gun.

Peter Brötzmann, então com apenas 27 anos, não podia imaginar
que levava um dream team ao Lila Eule, em Bremen (Alemanha), em meados de maio
de 1968: estava acompanhado de alguns dos futuros mais importantes nomes do
free europeu para gravar sua nova obra. A seu lado estavam nada menos que os
saxofonistas Evan Parker e Willem Breuker (1944-2010); os bateristas Han
Bennink e Sven-Ake Johansson; os baixistas Peter Kowald (1944-2002) e Buschi
Niebergall (1938-1990); e o pianista Fred Van Hove (1937-2022) – este, o
"veterano" do grupo, isso tendo somente 31 anos à época. Daquela data
(vale notar que a maioria das edições se refere apenas ao mês de maio de 68, como se
houvesse dúvidas sobre o dia exato da sessão; há versão em CD que afirma que a
gravação ocorreu no dia 28; e Brötzmann já disse que as gravações ocuparam dois
dias naquele maio...), existem cinco faixas registradas, tendo sido executados
três temas:
Machine Gun (em duas versões),
Responsible (também
duas versões) e
Music for Han Bennink. O disco é considerado um marco
na libertação do free europeu da influência norte-americana – e é mesmo um
registro "europeu", sendo os instrumentistas representantes de cinco
países: Alemanha, Holanda, Bélgica, Suécia e Inglaterra. Inegáveis são as
referências estruturais de combos como os que gravaram anos antes "Free
Jazz", comandado por Ornette Coleman em dezembro de 1960, e "Ascension",
conduzido por John Coltrane em junho de 1965; mas inegável também é o novo aqui, que
abriu ouvidos a caminhos ainda inexplorados.
Machine Gun é o segundo álbum que Brötzmann lançou sob
sua assinatura, tendo sido precedido pela sua estreia, com
For Adolphe Sax,
gravado no ano anterior. A primeira edição de
Machine Gun saiu pelo selo
independente que o saxofonista havia criado, o BRÖ, por meio do qual lançou
também seu registro inaugural. Ao que parece, apenas cerca de 300 cópias
(alguns falam em até 500) foram prensadas da primeira versão de Machine
Gun, que existe com três capas distintas. A maioria dos exemplares de 1968 vem
com a capa original, estampada com uma serigrafia de Brötzmann que traz dois
soldados com uma metralhadora, pintada em laranja sobre um fundo branco com a
descrição
machine' gun automatic gun for fast, continuous firing. Conta-se
que o número de capas impressas foi menor que o número de discos prensados, o
que originou as outras duas não planejadas versões: uma simplesmente com uma
capa inteiramente em branco, com o disco dentro; e a outra, considerada a mais
rara de todas, com o título do álbum e a contracapa feitos/escritos à mão por
Brötzmann com canetas coloridas. Com
certeza, em uma época sem internet e outras facilidades digitais, o disco foi
ouvido por relativamente pouca gente em seus primeiros anos de existência. Em
1972, esse leque de ouvintes se ampliaria com uma nova edição, desta vez mais
profissional. O mítico selo alemão FMP, fundado por Jost Gebers com a
participação do próprio Brötzmann em 1969, levaria adiante a empreitada de
reeditar o clássico álbum. Esta segunda edição de Machine Gun era similar à primeira,
trazendo a faixa-título do lado A, e "Responsible" e "Music for
Han Bennink" no lado B.

Já a primeira
versão em CD demoraria mais tempo para aparecer. Isso aconteceu apenas em 1990,
mas a espera valeu: a edição trazia novidades para os fãs. Pela primeira vez
era possível ouvir versões adicionais das faixas "Machine Gun" e
"Responsible" (que agora trazia o subtítulo "For Jan Van De
Ven"). Agora os ouvintes que conheciam o disco há cerca de duas décadas se
deparavam com versões diferentes que, se mantinham a base do que era conhecido,
variavam cada uma em cerca de dois minutos, ou seja, traziam elementos outros
para serem apreciados/explorados. Havia ainda uma curiosidade: as versões da faixa
Machine Gun traziam as inscrições "second take" e
"third take", gerando especulações sobre uma "first take"
perdida (que infelizmente nunca apareceu... ou será que a "first" se
refere à gravação ao vivo do tema feita dois meses antes da em estúdio?).
Antecipando a celebração dos 40 anos da obra, apareceu, em
2007, uma edição comemorativa em CD chamada
The Complete Machine Gun
Sessions. Infelizmente esta edição, lançada pela Atavistic, não trazia
nada de novo: em relação à de 1990, a única novidade era uma versão
ao vivo de
Machine Gun, captada em 24 de março de 1968, no Frankfurt Jazz Festival, mas
esta peça já havia aparecido anteriormente, como parte do álbum
Fuck the Boere.
Chama a atenção a capa nova, com uma outra serigrafia de Brötz com um soldado e
uma metralhadora, feita também na época da gravação do álbum. Em 2011, o selo Slowboy
colocaria de novo uma versão em LP (como a original) no mercado. E em maio de 2018,
na comemoração dos 50 anos de Machine Gun, a Cien Fuegos/Trost Records lançou dois LPs: um contendo a versão original e outro com os dois "extras"
que apareceram na versão em CD de 1990.
No referencial
"The Penguin Guide to Jazz", Machine Gun recebeu as quatro estrelas
máximas e a coroa com a qual são destacados os álbuns obrigatórios. Lá, os
autores Brian Morton e Richard Cook escrevem: "Machine Gun is one of the
most significant documents of the European free jazz underground. Whenever we
return to it, the power of this amazing record seems as potent as ever". A
perenidade da força e do impacto de Machine Gun faz dela uma indiscutível
obra-prima ou, na acepção do crítico e escritor italiano Italo Calvino, um
clássico. Em seu conhecido ensaio “Por que ler os clássicos”, Calvino pontua os
motivos que fazem com que leitores e críticos considerem certas obras como
“clássicas”, peças que nunca envelhecem ou deixam de surpreender. Dentre as
diferentes definições de clássico elencadas por Calvino (ele fala
particularmente de livros, mas podemos levar suas ideias à música facilmente),
vale destacar ao menos três que bem definem Machine Gun:
1) Os clássicos são
livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de
fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos;
2) Um clássico é um
livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer;
3) Toda releitura
de um clássico é a uma leitura de descoberta como a primeira;
Quem colocar agora
Machine Gun para tocar, independentemente
de ser a primeira ou a centésima vez que faz isso, verá à sua frente sem
esforço brilharem as teses de Calvino. Nunca deixa de ser arrepiante ouvir o
power riff que explode dos sopros abrindo a faixa-título, com Brötzmann,
Parker e Breuker em uma rajada em uníssono que poderia derrubar um avião (e o
impacto podia ser maior: eram para ser quatro saxofonistas, com a participação
também de Gerd Dudek, que esteve na versão ao vivo, mas não pôde comparecer ao
estúdio no dia da gravação).
Essa paulada criada por Brötzmann é como que se traduzisse o título da peça e
enviasse um recado a Don Cherry, que apelidou o saxofonista exatamente de
Machine Gun pelo
seu jeito de tocar, isso quando se conheceram lá por 1966 (e é daí que vem o
título do trabalho, segundo o próprio músico, que costuma minimizar
interpretações como as que veem essa obra como uma peça antibelicista.
A concepção geral do trabalho é sem dúvida de Brötzmann (tanto que o álbum é
creditado a "The Peter Brötzmann Octet"), mas apenas a faixa-título é
de sua autoria. "Responsible" é assinada por Fred Van Hove e
"Music for Han Bennink" (que traz o solo mais demolidor de
Brötzmann), por Willem Breuker, mas nada que atrapalhe a perfeita
coesão e coerência interna que marcam o trabalho.
Se uma das diferenças
primárias do
free para o
rock (e outras músicas populares) é exatamente a não
repetição/execução de um trabalho ao vivo (claro que há exceções), é de se
lamentar que Machine Gun não volte (ou nunca tenha voltado) a ser tocada em um
palco. A versão gravada ao vivo de
Machine Gun que conhecemos foi feita
inclusive dois meses antes do registro em estúdio, como se fosse uma
preparação para a peça final. Apesar de Brötzmann e seus companheiros nessa
empreitada serem essencialmente
free improvisers,
Machine Gun é uma peça com
partes compostas, planejada em sua estrutura e desenvolvimento (em meio a
explorações improvisatórias): note-se que a versão original, com seus 17m18, é
bem próxima da versão ao vivo, que conta com 17m40. A terceira versão, que apareceu
em CD, pode ser menor, com seus cerca de 15 minutos, mas mantém a
estrutura-base.
Em relação à sua
forma de encarar a obra, disse Brötzmann em entrevista à Time Out, em 2011:
"
I mean Machine Gun is a very structured thing, from the beginning to the
end. It's really in a way very traditional: It starts with a figure; it goes on
with a Charles Ives theme; it comes at the end to some rock & roll figure.
And in between, the solo stuff. So it's nothing very avant-garde; it's a very
normal kind of piece". Para quem a princípio pense, vendo as pessoas envolvidas, nas palavras
free improvisation, a fala de Brötzmann pode bagunçar as ideias... Mas escutando a peça com
calma, suas estruturas se clarificam: logo após o ataque inicial que abre
Machine Gun, que dura menos de um minuto, o sax tenor emerge soando como se
narrasse algo com relativa calma, por sobre uma base quase melódica do piano;
seu discurso vai sendo interrompido por curtos ataques virulentos dos outros
sopros e baterias, em um processo que se repete oito vezes, cada vez mais
agressivas, até desembocar em um breve solo de piano. Esse processo está
presente nas três versões (ao vivo, o solo de piano é atropelado) e se fosse ser
executada hoje esperaríamos, conscientes ou não, que seus aproximados quatro minutos
iniciais rumassem por aí. É interessante notar também como se forma a parte
final da peça, quando em seus cerca de últimos dois minutos surge um tema
tocado pelos sopros (que atravessa o solo de Brötzmann) que não renega suas
referências jazzísticas, quase irônico (
kill the fathers?!), antes de mergulhar
na cacofonia do último minuto que leva à retomada do ataque inicial, à
artilharia que abre (e agora encerra) a faixa.
Machine Gun é uma obra
de força única, um registro que marca um momento iluminado da free music,
desses que se repetem apenas de tempos em tempos.
"Machine Gun of course was done in '68, which was a
very revolutionary time here in Europe and in USA, too. The Vietnam War was on
its way, and here in Europe, we had our student things, because we wanted
another republic and so on, we followed very much Malcolm X and Angela Davis,
and so on. It was a time for change, and naive as we had been in these years,
we thought music would be a tool for changing things. And of course we had to
learn that that was a kind of illusion. I mean, I still think that you can
change things, or at least you can change and open up people's minds with the
music, but for a political change, it was not a strong enough tool."
(Peter Brötzmann)
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em
Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por
alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou
também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos
anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de
liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo
Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live
in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)