SONIC YOUTH: Free Rhymes




O Sonic Youth, que findou sua história em 2011, ficou marcado como uma banda de rock sempre aberta a ruidosidades e experimentações. Mas o grupo foi muito além daquilo que deixou em seus álbuns, tocando parcerias e projetos paralelos de radicalidade sonora ainda maior...






Por Fabricio Vieira


O Sonic Youth foi uma das bandas de rock mais ligadas ao universo da free music. Nascido no underground nova-iorquino do início da década de 1980, em meio aos ventos da no wave, o Sonic Youth nunca deixou de lado suas raízes e referências iniciais vindas do cenário mais experimental, mesmo que tenha vivenciado momentos de maior apelo indie-pop em sua trajetória e alcançado certa fama com os discos "Goo" (1990) e "Dirty" (1992). O grupo (Thurston Moore, Kim Gordon, Lee Ranaldo e Steve Shelley), que esteve ativo durante cerca de três décadas seu suspiro final se deu em novembro de 2011, curiosamente em um show no Brasil , se aproximou de forma mais direta do universo do free impro mais para a metade da década de 1990, movimento que seria seguido por uma ampliação de suas experiências sonoras, apesar de suas obras-primas "Sister" (87) e "Daydream Nation" (88) já carregarem altas doses de ruidagem e improvisos.

Thurston Moore foi sempre o que se mostrou mais empolgado com o free jazz, adentrando o  gênero sob diversas visadas. O guitarrista, por exemplo, tocou e gravou com nomes centrais do free, como John Zorn, Cecil Taylor, Joe McPhee, Evan Parker, The Thing, Paul Flaherty, Chris Corsano, Susie Ibarra, Keiji Haino e outros tantos. 
Tal aproximação também se revela em suas pesquisas sonoras e em sua discoteca (Moore é um colecionador de vinis), algo que chamou muita atenção em 1995, quando fez para a revista Grand Royal uma lista com os álbuns de seu Top10 do Free Jazz Underground, muito lembrada até hoje, e que deve ter ajudado a levar o nome de artistas como Peter Brötzmann, Rashied Ali e Milford Graves a jovens fãs do SY. Vale lembra também que, em diferentes oportunidades, o SY colocou gente do free jazz para abrir seus shows, como os saxofonistas David S. Ware e Wally Shoup, o guitarrista português Manuel Mota e os italianos do Jooklo Duo (Virginia Genta e David Vanzan). E quem olhar com atenção os álbuns da banda vai encontrar curiosidades como a participação dos saxofonistas Jim Sauter e Don Dietrich (do Borbetomagus) em “Radical Adults Lick Godhead Style” (de Murray Street, 2002) ou nomes de faixas como "Kim Gordon and the Arthur Doyle Hand Cream" (Sonic Nurse, 2004), em alusão ao saxofonista do Alabama, e "Karen Koltrane" (A Thousand Leaves, 1998).
Em entrevista a Fred Jung em 2003, Moore falou sobre seus primeiros contatos com o free jazz e a improvisação livre:

"Improvised music as a genre, I was somewhat unaware of in the Eighties. I started really listening to classic Sixties jazz, to Coltrane and Mingus and to Ornette, and became very immersed in it, especially the New York school of it, and reading Leroi Jones’ writings on it. That really opened up my ears to people like Frank Lowe and Rashied Ali and Milford Graves and some of the more expanded playing ideas. (…). At some point, I discovered, just by the fact that there was a record store in Manhattan that sold only jazz records and it was an extension of this record store on St. Mark's Place called Sounds and they opened up a store on 9th Street, which was where they shuffled all their jazz stock and sold it really cheap. Within all these records were a lot of European records by people on independent labels such as Peter Brötzmann, Derek Bailey, Evan Parker, and these were people I knew were sort of part of what was being presented at the St. I became curious about it and I picked up a couple of them because they were cheap enough. Nobody bought these records at all. There was no hip cache to them like there is now at all. Especially Bailey, they really made me curious in a way as to who these people were because their music was so open ended and all about these communications that they were dealing with each other and I didn't know how to look at it historically."

Enquanto a música do SY ia absorvendo progressiva e diretamente a influência da free music, com a qual seus integrantes foram se envolvendo mais e mais, o grupo expandia suas investigações sonoras, o que os levou cada vez mais além das margens estéticas do próprio SY. Nesse contexto, optaram por criar um catálogo paralelo específico chamado SYR, para editar seus trabalhos mais experimentais. Com nove títulos, a série SYR, que estreou em 1997, foi publicada de forma independente, em paralelo aos trabalhos do Sonic Youth que saíam pela gravadora major (DCG/Geffen) com quem tinham contrato. E isso, sob certo aspecto, se mostrou acertado, pois mesmo fãs devotos da banda torceram o nariz quando eles, na discografia linear do Sonic Youth, editaram um trabalho um pouco mais experimental (nem tão radical assim), NYC Ghosts & Flowers (2000): essa genial obra apanhou tanto da crítica roqueira quanto dos fãs da banda, sempre à espera de "algo barulhento, experimental, mas nem tanto". Nessa mesma época, o grupo desenvolvia novos projetos, registrados em gravações e parcerias que acabaram saindo fora da discografia linear da banda e do catálogo SYR  ou seja, uma terceira via em sua discografia. Dois parceiros foram fundamentais nesse período de ampliação de perspectivas a partir de meados da década de 1990: o guitarrista Jim O'Rourke, que acabaria se tornando, durante alguns anos, um quinto membro do SY, e o saxofonista Mats Gustafsson. Com eles, os membros do SY realizaram  muitos de seus registros mais experimentais, desbravando fronteiras realmente novas, com a improvisação livre e as investigações instrumentais se tornando importantes formas de expressão.

Em síntese, podemos dividir a discografia do Sonic Youth em três linhagens: os álbuns lineares/comerciais da banda; os títulos sob a rubrica SYR; e os outros discos independentes, lançados por pequenos selos de diferentes lugares. E é apenas percorrendo essas três vias que se revela possível compreender a total amplitude estética e expressiva do Sonic Youth. Selecionamos 10 álbuns que representam o que há de mais sonoramente desafiador no SY, experiências além-rock em que a improvisação se torna uma peça fundamental para o material gestado - mantenha os ouvidos abertos e descubra outras faces do SY...



*Andre Sider Af Sonic Youth: 10 álbuns*



1- SYR 3- Invito Al Cielo (1998, SYR)


Este disco marca a primeira parceria do SY com Jim O'Rourke. O álbum traz três faixas instrumentais, duas bem extensas (20 e 29 minutos), nas quais o grupo apresenta novas possibilidades de radicalização de seu som. Os temas mostram o quarteto fazendo com O'Rourke investigações ruidosas que, se lembram os momentos de blocos de ruídos que normalmente compõem muitas de suas célebres canções, não representam nesse contexto um momento de passagem, um intermezzo antes da retomada do tema/melodia/refrão. Aqui, o jogo com a ruidagem é um fim em si, algo que conecta essas peças mais a um campo free impro que ao rock alternativo de onde vem a fama da banda. O álbum leva a novos extremos, com um resultado melhor articulado que as propostas apresentadas nos anteriores SYR 1 e 2. Houve crítico que, sem saber para onde olhar, foi à época falando logo em pós-rock. Mas fica claro que aqui as conexões são mais amplas.





2- New York-Ystad (1999, Olof Bright)


Um importante registro que marca as primeiras colaborações entre o SY e o saxofonista sueco Mats Gustafsson. O encontro aconteceu em 12 de abril de 1999 e resultou em duas peças de improvisação livre, com a maior delas superando os 40 minutos. Por algum motivo, Kim Gordon estava ausente  daí o nome das peças, "Without Kim - I e II". O trabalho se estrutura sobre longas improvisações, com lentas evoluções encontrando passagens de força mais marcada, tendo seu ápice nos últimos cinco minutos de "I". Esse tipo de trabalho costuma ser apreciado em seu máximo quando presenciado ao vivo, na beira do palco, próximo aos músicos, vendo cada gesto formando cada som; ouvir apenas o disco exige uma concentração maior. O álbum foi editado em um box especial, com gravações de outros artistas, em edição limitada de 100 cópias, que hoje têm sido vendidas por aí por algo como US$ 1.500.





3- In The Fishtank 9 (2002, Konkurrent)


Em junho de 2001, o SY estava em turnê pela Holanda e foi convidado pelo selo Konkurrent para fazer uma gravação dentro da série In The Fishtank. O SY aceitou e teve a ideia de convidar músicos holandeses para a sessão. O resultado foi esse registro, feito no E-Sound Studio, na cidade de Weesp. Ao SY se juntaram então, pela primeira vez, o lendário percussionista do free Han Bennink, o saxofonista Ab Baars e o trombonista Wolter Wierbos, nomes ligados ao seminal coletivo ICP (Instant Composers Pool), um dos pilares da improvisação livre europeia, que iniciou suas atividades ainda nos anos 60. Luc e Terrie Ex, da banda The Ex, também participaram da gig, que rendeu oito temas e foi editada em vinil e CD. Interessante sessão de improvisação livre com muitas nuances, indo de pontos mais abstratos a momentos até algo dançantes, como em "X", mostrando certo clima de descontração, que deve ter marcado o encontro.





4- Melbourne Direct (2004, Saucerlike Recordings)


Desta vez, o SY ia fazer uma turnê pela Austrália. Mark Nelson, que trabalhava em uma fábrica de vinil, a Corduroy Records, em Melbourne, imaginou o quanto seria incrível se o SY topasse fazer uma sessão de free impro gravando diretamente no acetato. Sabendo que o grupo tocaria na cidade, entrou em contato com eles por e-mail expondo a ideia. O SY respondeu que poderia ser algo bacana e que conversariam quando estivessem na Austrália. E a proposta acabou vingando: no dia 22 de junho de 2004, em uma brecha entre os shows da turnê, eles fizeram e registraram a sessão de free impro que depois foi prensada em vinil duplo, edição limitada de 800 cópias, com quatro temas instrumentais em torno de 20 minutos cada. Kim Gordon acabou preferindo participar do projeto apenas fazendo a arte da capa.  





5- NYC Ghosts & Flowers (2000, Geffen)

Este é o álbum mais injustiçado de toda a discografia do Sonic Youth. Tendo sido lançado como um álbum regular do grupo, foi rejeitado por fãs e críticos de rock. Mas NYC Ghosts & Flowers é um brilhante exemplar da experimentação mais viajante do SY, cheio de poesia (destaque para o tom declamatório de Ranaldo na faixa-título ou de Moore em "Small Flowers Crack Concrete") e divagações improvisativas ruidosas sem serem agressivas. O disco é elaborado como uma obra poética tendo Nova York no horizonte, feito para ser ouvido em sua totalidade, acompanhando suas nuances e ondulações, não havendo espaço para um hit como "Sunday", do álbum imediatamente anterior do grupo. E o público tradicional do SY não perdoou isso.





6- Hidros 3 (2004, Smalltown Supersound)


Hidros foi um projeto de improvisação idealizado por Mats Gustafsson umas duas décadas atrás, no qual reunia músicos com diferentes propostas sonoras para gigs. Nesse encontro, realizado em 9 de outubro de 2000, no Ystads Konstmuseum, Gustafsson (que tocou só sax contrabaixo) teve como convidados os membros do SY, que atuaram da seguinte forma: enquanto Thurston Moore se manteve à guitarra, Kim Gordon se concentrou apenas em voz; já Lee Ranaldo, além de guitarra, tocou sinos e live electronics; e Steve Shelley, a maior surpresa da noite, deixou as baquetas de lado e mostrou suas habilidades na guitarra. Alguns outros artistas, como o guitarrista Loren Connors, se juntaram ao grupo. A música tem momentos de intensa ruidosidade, com a voz de Gordon e o sax contrabaixo criando densidades que contrastam com as cordas e pedais.





7-  SYR 6- Koncertas Stan Brakhage Prisiminimui (2005, SYR)


Nascida de um concerto beneficente realizado em abril de 2003 para e no The Anthology Film Archives (um centro de preservação e pesquisa), a edição de número 6 da série SYR traz três longas improvisações. Indo de 14 a 27 minutos, as peças se constroem em sessões de improvisação que demoram para esquentar, subindo gradativamente o tom, entre ruídos detalhistas e intromissões pontuais bastante atmosféricas, que vão prendendo os ouvidos com vagar. Altamente climática, a apresentação foi acompanhada pela projeção de filmes do cineasta Stan Brakhage, que havia morrido há pouco tempo. O show contou com a participação do percussionista e sound designer nova-iorquino Tim Barnes. O ideal seria poder ter esse material editado em DVD para sentir a interação som-imagem presente.






8- Live At L'Olympia (2001, Nugs.net)

Este show fez parte de uma turnê realizada pelo SY no verão de 2001 pela Europa. Na esteira do lançamento de Goodbye 20th Century (SYR 4), o grupo resolveu fazer uma série de dez apresentações focadas em compositores experimentais do século XX (como no disco em questão). O concerto que se ouve aqui foi o primeiro daquela turnê, tendo acontecido em 7 de junho de 2001, em Paris. O SY tocou peças de compositores como John Cage ("Six" e "Four6", com seus 30 minutos) e Cornelius Cardew ("Treatise"), se aventurando por territórios ainda mais amplos da experimentação. Mas não se esqueceu de acariciar o público no final com alguns temas próprios, apesar desses se tratarem de duas faixas de NYC Ghosts & Flowers...   





9- Silver Session (1998, SKR)


Esta é uma das mais ruidosas gravações do SY e nasceu meio que ao acaso. O grupo estava em estúdio para gravar overdubs dos vocais do álbum A Thousand Leaves, mas o trabalho estava impossível: um grupo tocava funk metal na sala acima deles e o som não parava de vazar. Então, resolveram ligar todas guitarras, pedais e amplificadores para combater barulho com mais barulho... Tendo gravado todo aquele ataque sonoro, depois mixaram e editaram o material, que se transformou neste álbum de noise. Dividida em oito partes, a gravação de cerca de 30 minutos deve ser ouvida continuamente, como uma sessão de free impro com as sequências formando um todo cacofônico, intrigante e, se aumentar um pouco o volume, potencialmente ensurdecedor.






10- SYR 8- Andre Sider Af Sonic Youth (2008, SYR)


Os 57 minutos de música sem interrupção que compõe este álbum foram captados ao vivo em uma apresentação no Roskilde Festival, na Dinamarca, em julho de 2005. Após fazer um show "tradicional" dois dias antes, o SY voltou ao palco do festival acompanhado de Mats Gustafsson (sax) e do gênio do noise japonês Merzbow. Com evolução e transformação constante e ininterrupta, essa música se desenvolve em diferentes sessões, passando por momentos quase melódicos em seu  início, outros com a voz de Kim Gordon em evidência, outros com o sax assumindo o protagonismo e alcançando camadas de altíssima ruidosidade (especialmente a partir dos 20 minutos), em uma peça de complexa formatação e instigante resultado. Um dos melhores momentos do SY em suas faces mais radicais  ou como diz, em dinamarquês, o título do álbum: Andre Sider Af Sonic Youth...    





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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros, Zumbido e Jazz.pt. Atualmente escreve sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)