Einstürzende Neubauten: ao vivo em Copenhague


CRÍTICAs
Lendária banda alemã Einstürzende Neubauten, que está em turnê pela Europa até o fim de outubro, mostra no palco que ainda tem muito o que dizer... 

 


Por Fabricio Vieira

Um show de uma banda veterana sempre atrairá antigos fãs que querem ouvir, passadas décadas, apenas as músicas clássicas. Para parte dos grupos que permanecem ativos por praticamente toda a vida dos artistas envolvidos isso faz sentido. Afinal, eles próprios deixaram de criar música nova com a mesma força de seus maiores sucessos (mesmo que estejamos falando de sucessos underground). Mas há aqueles grupos que permanecem criando nova música com força e impacto tão sensivelmente relevantes como no passado. Esse é o caso do Einstürzende Neubauten. O grupo surgido em Berlim em 1980 se mantém ativo de forma ininterrupta até hoje. E sempre lançando material novo e fazendo de seus shows verdadeiros concertos e não apenas a rememoração de um passado saudoso. Nos dias 21 e 22 de setembro, pude vê-los ao vivo nos concertos que aconteceram no Konservatoriets Koncertsal, em Copenhague, na Dinamarca. E que noites!

O Einstürzende Neubauten esteve no Brasil apenas em uma oportunidade, em outubro de 1999 – sim, 25 anos atrás! Eles tocaram em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Foi a única vez que estiveram na América Latina. O repertório naquela turnê foi focado nos dois discos então mais recentes, “Ende Neu” e “Tabula Rasa”. De clássicos antigos, tocaram “Ich Bin’s” e “Haus der Lüge”. Ou seja, essa é a fórmula dos concertos do Neubauten desde muito. Na turnê atual, que começou em 3 de setembro em Potsdam, na Alemanha, e vai até 29 de outubro na Antuérpia, Bélgica, cerca de dois terços das peças executadas vêm dos dois mais recentes álbuns, “Alles in Allem” (2020) e “Rampen” (2024). Também aparecem temas de “Lament” (2014), “Alles Wieder Offen” (2007) e “Silence is Sexy” (2000). Pode à primeira vista parecer um leque não tão amplo, mas estamos falando de mais de duas décadas de música! Os shows em Copenhague foram realizados em uma sala de concerto, com o público devidamente sentado. Nem sempre o público de rock fica confortável com esse tipo de espaço, mas a belíssima sala do Konservatoriets Koncertsal se revelou simplesmente irretocável para as apresentações. Com acústica invejável, foi possível se perder em cada nuance de cada peça. Os mínimos detalhes sonoros, tanto da instrumentação quanto da voz de Blixa, ecoavam pela sala de forma precisa, fazendo do show uma experiência única. Pontualmente às 21h, o grupo adentrou o palco: Blixa Bargeld, o baixista Alexander Hacke, o guitarrista Jochen Arbeit e os percussionistas N.U. Unruh e Rudolf Moser (como convidado, o tecladista Felix Gebhard).

(Fotos: Susanne Borg)
O Einstürzende Neubauten é uma banda perfeitamente ajustada. A sintonia dos músicos é precisa – eles estão juntos há décadas (Bargeld, Hacke e Unruh, desde o início; Moser e Arbeit, desde o fim dos anos 90). E as músicas, recentes ou mais antigas, soam impecáveis. Eles mantêm a vontade, o prazer e a gana de tocar as peças, deixando a energia sempre lá no topo. E no palco, as músicas revelam todo seu potencial, fazendo em muitos casos as versões de estúdio parecerem meras sombras. Todo o aparato instrumental que marca a banda segue presente, o carrinho de compras, a furadeira, canos, galões de combustível e muita percussão metálica criada por eles. A unicidade que conseguem entre peças gestadas com diferença de mais duas décadas entre elas mostra o quanto o show é concebido e não apenas uma sequência de faixas pescadas aqui e ali em um vasto repertório: tudo se encaixa. O Neubauten tem tocado 18 peças nos shows desta turnê (com 13 no bloco principal e dois bis). E a seleção não é engessada. Nos dois concertos em Copenhague, eles tocaram 4 peças diferentes de um para outro. No dia 21, de diferente houve: “Susej”, “Besser Isses”, “Everything Will Be Fine” e “Ten Grand Goldie”; no dia 22, foi a vez de entrarem “Let’s Do It a Dada”, “Nagorny Karabach”, “Wie Lange Noch?” e “Redukt”.

Tocada pela primeira vez por eles em concertos no ano de 1997, Redukt (que teria sua versão de estúdio registrada em Silence is Sexy) é uma das preciosidades que lançaram e o ponto mais longínquo que o Neubauten alcança nessa viagem. Quando, após alguns segundos de silêncio, Unruh começa a executar os primeiros toques percussivos que abrem Redukt é impossível não se emocionar e começar a se preparar para sentir explodindo no peito o momento do refrão, em que percussão e teclado elevam a energia ao topo, enquanto Blixa vocifera Redukt...; só esse momento já vale o concerto todo. Outro ponto único é “Let’s Do It a Dada”, uma música que só alcança mesmo seu máximo no palco, dada a performance que fundamenta tal peça. Como o título aponta, esta é uma música que dialoga com a escola Dadaísta, citando em sua letra artistas e lugares do movimento de um século atrás, especialmente personagens alemães e suíços. Há o momento em que N.U. Unruh aparece vestido com um tipo de cartola muito alta e uma capa, ambos de vinil branco, remetendo a uma clássica fotografia de Hugo Ball no Cabaret Voltaire, em 1916. Do púlpito, ele recita o poema sonoro “Hawonnnti!”, devolvendo depois a bola para Blixa, que vem do fundo do palco com um LP na mão sendo tocado com uma broca e um copo para amplificar o som, antes de gritar “Aaah! Signore Marinetti! Back from Abyssinia?”, tudo em meio ao alucinante ritmo que embala a peça. Esses foram alguns dos pontos que elevaram o concerto de domingo um nível acima, daqueles momentos que entram para a memória dentre os mais impressionantes já vistos.

Outro ponto incrível das apresentações é quando chega a vez de “Sonnenbarke”. Este tema, que também apareceu nos palcos no fim dos anos 90 e depois integrou o álbum Silence is Sexy, ao vivo se transforma. De apenas uma boa faixa do disco, se torna um dos momentos maiores de cada noite. O baixo de Hacke (que é um dos núcleos do grupo; ele é tipo o regente da banda, quem controla as demarcações, as entradas e saídas, o ritmo do concerto) e a guitarra cheia de texturas de Arbeit atingem sua plenitude aqui; na versão de palco, os efeitos sonoros instrumentais e a poesia cantada como que se multiplicam, amplificando o efeito em crescendo que marca a faixa, para terminar de forma apoteótica – se o show acabasse aqui, levaria alguns minutos para as pessoas se recomporem. E tem “Sabrina”, a balada mortal escolhida para o momento mais lírico de cada noite. Com o palco iluminado apenas por um estourado vermelho, essa é outra que ganha vibração nova ao vivo. Isso sem esquecer da abertura com “Pestalozzi”, que vem do álbum recém-lançado, sendo uma escolha justa e entorpecente, já levando os sentidos a adentrarem o universo pelo qual nos conduzirão dali para frente. E a comovente “Gesundbrunnen”, com Moser roçando nossos tímpanos com a furadeira enquanto Blixa vai sutilmente declamando “Zappenduster/ Glühendheiss/ Unten Zappenduster/ Oben Schlehendweiss”.

Blixa Bargeld, no auge de seus 65 anos, está com a voz incrivelmente ajustada. Ele entra no palco descalço, vestido de preto, sutilmente mancando de uma perna, provavelmente um rescaldo da fratura que teve no fêmur tempos atrás. Ele mantém o domínio de todo seu aparato vocal, em forma invejável, quer seja nos momentos de registro mais barítono, quer seja disparando o diamond-cutting scream, em que os agudos vão ao extremo. E Blixa é um performer habilidoso, que interage com o público na medida certa, pontualmente comentando, contando algo ou reagindo ao que vem da plateia. Em alguns momentos, por exemplo, ouviram-se vozes vindas do público gritando “Haus der Lüge”, “Armenia” ou outro hit de outrora, ao que Blixa riu e respondeu: “Amanhã tocaremos Yü-Gung e mais algumas antigas”. Para, após alguns segundos de burburinho, emendar: “Não, não tocaremos não”. E isso na verdade não importa. Mesmo para quem não se familiarizou com os dois últimos álbuns do Neubauten, o show flui de uma forma espantosamente ajustada e hipnótica, fazendo com que o público atravesse as quase duas horas de apresentação sem perder o foco ou o interesse por um momento sequer. O que falta para o Einstürzende Neubauten retornar ao Brasil passados 25 anos de sua única visita? Não sei se é por eles ou desinteresse dos promotores. Mas é muito fácil afirmar que o público está sendo privado de um dos maiores momentos musicais a acontecer nos palcos nesses tempos.

 

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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)