El Camino Sigiloso de Paula Shocron


CRÍTICAs A pianista argentina Paula Shocron acaba de editar um novo disco, o imperdível El Camino Sigiloso... 

 


Por Fabricio Vieira

Paula Shocron andava meio sumida. A pianista argentina, uma das vozes mais inventivas e instigantes de sua geração, em duas décadas de intensa produção musical nunca tinha ficado tão quieta como em anos recentes. Mas era por um bom motivo: agora ela ressurge com um novo trabalho. E novo aqui não se refere apenas a “recém-editado”. É algo realmente fresco que ela nos traz, abrindo sua tão expressiva criação artística a fronteiras outras. Se em Algo en un Espacio Vacío, um de seus últimos projetos, de 2021, pudemos vê-la tocando um outro instrumento – o violoncelo –, agora a tônica é a palavra. El Camino Sigiloso, que acaba de sair, tem na palavra, na declamação poética, uma linha mestra.

Shocron não deixou o piano de lado, ele está presente na maioria das faixas. Mas é para a voz dela que os sentidos irão direcionar o foco. A seu lado, apenas cordas, que realçam a aura camerística da obra. As cordas ficam a cargo de: Sara Lizola Fedullo (violino), Félix Valentín Nieto Martínez (viola), Juan Ignacio Ferreras (violoncelo), María Gabriela Areal Vélez (violoncelo) e Brune La Cava (contrabaixo). Em uma peça, “Nosotras”, participa ainda a guitarrista Candelaria Molina Zavalía. As formações dessas cordas variam de uma faixa a outra, indo do acompanhamento solista a duos, quartetos e mesmo o quinteto todo junto (em “Orquesta”). Os textos apresentados a cada peça foram escritos por ela durante a pandemia. “Estos son reflexiones, juegos de palabras, o historias de fantasia”, explica Shocron. “Toda la composición y los collages sonoros atraviesan y son a partir de estas palabras.” Esta não é a primeira vez que ela investiga tais possibilidades. Lembro de descobrir com surpresa sua voz em “Embudos”, peça do disco de estreia do SLD Trío. E também nos deparamos com sua voz em “Caer” e “Ritmo”, de Algo en un Espacio Vacío. Mas sua voz nunca esteve tão maduramente sob controle, explorando, laborando as palavras com primor. E isso é decisivo para o sucesso da proposta aqui apresentada. 

Se El Camino Sigiloso é bastante coeso como uma obra realmente elaborada, as variações estético-expressivas são palpáveis – e apenas engrandecem o resultado alcançado. São seis peças, totalizando cerca de 38 minutos. “Neurosis” traz uma atmosfera de horror inebriante, sufocante, onde a voz angustiante, desesperada por vezes, é acompanhada apenas por soturnos toques ao piano e o violino cortante de Fedullo. Em outra vibração, está o melancólico lirismo de “Mutación”, com o piano protagonista como em nenhuma outra peça, entrecortado por intervenções pontuais de violino e violoncelo. “Orquesta” já traz uma conexão mais direta com o universo do erudito contemporâneo, com o quinteto de cordas em elaborada arquitetura, e a voz tendo um papel diverso; esta é a única faixa em que Shocron se ocupa apenas do piano; a palavra poética é comandada pela saxofonista Camila Nebbia e se concentra apenas nos dois primeiros dos nove minutos da peça, com o instrumental sendo dominante daí até o final.

Se é instrumentista de fino talento e mestra consumada da improvisação, Paula Shocron se sedimenta aqui como compositora de ideias únicas e arquitetadas com brilho (caminho que ela já sinalizava com “Los Vínculos”). Todas as faixas trazem Shocron creditada também na pós-produção, sendo que o trabalho “pós” elaborado no estúdio (samples, ruidosidades adicionais, colagens etc.) se revela decisivo para a obra final. El Camino Sigiloso é um dos discos mais envolventes editados neste ano. Uma pena estar saindo somente em formato digital (merecia ter seu lugar reservado na estante)... Não deixe de ouvir.   


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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez Mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)