Michael Bisio: quatro décadas de música


CRÍTICAs
Dois discos do contrabaixista estadunidense Michael Bisio, gestados com uma diferença de quatro décadas, chegam aos ouvintes... 



Por Fabricio Vieira  

A primeira vez que ouvi Michael Bisio tocando foi em um álbum da trompetista Barbara Donald (1942-2013), “The Past and Tomorrows”, de 1983. O nome do contrabaixista aparecia na capa como Mike Bissio (assim, com um “s” a mais; o Mike surgiria em outros discos até meados de 2000). Isso umas duas décadas atrás, quando não estava atento a seu trabalho ainda. Depois de encontrá-lo em diferentes registros com o passar dos anos, ao lado de nomes como Joe McPhee, Matthew Shipp e Ivo Perelman, é que a atenção à sua obra foi se expandindo. Sua discografia ganhou corpo mais rapidamente a partir dos anos 2000 e esses discos foram aos poucos chegando nas mãos (e ouvidos). Mesmo ele sendo um artista ativo da cena jazzística desde os anos 80, aquela era uma época em que as possibilidades de registrar a música que se ia produzindo eram infinitamente mais escassas.   

Há algumas semanas, fui surpreendido com a reedição do álbum Ours, um há muito fora de catálogo disco de Bisio resgatado de seus tempos iniciais como músico profissional, registro de fevereiro de 1983. Ao mesmo tempo, saiu seu mais recente disco, Morning Bells Whistle Bright, gravado exatamente 40 anos depois daquele, em março de 2023. Poder ouvir os dois discos, disponibilizados quase ao mesmo tempo, é uma oportunidade para refletir sobre diferentes épocas para o jazz mais criativo, tendo um artista de alto calibre como guia. Nascido na cidade de Troy, Nova York, em 1955, Bisio se mudou para Seattle no fim dos anos 70. Viveria por lá por cerca de três décadas, onde se sedimentou como músico profissional, montou seus primeiros grupos, trabalhou com a pioneira do free jazz Barbara Donald... Interessante que inclusive foi por lá que ele conheceu um fundamental parceiro futuro, Matthew Shipp, quando o pianista foi tocar na cidade no começo dos anos 90.

Ours nos leva ao capítulo inicial da trajetória de Michael Bisio. Registrado em 2 de fevereiro de 1983, no Northwest Recording, Seattle, e creditado a seu sexteto, foi editado pelo pequeno selo local C.T. Records, criado por Charles Tomaras. O LP realmente abriria portas: resenhado pela Cadence Magazine, chegou ao conhecimento de Keith Knox, que gostou do que ouviu e convidou Bisio para gravar pelo seu selo, o prestigioso Silkheart Records, abrindo novas portas a ele. A reedição que vem à luz agora, independente, está se dando apenas em formato digital, mas é algo a se comemorar de qualquer forma (quantos, afora colecionadores ou gente que viveu a época, considerando que jamais tinha sido relançado em qualquer formato, já haviam escutado este álbum?). “Jumping to this re-release: as stated above Charles and I talk often. Ours and Ours adjacent are topics for discussion. At one point Charles looked for and found the original tapes. Through some Charles magic or voodoo, he was able to digitize them. Preparing them for re-release in digital format after 42 years of hibernation”, conta o músico.

Bisio fez esta gravação acompanhado de instrumentistas que talvez os fãs de free jazz pouco conheçam: o pianista Bob Nell, amigo dele desde a juventude; o saxofonista Richard Mandyck; o trompetista Ron Soderstrom; a violinista Beth Chandler; e o baterista John Bishop. Alguns deles ainda tocariam com o contrabaixista, mas, de um modo geral, seguiram rumos na música que não os levaram ao free jazz/free impro que marca o trabalho de Bisio. Ours traz oito peças, sendo as composições assinadas por Bisio e Mandyck. É uma música que carrega elementos pós-bop, com composições abertas até a swingantes linhas, sem ignorar a liberdade avant-garde especialmente nos quentes solos apresentados (a destacar o intenso free bop de “Cabin Fever” e a mais abstrata “Downtown Italy”). Na contracapa original, Bisio é apresentado como alguém com experiência sinfônica, fortemente influenciado por um certo tipo de heavy jazz e herdeiro de Chambers, Mingus, Holland e McBee (uma das peças, curiosamente a mais balada, “Charles Too!”, é dedicada a Mingus).  

Pulamos 40 anos. Em 8 de março de 2023, Bisio entrava no Park West Studios, no Brooklyn nova-iorquino, para tocar um projeto com a pianista coreana Eunhye Jeong. Ao duo se juntaram em parte das peças Joe McPhee, com seu sax tenor, e o baterista Jay Rosen – uma nota curiosa: Eunhye Jeong nasceu apenas depois da gravação de Ours, em 1986! Estamos aqui em um outro tempo e, inevitavelmente, em um outro universo sonoro, com o free impro dando as cartas. Entre os dois registros, Bisio se tornou um dos referenciais baixistas do free, um improvisador livre com uma invejável bagagem de palco e estúdio. Morning Bells Whistle Bright, editado em CD e digital pelo ESP-Disk, traz 10 novas peças. As primeiras quatro delas são duetos de contrabaixo e piano. Bisio e Jeong já agarram os ouvintes no tema de abertura, “Point Expands the World”, com um diálogo marcado pelo pulso sem brechas das cordas, que leva a escuta a uma quase saturação, enquanto os teclados se perdem em labirínticas linhas. Uma abertura daquelas que agarra o ouvinte de cara. Na sequência, “And Then She Was There” muda completamente o tom, com Bisio iniciando o jogo em uma longa sequência de arco, trazendo um ar mais sombrio, reforçado pelos espaçados toques ao piano. “Drinking Galactic Waters” inicia a segunda parte do disco com o quarteto em ação. McPhee abre a peça com suaves notas ao sax, com a intensidade subindo gradualmente (o quarteto manterá algo desse tom nas faixas que protagoniza, sem desembocar em energy music como poderia ser esperado de um grupo desses). Outras combinações pontuam o registro, com “Jaybird” trazendo um encontro (marcado por sussurros e silêncios) de piano e bateria; e “Superpreternatural” com um dueto pulsante de contrabaixo e bateria. Morning Bells Whistle Bright é um fino exemplar do melhor free impro contemporâneo. E ouvir esses dois álbuns atesta a força da arte de Bisio.

 

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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez Mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)