PLAY IT AGAIN... (novidades argentinas)


LANÇAMENTOs
  Em destaque, álbuns de artistas provenientes da Argentina, títulos que representam diversas faces do jazz mais criativo editados nos últimos tempos. Ouça, divulgue, compre os discos...  


Por Fabricio Vieira

 

Urdimbre

MdP

Discos ICM

A música criativa feita na Argentina não se resume à cena de Buenos Aires. Apesar de ser algo mais difícil chegar ao que se produz fora da capital, não deixamos de nos deparar com projetos interessantes vindos de outras localidades, como o trio MdP – cujo nome remete aos músicos, mas tmabém indica suas origens, Mar del Plata. Aqui unem forças o saxofonista Fernando Moran, Martin de Lassaletta (contrabaixo estendido) e Javier Puyol (bateria e objetos). Trata-se de um trio que explora a free improvisation; junto há cerca de uma década, produzem uma música bastante azeitada em sua liberdade, a partir do desenvolvimento de “un lenguaje propio y dinámico pero arraigado, a su vez, a las tradiciones de la música improvisada o no idiomática de mediados del siglo XX”. Urdimbre foi gravado no espaço cultural ECEM, em Mar del Plata, em maio de 2024, e traz oito peças. Editado apenas em formato digital.

 

Desvíos

Eduardo Elia

577 Records

A Argentina tem, indiscutivelmente, muitos pianistas de primeira linha a explorarem o universo jazzístico. Um desses artistas, que tem ganhado crescente destaque internacional em anos recentes, é Eduardo Elia. Vindo de Córdoba, ele estreou em 2008 com “Callado” e agora chega a seu décimo álbum, Desvíos, editado pelo selo nova-iorquino 577 Records. O disco foi gravado em dezembro de 2024 no Teatro del Libertador San Martín, em Córdoba, e traz 12 peças improvisadas, nomeadas apenas com uma sequência numérica (a indicar que tratam-se de partes de um todo, como Keith Jarrett fez muito em sua carreira solista), não muito extensas cada, indo de 1 a 4 minutos. Este registro solista (não é a primeira vez que se embrenha pelo formato) mostra um pianista com uma linguagem muito própria e madura, oferecendo uma música de sensível lirismo, com expressividade por vezes tocante.

 

Presvicio

Santiago Lacabe Quinteto

ears&eyes Records

Após a boa recepção do álbum “JusticiAdivina” (2022), o baterista Santiago Lacabe se viu diante de uma encruzilhada, com a morte do cornetista Enrique Norris (1957-2022), uma voz vital para seu quinteto. Para manter o projeto ativo, ele resolveu depois de um tempo convidar o experimentado trompetista Juan Cruz de Urquiza para se juntar a eles. É nesse contexto que surge Presvicio, seu terceiro disco. Formado ainda por Inti Sabev (clarinete baixo e soprano; excelente músico), Jerónimo Carmona (contrabaixo) e Nicolas Boccanera (piano), o quinteto apresenta sete peças – seis composições de Lacabe e uma releitura do standard “Moon River” –, captadas ao vivo no Estudio Libres (Buenos Aires), em fevereiro de 2024. Quem já conhecia o quinteto encontrará elementos hard bop mais presentes aqui, mas vale notar a descrição da música no release: “Las composiciones se apoyan en diferentes contextos estilísticos donde conviven el jazz tradicional, el rock, el free jazz, la avant-garde y la música tradicional de África Occidental”. Publicado em formato digital e edição limitada em CD.

 

Pressure Sensitive

Paula Sanchez

Relative Pitch Records

A violoncelista Paula Sanchez tem ampliado seu espaço na cena em anos recentes. Ela estudou violoncelo na Universidad Nacional de San Juan e em 2018 foi para a Europa, onde fez mestrado focado em improvisação na Musik Akademie, na Basileia. Baseada na Suíça, tem desenvolvido um trabalho no qual se destaca sua arte solista. Desde “Inscape”, editado pelo selo português Creative Sources em 2020, Sanchez tem construído uma estimulante discografia. Sua linguagem tem em técnicas estendidas uma de suas forças centrais, com ela explorando junto a sons únicos extraídos de seu violoncelo elementos não convencionais: neste novo álbum, por exemplo, o papel celofane entra como segundo veículo sonoro. E a violoncelista tem sido bem-sucedida em fazer sua arte ser ouvida; basta notar que este seu registro solista está saindo pelo prestigioso selo nova-iorquino Relative Pitch Records. Pressure Sensitive traz seis peças, de três a oito minutos, que podem ser ouvidas como um todo, como uma apresentação contínua. Editado em CD.

 

Viaje hacia lo inesperado

Orquesta Inorgánica

Numeral

Este é o segundo disco lançado pela Orquesta Inorgánica (OI), projeto que surgiu em 2018 sob o comando do saxofonista Jorge Torrecillas. “In this new album, written arrangements, directed and collective improvisation and individual improvisation come together as never before. The compositions follow a path within atonalism and other contemporary techniques”, diz o release. A orquestra de 13 músicos parece ainda mais azeitada, com os instrumentos de sopro (flauta, trombone, clarinetes e saxes) ocupando o núcleo duro de sua musicalidade. Viaje hacia lo inesperado foi registrado em julho de 2024, no estúdio Haciendo Discos (Tandil), trazendo seis novas extensas composições, que variam de 6 a 15 minutos, de Torrecillas. Editado em digital.

 


Siesta

Wallace/ Vazquez/ von Schultz

577 Records

Nesta gravação encontramos os argentinos Pablo Vazquez (baixo) e Marcelo von Schultz (bateria) em andanças pela Europa no ano passado. Por lá, eles se uniram ao pianista estadunidense Eli Wallace. O trio havia se encontrado pela primeira vez uns meses antes, quando o pianista esteve em Buenos Aires, tendo tocado juntos no clube Prez, importante palco para a cena jazzística portenha atual. Seria no reencontro deles, em Berlim, em maio de 2024, no Kühlspot Social Club, que nasceria o primeiro registro do grupo, agora editado como Siesta. O resultado são oito peças, em cerca de 40 minutos de intensa música, que mostra um trio afiadíssimo, oferecendo um trabalho com marcas muito fortes e particulares. Sai em edição limitada (200 cópias) em CD e digital.

 


Collector

Ramiro Zayas

ears&eyes Records

Radicado em Berlim, o pianista Ramiro Zayas chega a seu terceiro álbum. Collector apresenta 14 faixas, que se desenvolvem como um painel sonoro-imagético contínuo. “At the heart of Collector lies an evocative concept: an archive of sounds and images carefully gathered over time and transformed into a musical narrative”, diz o release, que vai fazendo crescente sentido enquanto as peças vão se sucedendo e a escuta se familiarizando com seu universo expressivo – vale notar que a música de Zayas é apresentada como uma mescla de elementos do jazz modal, da free improvisation e da música argentina. As composições se revelam bem elaboradas e o grupo internacional/instrumentação convocado para o projeto muito ajuda no cativante resultado final, estando ao lado de Zayas: o francês Baptiste Stanek (saxes); o porto riquenho Jonathan Acevedo (tenor); o israelense Yossi Itskovich (trombone); o italiano Gianni Narduzzi (baixo); e o argentino Sebastián Greschuk (trompete) – um conjunto de câmara, sem bateria, decisão fundamental para a sonoridade apresentada. Editado em digital e edição limitada em CD.

 

 

NERR – Filing Open Spaces

Sofía Salvo/ Mark Holub/ Johanna Pärli

Pattern Dissection

Sofía Salvo é uma rara musicista dedicada somente ao sax barítono. Vinda de Buenos Aires e radicada há alguns em Berlim, Salvo tem tido a oportunidade de fazer muitas parcerias internacionais, sedimentando sua voz como uma das mais estimulantes em seu instrumento na contemporaneidade. Aqui a saxofonista se apresenta em trio, junto à baixista suíça Johanna Pärli e ao baterista estadunidense Mark Holub. O trio tocou junto pela primeira vez em 1º de setembro de 2023, em uma gig na Cashmere Radio, em Berlim. No dia seguinte, voltaram a se reunir, desta vez no estúdio do produtor Adam Asnan – é daí que vem esta sessão. São pouco mais de 40 minutos de música, intenso free jazz repartido em quatro temas. Disponível em digital e edição limitada em vinil de 140 g.

 


Incertezas

Andrés Elstein

Isla Desierta

O baterista Andrés Elstein é um dos músicos de destaque da cena jazzística de Buenos Aires. Em mais de uma década de trajetória, gravou com muitos dos nomes mais interessantes de seu país, enquanto toca seus projetos próprios. Incertezas é seu quinto álbum como líder; aqui, ele volta a criar com seu quarteto, formado por Lucas Goicoechea (sax alto), Nataniel Edelman (piano) e Juan Bayón (contrabaixo). Gravado no Estudio Dr. F (BsAs), em novembro de 2023, o disco apresenta oito novas composições de Elstein. Se de um modo geral podemos falar simplesmente em jazz contemporâneo, encontramos no álbum momentos de mais ampla exploração sonora, como nas imperdíveis “Escucho Grillos” e “Los tempos del Goico”, e peças com ar mais diretamente jazzísticos, como a balada “Querida Maga” e “El pez por la boca muere”. Editado apenas em formato digital.

 


Exhaust

Camila Nebbia/ Downes/ Lisle

Relative Pitch Records

A saxofonista argentina Camila Nebbia é uma das mais ativas vozes da música criativa contemporânea. Sua discografia, com diferentes parceiros de diversos lugares, ganhou novo capítulo na semana passada, com o lançamento de Exhaust. Registro em trio com os britânicos Kit Downes (piano) e Andrew Lisle (bateria), foi captado no Morphine Raum, em Berlim (onde ela vive atualmente), em 2023. São seis peças, onde a improvisação nos leva por caminhos não raro inesperados, indo de contrapontos melódicos a passagens de elevada intensidade acústica. Nebbia, Downes e Lisle produzem uma música muita ajustada, deixando no ar a impressão de que se tornaram um grupo fixo (não sei se é o caso), daqueles que tocam noite após noite cada vez mais telepaticamente. Publicado em formato digital e também em CD.

 

Rastro o vacío

Camila Nebbia

Lilaila Records

Um capítulo à parte na trajetória de Camila Nebbia é representado por seu trabalho solista. Rastro o Vacío é o seu 4º álbum neste formato, que ela começou a testar com “De este lado” (2019). Nesses registros solitários, Nebbia gosta de explorar também sua voz poética — tanto escrevendo textos como os recitando —, aqui representada por “Las Horas”. São trabalhos mais íntimos, não apenas em sua sonoridade, com sua voz solitária. Esses registros parecem nos revelar rastros pessoais, memórias, medos, angústias (traumas?), fúrias também (as três primeiras peças do álbum parecem como que a gritarem, um desabafo incontido que vem lá de dentro), que fazem da experiência de ouvi-los algo profundamente tocante — não é gratuito que costumem trazer títulos (discos e composições) em espanhol, mesmo que ela seja uma artista realmente internacional hoje. Não dá para achar que se conhece a obra de Nebbia se não se debruçar com o vagar e atenção necessários nesses álbuns solistas, que revelam sua mais íntima expressividade. Temos aqui 17 novas peças, que vão de 1 a quase 10 minutos, compondo um painel de envolventes ideias. O sax tenor é o protagonista; por vezes, se desvela em modo enérgico e rascante como pouco vimos antes (como em “Sueño raro” e “Tierra seca”). O disco foi gravado neste ano no Mamut Studio, KRK, Croácia (três faixas foram captadas no estúdio caseiro da artista, em Berlim). Sai pelo selo independente Lilaila Records, cofundado por Nebbia, María Grand e Marta Sánchez, em edição limitada em CD.


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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez Mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)