LIVROs Em seis contos bem arquitetados, Desfiguração apresenta uma nova prometedora voz na literatura brasileira contemporânea...
Por Fabricio Vieira
O conto, por sua brevidade característica, não raramente gera
no leitor a sensação de ser um gênero mais simples de ser criado e degustado.
Nada mais falso. Escrever uma história breve com verdadeiro impacto pode ser
mais desafiador do que compor um romance de centenas de páginas. Grandes
romancistas, não raro, preferiram nem se aventurar pelo gênero. Por outro lado,
há artistas que optaram por se dedicar apenas à narrativa breve, entrando assim
para a história: Jorge Luís Borges, Katherine Mansfield, Edgar Allan Poe, Alice
Munro, Murilo Rubião, Ryonosuke Akutagawa, Silvina Ocampo, e por aí vai. Desfiguração,
livro da jornalista Raquel Setz, navega exatamente por essa via. E a
autora faz isso exibindo seguro domínio do formato, em uma estreia literária que
revela uma voz que, se nova, mostra já estar pronta para demarcar seu espaço.
Desfiguração é composto por seis contos que, se percorrem variadas possibilidades narrativas e estilísticas, exibem uma justa conexão – ou seja, não são apenas um
punhado de textos reunidos, mas um conjunto que funciona como um todo planejado
e equilibrado. Afora o labor linguístico, que demonstra a solidez expressiva da
autora, a exploração imagética se revela outro ponto que faz a obra se destacar
entre tantos e tantos textos que chegam de forma ininterrupta aos leitores –
sim, vale a pena dedicar seu tempo de leitura a este exemplar. Há um certo
clima que amarra os contos de forma coesa. É como se adentrássemos um universo
próprio quando abrimos o livro. Esse traço geral unificador está nos elementos
fantásticos das narrativas, presentes de forma decisiva para os contos. O
fantástico que marca a obra se dá de forma sutil, o que eleva seu poder
expressivo. Quando falamos em fantástico, vale retomar algumas definições do
crítico e teórico Tzvetan Todorov* para ilustrar o que pretendemos apontar:
“Num mundo que é exatamente o nosso, sem diabos, sílfides
nem vampiros, produz-se um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis
deste mesmo mundo familiar.”
“O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só
conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural.”
“O fantástico se fundamenta essencialmente numa hesitação do
leitor (...) quanto à natureza de um acontecimento estranho.”
Cada conto terá um desses elementos de hesitação,
estranhamento e transformação em destaque, que estão, vale frisar,
perfeitamente incorporados à estrutura textual: a morta/não morta de “Anatomia
– um estudo em oito partes”; a fita VHS em “Bonecos satânicos, hiperinflação e
gated reverb”; o bichinho de pelúcia em “Pelúcia”; a música misteriosa de “As três
vezes de Márcia”; o caderno em “Magic Help”. Se todos os contos são, de um modo
geral, bem arquitetados, podemos destacar dois deles como os mais complexamente
interessantes e desafiadores.
Márcia atravessará a vida buscando em músicas/discos a
sensação única e transformacional (desfiguração?) que sentira aos 15 anos ao
ouvir aquela música estranha pela primeira vez. Essa busca pela música
originária (seu Santo Graal) vai levá-la a montar sua discoteca, cheia de
música estranha – mas sem a música primordial, com a qual ela só irá se deparar
3 vezes na vida por acaso, chegando a duvidar de sua existência (“e passou a
acreditar que tudo tinha sido um sonho”). Da coleção de discos da heroína, que
“nos anos 1990, triplicaria de tamanho” (ou seja, se tornaria 3 vezes maior), 3
discos serão citados como exemplares (com suas respectivas origens contadas): Hot
Rats, do Frank Zappa; Clara Crocodilo, de Arrigo Barnabé; e Halber Mensch, do
Einstürzende Neubauten (fica ao leitor o convite de ouvir esses discos se não
os conhece ou retornar a eles na tentativa de entender melhor a protagonista).
Este é um conto musical que funcionará em sua plenitude se o leitor
compartilhar do fascínio da protagonista por músicas estranhas e seus profundos
impactos transformadores no ser.
“Magic Help”, que fecha o livro, é o melhor dentre os contos
aqui reunidos, com sua complexidade espacio-temporal, o desdobramento das
histórias dentro das histórias em um sutil processo de mise en abyme (que se
amplia inclusive por meio das notas de rodapé, que abrem novas perspectivas).
Os desdobramentos, que se revelam sem sobressaltos sob os olhos do leitor,
criam uma teia de conectividades que une as protagonistas das breves histórias do
misterioso caderno que a faxineira Raíssa encontra; a dona do apartamento
(Andressa) que ela não conhece (e que é a provável autora daqueles textos); e a
própria Raíssa, que tem sua vida cotidiana alterada pelos eventos inesperados aos
quais acaba por se ligar.
É exatamente em "Magic Help" que iremos nos
deparar com a palavra que titula o livro. Desfiguração aparece escrita no
caderno que Raíssa lê, repetida 21 vezes (e rapidamente descobrimos que pode
ser muito mais que isso: “A última página inteira do caderno está tomada pela
palavra, escrita com tanta força que o papel quase rasgou sob a fúria da caneta
Bic azul”). O fato de não titular o conto – e me parece que chamá-lo de "Desfiguração" seria mais expressivo do que "Magic Help", algo que o
colocaria como o texto nuclear da coletânea – talvez reforce uma perspectiva de
que esta é a palavra-síntese da obra e não apenas deste conto. Mas, afinal, de que
se trata essa desfiguração? Sendo o nome do livro, deduzimos que esse seja o
elemento central que perpassa e amarra toda a obra. Assim, talvez esta desfiguração
remeta ao lance de dados que libera/convoca o fantástico que apontamos,
movimento ligado a um objeto/ação em cada conto, sem o qual sua magia
desapareceria e as narrativas perderiam seu encanto, se tornando apenas flashes
captados do cotidiano.
Os dicionários definem desfiguração como: mudança ou alteração de figura ou forma/
mutação/ deformação; deturpação. A partir daí, pode-se entender
desfiguração neste contexto como um processo pelo qual o real/natural/cotidiano
é desfigurado, é deformado em seu equilíbrio esperado, em um processo de
desestabilização das normas, se revelando uma forma de liberar significados. A
desfiguração da gravação da festa de aniversário, cada vez mais deformada quando
a protagonista de “Bonecos satânicos...” revê o VHS, processo que vai desvelar
memórias ocultas e reveladoras; a desfiguração de Márcia via orgasmo quando
ouve a misteriosa música; a desfiguração do mundo em volta de Raíssa,
transformado toda vez que abre e lê os escritos do caderno. É por meio da habilidosa manipulação do processo de "desfiguração/fantástico" que o livro desvela sua poeticidade
e enreda o leitor, fazendo com que não queira deixar aquele universo até chegar
à última página. Desfiguração está sendo publicado em versão impressa e
e-book pela editora Oito e Meio. Não deixe de ler.
*In: “Introdução à Literatura Fantástica”. Ed. Perspectiva,
2004.
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez Mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)