CRÍTICAs Os álbuns clássicos do lendário Grupo Um estão
chegando finalmente ao mundo digital. Agora é a vez de
Reflexões Sobre a Crise do Desejo...
Por Fabricio Vieira
O Grupo Um comemora 5 décadas de história levando,
finalmente, seus três discos clássicos ao mundo digital. O primeiro
disponibilizado foi o registro de estreia do conjunto brasileiro, “Marcha Sobre a Cidade” (1979).
Agora é a vez de “Reflexões Sobre a Crise do Desejo” (1981), que chega nesta
sexta-feira às plataformas de streaming (e também à venda em formato digital
pelo Bandcamp, que oferece como bônus um livreto com ensaios, depoimentos e muitas
fotos), em versão recém-remasterizada a partir das gravações analógicas. Em
outubro, a trilogia ficará completa com a edição digital de “A Flor de Plástico
Incinerada” (1982). O destino dos três álbuns clássicos do revolucionário grupo
paulistano ilustra bem como é fazer música criativa, fora do mainstream e das
garras da indústria. Produções independentes, esses discos, mesmo tendo se
tornado lendários, passaram longos períodos fora de catálogo. Em CD, foram começar
a aparecer apenas a partir de 2002, por meio do selo independente Editio
Princeps. Com LPs e CDs fora de catálogo há muito, o acesso à preciosa música
do Grupo Um esteve bem restrito nos últimos anos. Assim, este desembarque no
mundo digital é algo realmente a ser comemorado. [a quem interessar: existe um
último exemplar do CD de Reflexões Sobre a Crise do Desejo, original e lacrado,
à venda na loja Pop's Discos, em SP...]

O Grupo Um nasceu pelas mãos e ideias dos irmãos
Lelo
Nazario (pianista e compositor) e
Zé Eduardo Nazario (baterista e percussionista),
em meados de 1975. Logo uniu-se a eles o baixista Zeca Assumpção, formando o
núcleo do projeto. Em sua história de 50 anos, o Grupo Um sempre contou com a
participação de um saxofonista, passando por suas fileiras Roberto Sion, Mauro
Senise, Teco Cardoso e, mais recentemente, Vinícius Mendes. No baixo, contaram
também com Rodolfo Stroeter e Frank Herzberg. O alemão Felix Wagner (piano e
clarinete) foi outro parceiro de grande importância nesta história. E na época
de seu primeiro disco, houve ainda a colaboração do percussionista Carlinhos
Gonçalves. Após o estrondoso impacto causado por “Marcha Sobre a
Cidade” na cena instrumental brasileira, registro de setembro de 1979 editado de
forma independente pouco depois, não deve ter gerado pouco furor dentre os
interessados em música criativa o surgimento de seu sucessor:
Reflexões Sobre a
Crise do Desejo. “
É um disco que reafirma o compromisso do Grupo Um com essa
mistura especial de música de vanguarda, o jazz e a música brasileira
contemporânea”, diz Lelo no encarte do CD. E essas três faces são bem
exploradas com o passar das faixas do álbum, ora oscilando mais para
um lado, ora para outro, ora mesclando tudo em simbiose criativa.
Reflexões Sobre a Crise do Desejo, se esteticamente uma
continuação de seu antecessor, trazia muitas inovações. A começar pelos músicos
que participaram do registro: junto aos irmãos Nazario e a Mauro Senise (sax
alto, flauta piccolo), entraram na banda Felix Wagner (piano elétrico,
clarinete alto) e Rodolfo Stroeter (baixo acústico e elétrico), abrindo possibilidades
expressivas outras, exploradas sem amarras. O álbum original apresentava 5
peças, centradas em composições de Lelo Nazario (exceção a “Vida”, de Zé
Eduardo). A gravação foi feita em duas sessões, em junho de 1981, no estúdio
JV, em São Paulo. A versão em CD oferecia 8 faixas, com versões alternativas de
“O Homem de Wolfsburg” e da faixa-título e uma peça vinda de um registro anterior,
de 1977, “Mata Queimada”, criada originalmente para um documentário.
As formações instrumentais mudam a cada faixa do disco, indo
de solo e duo a quinteto.
Reflexões abre com “O Homem de Wolfsburg”, título em
homenagem a Felix Wagner, músico alemão nascido na cidade citada no título, que
se radicou por longo período no Brasil. A faixa, de 5 minutos, inicia com uma introdução ao piano – “
composta como uma balada, que acabei tocando em
um andamento bem rápido”, diz Lelo –, que dura quase 1 minuto, até a entrada
dos sopros e bateria, tomando o horizonte em pulso cada vez mais intenso; isso
nos leva a seu núcleo, marcado por piano solando sobre um irresistível tema anunciado pelos sopros e cantarolado pelo baixo, no qual o quinteto mergulha em complexa e justíssima
interação, até seu desfecho, com a energia já lá em cima. Uma abertura e tanto
(a mais breve versão alternativa, que aparece apenas no CD, consegue concentrar
ainda mais a intensidade). Na sequência, vamos para um dueto de piano e bateria,
“America L”. A faixa remete ao mais íntimo do Grupo Um – fácil imaginar que foi
exatamente assim que o projeto nasceu, com os dois irmãos em gigs caseiras de
duo-improvisos. Conexões com o universo free jazzístico, onde duos do tipo são
relativamente comuns, são inevitáveis. Apesar de não ser puramente improvisada
(carrega elementos compostos), “America L” desfia uma liberdade dialogal ímpar,
fluindo com precisão. Já “Vida” é uma peça para percussão solista, na qual Zé
Eduardo explora caminhos abertos que vinha desenvolvendo à época; afora
instrumentos brasileiros, que abrem a peça em tom carnavalesco, de festa
popular, ele utiliza sua voz e a khena do Laos (mudando muito o clima com o
passar dos minutos), percorrendo uma sinuosa via polirrítmica, algo “
que
refletisse minha concepção de grupo de percussão”. Assim terminava o lado A do LP original.
Quando o ouvinte virava o LP na vitrola, mesmo que já viesse
navegando inebriado pelas vias abertas pelo Grupo Um, inevitavelmente tomaria
um choque. O lado B de
Reflexões abria com “Mobile/Stabile”, a mais
vanguardista peça do cardápio da banda. Aqui o quinteto voltava à ação. A
instrumentação da faixa é: piano Yamaha CP-70 (Lelo); piano elétrico Fender
Rhodes (Wagner); sax alto e piccolo (Senise); baixo Fender Jazz (Stroeter);
bateria e percussão (Zé Eduardo). Há ainda a fundamental adição de uma base
pré-gravada, composta a partir de sons eletrônicos, por sobre e entre a qual os
instrumentistas desenvolverão suas ideias. O resultado é a mais radical peça
criada até então na música instrumental/popular brasileira. “Mobile/Stabile”
foi originalmente composta por Lelo em 1976. Houve uma primeira gravação dela
em 1977, com participação de Roberto Sion no sax, ainda inédita. Também aparece
em “Uma Lenda ao Vivo” (Selo Sesc, 2016). Mas é nesta versão de
Reflexões que o
ápice da composição é atingido. Música eletroacústica, free jazz, improvisação livre, elementos expressivos dessas searas se unem para momentos de intensa
exploração de sonoridades desconcertantes, em pouco mais de 7 minutos. Zé Eduardo diz que a peça “
envolvia uma grande energia coletiva, em que a bateria
e a percussão tinham uma função avassaladora, com momentos de repouso e
explosão (...). Era necessário interagir com a fita pré-gravada e o restante do
grupo, mas principalmente sentir a música sem nenhuma hesitação ou medo do
efeito que viesse a causar” (encarte do CD). Efeitos que causam arrepios até
hoje. Depois dessa hecatombe, o disco ruma para encerrar com a faixa-título.
Aqui o tom baixa algo, estamos apenas em formação de piano-contrabaixo-bateria,
em uma faixa de caminhos sensivelmente livres, com a improvisação coletiva
sendo um importante condutor das ideias do trio – um preciso desfecho para uma
obra de inspiração maior, um dos pontos luminosos da história do
jazz/instrumental mais inventivo gestado na cena brasileira.
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez Mestrado em
Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por
alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou
também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos
anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de
liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo
Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live
in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)