LANÇAMENTOs
Em destaque, novos álbuns de artistas da
free music vindos de
diferentes partes do globo... Ouça, divulgue, compre os discos...
Por Fabricio Vieira
Live at FreeJazzSaar 2019
Schubert/ Pilz/ Scheib/ Kugel
Nemu Records
Em 5 de abril de 2019, o saxofonista Charles Gayle
(1939-2023) deveria se apresentar no festival alemão FreeJazzSaar. Mas Gayle
acabou não aparecendo, cancelando de última hora. Os organizadores então
chamaram quatro músicos locais para preencher o horário. Foi assim, de forma
improvisada, que nasceu este show de música improvisada. Os veteranos
Frank
Paul Schubert (saxes alto e soprano),
Michel Pilz (clarinete baixo),
Stefan
Scheib (contrabaixo) e
Klaus Kugel (bateria) nunca tinham tocado juntos assim
em quarteto. Mas isso não faz muita diferença quando se trata de improvisadores
que já viveram de tudo no palco. O que entregaram foi quase uma hora de música enérgica,
dividida em três partes, com o brincalhão título “Where is Charles”. Michel
Pilz – morto em novembro de 2023, poucos meses após Gayle – traz um colorido
especial e marcante ao quarteto.
The Wind Wends Its Way Round
Karoline Leblanc/ Paulo J. Ferreira Lopes
atrito-afeito
A pianista canadense
Karoline Leblanc apresenta este
inspirado registro, gravado em duas sessões que aconteceram em março e junho de
2019, no Hotel2Tango Studios, em Montreal. São seis peças, sendo metade delas
para piano solo e as outras em duo com o baterista português
Paulo J. Ferreira
Lopes. Com as peças organizadas de forma alternada, o disco abre com um
vigoroso dueto oferecido pela faixa-título, quase dez minutos de intenso duelo.
Na sequência, “Sur fond de cendres” mostra Leblanc sozinha e podemos apreciar
sua refinada técnica improvisativa – que vai do lirismo de “Porter ses pas” ao vigoroso
virtuosismo exibido em “Sillages”. De uma faixa a outra,
The Wind Wends Its Way
Round vai se revelando como um disco muito sólido e envolvente (Leblanc e Lopes
têm outros registros em duo, mas sem dúvida este é o melhor deles).
Infelizmente recebeu menos atenção do que mereceria (eu mesmo não tinha ouvido
o álbum, que saiu cerca de um ano atrás, ainda). Editado em digital e CD (limitado
a 200 cópias) pelo selo atrito-afeito, criado uma década atrás pela dupla e que
tem sido fundamental para documentar o trabalho deles.
Opera 8
Claudio Scolari Project
Principal Records
Claudio Scolari, baterista, percussionista e compositor
italiano, apresenta mais um capítulo de seu mais importante projeto. Gravado em
dezembro de 2023 no Vox Recording Studio,
Opera 8 traz mais uma vez o grupo que
conhecemos de títulos anteriores do
Claudio Scolari Project, com Daniele
Cavalca (piano, bateria, rhodes, sintetizador), o trompetista Simone Scolari e Michele
Cavalca (baixo elétrico). Este oitavo registro de estúdio do grupo traz 11
novas peças, cujos títulos resumem o conceito geral do álbum, segundo sua
apresentação – “
capturing shared emotional moments, fostering a deep connection
among all band members”. Seu jazz contemporâneo absorve inspirações também do
clássico, do funk e do experimental, tudo embebido pelas vias da improvisação. Sai em CD e digital.
Change of Course
Sebastien Ammann
Ropeadope
O pianista suíço
Sebastien Ammann chegou a Nova York em 2008
e, desde então, tem desenvolvido sua carreira por lá. Ele tem comandado alguns
projetos e esta banda traz uma das formações mais interessantes dentre as quais
tem trabalhado. A seu lado estão músicos experimentados que circulam por
diferentes vias criativas do jazz: o baixista John Hébert; o trompetista Ralphi
Alessi; o baterista Eric McPherson; e a saxofonista Caroline Davis como
convidada especial, tocando em duas peças. O título do álbum,
Change of Course,
e de suas 10 peças, além da imagem que ilustra sua capa, sintetizam as ideias
que moveram Ammann durante a criação do disco. A inspiração ecológica que o
guia é sintetizada em suas palavras: “
Through this work, I wish to acknowledge
the impactful work of Donella and Denis Meadows, Jean-Marc Jancovici, Aurélien
Barrau and countless Native and Indigenous wisdoms who have heightened my
awareness of the urgent poly-crisis of pollution, climate change, biodiversity
loss, social inequity, and public health”. Gravado no Samurai Hotel (NYC), em
maio de 2023, o álbum é sonoramente muito envolvente. O melancólico lirismo da
faixa de abertura, “Contemplation”, com belíssimas linhas de trompete, dá o tom
geral que conduzirá os ouvintes. Editado em CD e digital.
Accept When
Caroline Davis/ Wendy Eisenberg
Astral Spirits
Este é um muito criativo álbum que nasceu de encontros entre
a saxofonista
Caroline Davis e a guitarrista e vocalista
Wendy Eisenberg em
anos recentes. É a primeira vez que elas gravaram juntas, mas encontraram um
ponto de equilíbrio de ideias muito sensível. Davis, que nasceu em Cingapura,
filha de um britânico e uma sueca, se mudou para Atlanta (EUA) ainda na
infância. Antes de se tornar profissional da música, cuidou de sua formação,
que culminou com um Ph.D em Music Cognition, em 2010. Depois disso, se mudou
para o Brooklyn novaiorquino e lá tem desenvolvido sua carreira. Foi por lá que
se uniu a Eisenberg, que vem de Boston. “
We wrote Accept When between 2022 and
2023, after a long, beautiful period improvising together intimately in the
safety of a friend’s practice space”, diz a apresentação do álbum. A dupla
entrou no estúdio Figure 8 (NYC) em fevereiro de 2023 e de lá saíram com as 10
peças que compõem
Accept When. Editado em LP e digital, o disco vai de peças
mais enérgicas, marcadas por inventivo free impro (“Slynx”), a outras mais
contemplativas, onde a voz tem papel reconfortante (“Attention”), chegando ao
encontro dessas duas vias (“Concrete”).
Panorama
Daniel Levin/ Fala Mariam/ Sei Miguel
Ezz-Thetics
O experimentado violoncelista estadunidense
Daniel Levin se
encontrou em umas de suas passagens por Portugal nos últimos tempos com dois
nomes vitais da cena local: o trompetista
Sei Miguel e a trombonista
Fala
Mariam.
Panorama traz duas datas distintas desse diálogo. O principal está no
registro do trio realizado no Namouche Studio (Lisboa), em abril de 2023. De lá
vem seis das nove peças que compõem o álbum. A outra data mostra gravação
realizada ao vivo na Galeria Zé dos Bois, em outubro de 2022, de onde saíram
três faixas, um solo de Levin, outro de Miguel e um dueto entre eles. Quem
conhece o trabalho de Sei Miguel tem uma boa ideia do que está registrado aqui,
com sua árida música, repleta de silêncios e detalhes, dando o tom geral.
Trata-se de um encontro de muito interesse aos entusiastas da free music, se
lembrarmos que o trompetista não costuma tocar muito fora do contexto de seus
próprios projetos.
Compassion
Vijay Iyer/ Linda May Han Oh/ Tyshawn Sorey
ECM
O novo trabalho deste fantástico trio mantém (ou talvez até
supere) a beleza de seu disco de estreia, “Uneasy”, de 2021. As gravações de
Compassion
aconteceram dois anos atrás, mais precisamente em maio de 2022, no Oktaven
Audio, em Mount Vernon (NY), ficando decantando por um tempo razoável. São 12
peças, em mais de uma hora de uma música de grande poder de fogo.
Vijay Iyer,
Linda May Han Oh e
Tyshawn Sorey estão em sintonia ajustadíssima, formando um
dos trios de piano-baixo-bateria imperdíveis de nossos dias. A meditativa
faixa-título abre o registro, preparando com vagar os ouvidos para a jornada de
múltiplas possibilidades sonoras apresentadas pelo trio. Não tarda para estarmos
em outras águas, como na versão de “Overjoyed”, de Stevie Wonder, que se anuncia como uma
homenagem a Chick Corea, morto em 2021 (Iyer explica essas conexões no encarte).
Aliás, há outras dedicatórias a pessoas mortas em 2021 (ano anterior à gravação
do álbum): “Arch”, dedicada a Desmond Tutu; “For My Father”, a seu pai, Y. Raghunathan; e o tríptico “Tempest”, “Maelstrom”
e “Panegyric”, compostas originalmente para um projeto em memória às vítimas da pandemia de covid. Uma outra releitura, vinda de um universo bem distinto do de “Overjoyed”,
é uma das joias do disco. Trata-se de uma surpresiva versão de “Nonaah”,
clássica peça escrita por Roscoe Mitchell meio século atrás (infelizmente,
muito breve, com seus 2 minutos e meio). Com certeza
Compassion estará em
muitas listas de melhores do ano.
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*quem assina:
Fabricio
Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária.
Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda
correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como
Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e
literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns
“Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”,
de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e
Matthew Shipp (SMP Records)