LITERATURAs: Tédio Terminal, de Izumi Suzuki


CRÍTICAs
Cultuada escritora japonesa Izumi Suzuki tem seus contos publicados no Brasil pela primeira vez... 



Por Fabricio Vieira

O nome da escritora japonesa Izumi Suzuki (1949-1986) faz parte do imaginário dos fãs de free jazz, mesmo que não sejam especialmente interessados na literatura do país asiático. Suzuki foi casada com a lenda do sax Kaoru Abe (1949-1978), sendo a conturbada relação entre os dois retratada no filme “Endoresu Warutsu” (Endless Waltz, 1995), dirigido por Kôji Wakamatsu (baseado em um livro da escritora Mayumi Inaba). Abe morreu de overdose; Suzuki se enforcou. Quem após ver o filme ficou especialmente interessado em conhecer a obra da escritora, se deparou com o empecilho dela não estar traduzida no ocidente (ao menos não em livro, com distribuição comercial). Apenas em 2021 a editora independente Verso começou a publicá-la em inglês, com a coletânea de contos “Terminal Boredom” (a editora acaba de soltar o terceiro título dela, o romance “Set My Heart on Fire”, o que demonstra crescente interesse do público por suas letras). Esta descoberta de Suzuki no ocidente aos poucos vai ganhando força, tendo já gerado também uma tradução para o italiano (“Noia Terminale”). E agora chegou a vez de os brasileiros terem sua introdução ao universo da autora japonesa, com a publicação de Tédio Terminal, pela editora DBA.


Izumi Suzuki foi uma artista que circulou amplamente pela contracultura e o underground japonês da década de 1970. Antes de sedimentar seu espaço como escritora, fez trabalhos como atriz e modelo, participando de filmes de figuras como o citado Wakamatsu e sendo parte da lendária trupe teatral de Shuji Terayama. Sua carreira como escritora ganhou força e destaque especialmente em sua última década de vida. O conto foi sua forma de expressão por excelência. E o principal de sua obra é enquadrado na gaveta da ficção científica. Ela esteve na primeira leva de escritoras a adentrar esse campo narrativo no Japão, passando a ser publicada em revistas e coletâneas do gênero em seu país quando isso era dominado apenas por autores masculinos.

Tédio Terminal é uma coletânea que traz sete contos, infelizmente com a data de publicação de cada um (e onde isso originalmente ocorreu, se em revista, outro livro etc.) não sendo apresentada (achei algumas datas em artigos em inglês, citadas quando possível). Chama a atenção o fato de a edição brasileira ser a mesma que a publicada em inglês poucos anos atrás, inclusive a capa é igual (a italiana também se trata do mesmo livro). Tudo indica que foi a editora japonesa Bunyū-sha que organizou este volume, selecionando sete contos que faziam parte do mais extenso “Covenant: The Complete SF of Izumi Suzuki”, publicado em japonês no ano de 2014. Ou seja, a editora japonesa preparou um volume for export, como forma de apresentar a escritora ao ocidente. Vale notar ainda que, tanto na edição em inglês quanto na brasileira, consta o apoio da Japan Foundation. Importante destacar que a edição em português foi traduzida diretamente do japonês, com o certeiro trabalho dos experimentados Rital Kohl, Andrei Cunha e Eunice Suenaga.

Os sete contos do livro, escritos em algum momento entre as décadas de 1970 e 80, refletem questões ainda contemporâneas, o que faz desta uma obra sensivelmente atual. As narrativas de Suzuki costumam ter personagens femininas como protagonistas. As tradicionais trilhas distópicas que marcam a ficção científica estão presentes, não esquecendo de cenários em outros mundos, tecnologias futuristas ou até algum ser alienígena. Mas a arte de Suzuki, mais centrada em personagens específicos e crises individuais – se mantendo distante das narrativas de sociedades em mutação/revolução muito presentes nessa seara –, extrapola o gênero em questão. De um modo geral, o cenário por onde as histórias transcorrem, se em tempos incertos futuros, refletem a Tóquio de sua época, sua cena underground de bares e cafés. Sua literatura tem como marca fundadora o ato de explorar distorções da realidade por vias oníricas (lembrando que onírico engloba também pesadelos, delírios, devaneios). Personagens em crises pessoais, drogas, alienação, anseios e desesperança permeiam sua criação. Em seus textos, a autora desfamiliariza o mundo real para levantar  questões que, talvez se não estivessem incorporadas à estrutura da ficção científica, encontrassem empecilhos maiores para serem editadas e divulgadas, especialmente na sociedade conhecidamente machista do Japão à época.

(foto: Nobuyoshi Araki)
Vejamos um conto como “Um Mundo de Mulheres com Mulheres” (1977), de discurso mais diretamente feminista. Aqui a narrativa se passa em um tempo futuro não muito preciso, ao que parece século XXI, onde temos uma sociedade matriarcal pós-apocalíptica, na qual os homens, representantes de uma linhagem desviante, geradores de guerras, desarmonia e destruição (“Os homens também são humanos, mas são uma mutação. São bárbaros, aberrações”), estão praticamente extintos, sendo que os restantes vivem confinados na “Zona Habitacional de Isolamento”. Por outras vias temáticas vão se desenvolver as outras peças, apesar de as protagonistas mulheres serem dominantes. “A Fumaça Entra nos Olhos” (1979) traz a protagonista Leiko, viciada em drogas/comprimidos, em meio à bruma de um relacionamento passageiro, núcleo do conto, envolto em uma opacidade que só se revelará ao leitor em seu fim. Apesar de a música não ser o principal da história, Leiko vai trabalhar em um bar de jazz, universo que Suzuki frequentava e, imagino, conhecia bem – e disso ficam algumas marcas pelo caminho: “Querendo mudar de assunto, comentei que aquela música até que era boa. A dona do bar conteve o riso e apontou a capa do disco. A música ‘até que boa’ era A Love Supreme, do Coltrane. Eu não estava bem”, diz Leiko, que também falará sobre estar tocando “Last Date, do Dolphy” na sequência em que o jazz surge como música de fundo.

A música, aliás, é um ponto nevrálgico na literatura de Suzuki. Referências musicais estão espalhadas pelas páginas e, se o leitor se atentar a isso e criar uma playlist baseada nas indicações que surgem no decorrer da obra verá novas janelas se abrindo. A começar por títulos. “A Fumaça Entra nos Olhos” – em inglês, “Smoke Gets In Your Eyes” – é uma canção estadunidense da década de 30, gravada por muita gente (até Charlie Parker!), que seria imortalizada na versão dos The Platters (o começo da letra é citada em momento decisivo do conto, impossível não ecoar a voz dos Platters nesse momento). Outro conto chama “You My Dream”, que é uma música da banda japonesa de new wave/pop rock Sheena & The Rokkets (dê um play na música antes de começar a ler e verá o que acontece). Em “Lembranças do Seaside Club”, mais música. Aqui as personagens estão sempre cantarolando, assobiando, ouvindo música na jukebox do bar: “Que música é essa mesmo?”/ “I Can't Keep From Crying Sometimes, responde Emi” (referência a uma canção da banda de rock Blues Project, de meados dos anos 60). “Shotgun ressoa no silêncio entre nós três.” – provável citação à “Shotgun”, da banda de R&B/soul Junior Walker & The All Stars (mais uma vez, dê play e veja o conto se transformar). “Começa a tocar uma canção tão melosa que quero morrer. Me viro para olhar a tela e vejo o nome. I Got a Mind To give Up Living, da Paul Butterfield Blues Band”. A temperatura sonora se alterna bruscamente então: “Dois dias depois, vou ao Anjo da Sexta. Está tocando Heroin, o que me alegra”. E por aí vai.

O conto que fecha a coletânea é o que dá seu título: Tédio Terminal. Segundo informações encontradas, data de 1984 e teria sido o último texto que publicou em vida – seu nome não poderia ser mais sintomático. Esta é a história mais sensivelmente realista. Ao menos assim ressoa para leitores contemporâneos. Em um futuro não muito distante, com uma horda de desempregados e desocupados que não para de crescer, o grande foco das pessoas são as telas. Não apenas a onipresente TV (para a qual estão desenvolvendo um implante cerebral que faz com que o espectador sinta ainda mais prazer em ficar à frente dela). As pessoas podem se ver na tela do telefone quando ligam uma para outra. O casal de protagonistas vê um homem matando uma mulher e a preocupação é: será que alguém filmou? A vida real é tão entediante, as pessoas tão apáticas, que perderam até a vontade de comer (a maioria dos jovens está com subpeso). Só a geração mais velha (menos viciada em telas?) ainda demonstra ter energia. “Comemos sentados lado a lado, assistindo ao vídeo que passava na tela. Tínhamos que olhar para algo para nos sentirmos mais relaxados.” Alguma semelhança com o mundo atual?

Em conversa com a tradutora Rita Kohl (para uma reportagem sobre tradução de literatura asiática), ela destacou a importância do resgate de nomes como a Izumi Suzuki, uma autora, dentre quantas outras, deixada de fora do cânone independentemente da repercussão que sua obra tenha tido em vida. Fica a expectativa de que a boa recepção que o trabalho de Suzuki teve em inglês se repita por aqui, para que outros títulos seus tenham a chance de vir à luz em português. Mais ainda: que outras autoras japonesas esquecidas pelo tempo tenham a oportunidade de serem resgatadas.  


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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez Mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)