Sons nos Arredores


LANÇAMENTOs Em destaque, novos discos nacionais editados nos últimos tempos.  Experiências variadas, possibilidades múltiplas. Ouça, divulgue, compre os discos...

 


Por Fabricio Vieira

 

 

Negro Humor

Radio Diaspora

Brava

Mais potente projeto da free music nacional, o duo Radio Diaspora lançou seu décimo registro, trazendo novas perspectivas a seu inventivo trabalho. Formado pelo trompetista Romulo Alexis e o baterista Wagner Ramos, o Radio Diaspora lançou seu álbum de estreia em 2016 e desde então criou uma sólida discografia, entre títulos centrados no duo e outros com participações de artistas convidados. Focado aqui no duo, o novo álbum "investiga a dicotomia do humor para novamente fazer reverberar por meio da música sua luta contra a violência física e simbólica sofrida pela população negra. (...) O humor como faceta da tristeza. A gargalhada como opressão simbólica, ressaltando a contradição de uma sociedade que, ao tratar com aprazimento chacotas racistas, reconhece e reafirma com leveza a brutalidade do discurso dominante", diz a apresentação do álbum. São sete novas peças, nas quais vemos a dupla extrapolar seus instrumentos-base com uma série de recursos que vão dando os particulares climas e coloridos a cada tema; Alexis toca, além do trompete, shenai, gaita marroquina, agogô, caxixi, boquilha; Ramos parte da bateria e adentra Minimoog Model D, sampler Roland SP-404 SX, Korg Wavedrum e SPD-ONE Wavepad. Por trás e junto a este arsenal, samples de diferentes épocas e personagens históricos (como Grande Otelo, Malcolm X, Muhammad Ali) surgem de uma faixa a outra, fazendo uma conexão passado-presente, levando o ouvinte a refletir sobre como essas vozes de ontem dialogam com o hoje, em uma recontextualização que eleva o poder discursivo da música do duo.

 


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L.E.I.S

Independente

L.E.I.S é um novo duo formado em Minas Gerais pelo saxofonista Francisco Cesar e o baterista Bernardo Caldeira. São oito temas, recém-registrados, no último 18 de junho, no Estúdio Minotauro (Belo Horizonte). O formato de duo de sax e bateria é um dos mais explorados no universo da free music, o que apenas aumenta o desafio da dupla para apresentar algo que atraia a atenção dos ouvintes. Cesar e Caldeira se saem bem nesta empreitada, escapando do caminho mais fácil, o de simplesmente mergulhar sem rodeios na energy music. Os temas se desenvolvem cada um com sua vibração, podendo ser espaçados, com vagar, ou adentrando com precisão possibilidades mais enérgicas, quando estas são as vias abertas pela música em meio a seu surgimento. Os músicos fazem questão de frisar que o álbum "é o resultado de uma sessão de improvisação livre gravada ao vivo, sem sistema de monitoração e sem edição", destacando sua marca de criação instantânea. Cesar adiciona em uma das faixas também piano, executado por ele, sinalizando possibilidades novas que podem ser mais exploradas à frente  considerando já que este é um projeto que veio para ficar e não apenas um encontro de ocasião.

 


Fuogn

Thomas Rohrer/ Phillip Somervell/ Charlotte Hug

QTV

Fuogn registra o encontro entre dois músicos estrangeiros radicados em São Paulo, o suíço Thomas Rohrer e o anglo-chileno Philip Somervell, com a artista Charlotte Hug. Rohrer (rabeca  e sax soprano) e Somervell (pianista que aqui toca órgão de tubos) se encontraram em Londres pouco mais de uma década atrás, dando início a uma parceria que no futuro renderia vários frutos aqui no Brasil, especialmente a partir de 2014, quando passaram a trabalhar de forma constante juntos. Neste novo álbum, registrado em outubro de 2019 no Centro Cultural Cachuera (SP), a dupla recebeu a suíça Charlotte Hug (viola e voz) para um sessão de improvisação livre. Hug, com longa experiência na cena free impro  ela já tinha estado no país anteriormente, como em 2011, quando se apresentou com o Stellari String Quartet , trouxe novas possibilidades ao som já bem entrosado do duo. O encontro resultou em duas longas faixas (19 e 25 minutos) que se desenvolvem sem arroubos, com o trio explorando texturas e climas de variadas tensões.

 


Sem Ar

Thelmo Cristovam

Música de Ruído

Quando o ouvinte vê que este é um disco solo de Thelmo Cristovam, onde ele toca apenas trompete de bolso, a expectativa que se cria pode se revelar algo distorcida. Mesmo quem conhece seu trabalho e sabe que Cristovam busca sempre extrapolar limites sonoros (os seus e os do universo musical no qual transita), Sem Ar pode surgir como uma impactante surpresa quando o "play" for dado. O músico gravou e editou esse novo trabalho em outubro de 2020, em Olinda, no seu estúdio caseiro v(g)erme. O que ele apresenta não é apenas um disco desafiador de trompete solo, apesar de também ser isso. Como explica Henrique Iwao nas liner notes: "Aqui, o músico explora um trompete de bolso, menor e mais curvilíneo que o trompete comum, exigindo mais pressão de ar e possuindo uma sonoridade mais seca. Essa nuance se faz presente, mas não de modo tão claro ou direto, dado que a captação foi montada para distorcer enormemente o som acústico do instrumento. De fato, o ambiente de improvisação foi ajustado para que o trompete de bolso seja parte de um instrumentário maior, este compondo-se desse trompete, mais o sistema de captação e reprodução distorcida do que foi captado". Esta talvez seja a expressão-chave para entender melhor o que ouvimos: reprodução distorcida. Se em outros trabalhos solistas, como "O Enforcado" (2008, trompete) ou "Impermanências" (2014, para sax), Cristovam já ia além do esperado, aqui oferece algo realmente cortante: ouvir as nove faixas sequencialmente, em seus cerca de 50 minutos, é uma experiência da qual não se sai ileso.        

 


Fio

Inés Terra

Estranhas Ocupações

Fio traz uma série de duos comandados pela vocalista, improvisadora e compositora Inés Terra. Nascida na Argentina e radicada em São Paulo, a artista aproveitou o isolamento pandêmico para desenvolver essas parcerias. À distância, dividiu ideias e desenvolveu cinco peças junto a Mariana Carvalho (voz, ventilarpa), Mauricio Takara (percussão processada), Lea Taragona (voz, eletrônica), Romulo Alexis (trompete) e Flávia Goa (violão). As peças não são muito longas, entre três e seis minutos, mas se mostram o necessário para que as ideias de Terra e convidados consigam ser apresentadas no que se revela um todo internamente coerente. Mantendo a coesão em meio à variedade de resultados, Fio se estrutura como um álbum que parece bem-planejado, independentemente de a improvisação estar em seu núcleo-base. O disco abre com a climaticamente sombria "Fricção Interna", com Mariana Carvalho, na qual as vozes mais dialogam que duelam, em uma sensível completude. Em "Via Láctea", o trabalho vocal de Terra se revela mais melódico, tocante por vezes, com o trabalho percussivo de Takara oferecendo uma pulsação constante em seus sutis sobressaltos. "Tufão", ao lado de Taragona, traz de novo o jogo de vozes, mas em uma visada distinta da faixa de abertura. Com Alexis, "Passagem" traz os momentos mais estimulantes de Fio; a cantoria etérea de Terra atravessada pelo sopro robusto e moroso marca o início da peça, antes de um desdobramento no qual os papéis parecem se inverter, quando a balbuciante voz se adensa e o trompete adentra uma esfera mais expressivamente rasgante, até quase se fundirem nos momentos finais. "Vermelha" traz outros dos mais instigantes desenvolvimentos em diálogo com as cordas, com o violão de Goa criando camadas que por vezes engolfam a voz, por vezes duelam com ela. 
  

 


Outros Espaço

Rodrigo Brandão

Selo Sesc

O novo trabalho de Rodrigo Brandão traz uma instigante colaboração com o lendário Marshall Allen. O veterano saxofonista, que comanda a Sun Ra Arkestra desde 1995, se encontrou com Brandão no palco do Moers Festival, em maio de 2019. Dali nasceu o desejo de prolongarem a bem-sucedida parceria, que teve esse desdobramento em outubro daquele ano, quando a Sun Ra Arkestra veio para o Sesc Jazz (SP)  e Brandão aproveitou para organizar o encontro que resultou neste álbum. A Brandão e Allen se juntaram outros membros da Sun Ra Arkestra: os saxofonistas Knoell Scott e Danny Ray Thompson (1947-2020) e o percussionista Elson Nascimento, paulistano que entrou para a Arkestra nos anos 80. Para completar o time, uma seleção de artistas nacionais que têm, com projetos diversos, esquentado a cena criativa local: as cantoras Juçara Marçal e Tulipa Ruiz; o saxofonista Thiago França; Thomas Rohrer (sax e rabeca); o percussionista Paulo Santos; o tecladista Guilherme Granado; e o baixista Marcos Gerez. Esse extenso grupo desenvolveu dez peças, que partem do campo da improvisação e das liberdades expressivas para adentrar a atmosfera cósmica de Sun Ra, estabelecendo neste processo de tom ritualístico uma conexão entre a música de hoje, criada agora, com a arte do lendário mestre, tendo nas palavras/poesias de Brandão um ponto nevrálgico, que atravessa e se engolfa nas camadas sonoras múltiplas e oscilantes que vão sendo construídas, sempre trazendo sua mensagem direta e ferina ("Mas enquanto isso, enquanto isso eu me pergunto: quantos Coltrane foram calado à bala (...) antes de emitir uma nota sequer de seus respectivos saxofones..."). "Quando os Orixás Desfilam Sobre a Cracolândia" funciona como perfeita abertura, levando o ouvinte a ser dragado pelo clima que marcará a obra, enquanto "Salute The Sun" traz um dos núcleos de força instrumental maior, com cortante solo de Allen arrastando tudo, em meio a uma camada percussiva de sabor contagiante. No exterior, o disco está sendo lançado, em LP, edição limitada de 500 cópias, pelo selo português Comets Coming.

 


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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)