LIVROs Biografia investiga de
forma mais ampla e profunda, pela primeira vez, vida e arte do lendário pianista
Cecil
Taylor...
Por Fabricio Vieira
A oferta de biografias dedicadas
a nomes históricos do free jazz finalmente tem ganhado mais fôlego nos últimos
anos. Faltam ainda alguns nomes basilares desse gênero musical terem sua
história contada. Mais para o fim do ano, está programada a primeira biografia
do mestre alemão Peter Brötzmann. E agora temos a oportunidade de ler um livro
dedicado à vida e arte do gênio Cecil Taylor – com o livro sobre Eric Dolphy
prometido também para este ano, 2024 vai ficar como um momento especial nesse
sentido. Se Taylor, um dos pais do free jazz, é figura obrigatória em qualquer livro que aborde o universo jazzístico, faltava ainda uma obra que olhasse mais
profunda e amplamente para ele. Por isso, vale celebrar mesmo a chegada de In the Brewing Luminous: The Life & Music of Cecil Taylor (Volke Werlag, 344
págs.), escrito por Philip Freeman.
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(Photo: Veryl Oakland) |
As linhas gerais da história de
Cecil Percival Taylor são bem-conhecidas: nascido em 25 de março de 1929, em
Long Island, NYC, se formou no New England Conservatory, em Boston, e gravou
seu primeiro álbum, “Jazz Advance”, em setembro de 1956. Daí foi fazendo seu
nome, lançando discos importantes para a modernização do jazz até o começo dos
anos 60. Mas após uma turnê na Escandinávia em outubro e novembro de 1962, ao
lado de Sunny Murray e daquele que seria seu fiel escudeiro, o saxofonista
Jimmy Lyons (viagem na qual foi registrado o seminal “Live at the Cafe Montmartre”,
um dos títulos inauguradores do free jazz), passou vários anos sem gravar – o
livro é bem interessante nesta parte, mostrando os passos que deu daqui até
gravar um novo disco, o que ocorreria apenas em 1966, quando surgiu o clássico
“Unit Structures”. Por esse hiato de gravações, existe uma impressão de que
Taylor ficou no vácuo nesse período de quase quatro anos, mas na verdade
manteve-se ativo por diferentes vias (há mais de dez páginas dedicadas a esse período). Depois viriam os concertos improvisados para piano solista, que se
tornaram fundamentais em sua trajetória a partir da década de 1970. E, já um
nome de reverência na cena, comandaria diferentes grupos (ou muitos
Unit, pelos
quais passaram Andrew Cyrille, William Parker, Raphe Malik, Alan
Silva, Sirone, Thurman Barker, Ronald Shannon Jackson, dentre tantos outros) até sua
morte, em 5 de abril de 2018. Essas passagens conhecidas por todos interessados
em Cecil Taylor são esmiuçadas por Freeman, permitindo que os leitores aprofundem como nunca sua visão desse artista único. Para tanto, o
autor realizou muitas entrevistas com quem conviveu com ele e revirou arquivos,
periódicos, livros, tudo o que ajudasse a contar essa história com maior
precisão. Apesar de o livro ter sido escrito após a morte de Taylor, Freeman
teve a oportunidade de entrevistá-lo e acompanhá-lo em fevereiro de 2016, quando
produziu um material especial sobre ele para a revista The Wire. O
autor descreve este encontro na Introdução, estimando terem sido umas 10h ou 11
horas que passou na companhia do pianista, durante dois dias seguidos.
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(Cecil Taylor in his home, 1983. Photo: Deborah Feingold) |
O livro é dividido em 11 partes, além
de um extenso Prefácio escrito por Markus Müller, seguindo uma rota temporal,
com cada capítulo abordando um período. A primeira parte vai de 1929 a 1947,
tratando de sua infância e os primeiros contatos com o piano; a segunda, de
1948 a 1956, na qual sua formação e inícios como músico profissional estão em
foco; e assim por diante, até o período 2013-2018, que fecha a obra. Taylor
nunca foi muito de falar propriamente dele e de sua música; lendo diferentes entrevistas
que deu na vida ou ouvindo suas declarações em “Imagine The Sound” ou “All The
Notes”, documentários que o enfocam, vemos um artista que parecia estar sempre
com uma persona incorporada. Na introdução, lemos uma declaração do crítico
musical Howard Mandel que sintetiza bem essa impressão: “I’ve met Cecil Taylor but can’t say
I know him… I've only fleetingly encountered the person behind the performer”. Por
aí dá para imaginar o desafio de biografá-lo sem se perder em anedotas,
histórias sem um outro lado e imprecisões de todos os tipos. Freeman faz uma
escolha que expõe no começo do livro: não ficar tentando esmiuçar a vida
pessoal, o cotidiano íntimo de Taylor, até porque ele nunca deu abertura para
isso. Ele questiona: “Why attempt to learn the 'truth' about a man who made it
clear, over the course of a career spanning almost six decades, that what was
of primary importance to him was not his life, but his art?”. Então, não
esperem por detalhes particulares da vida dessa figura tão singular. Afinal, o
que importa mesmo é sua arte, certo?
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(Photo: Dagmar Gebers) |
E sua arte não se resumiu ao
piano. Taylor também teve na dança (que começou a se dedicar ainda na infância)
e na poesia meios de expressão de grande importância. A poesia de Taylor pode
ser ouvida em algumas gravações, como na abertura do disco “Tzotzil/Mummers/Tzotzil”;
há também um singular álbum dedicado a esta sua face, “Chinampas” (1987), onde
ele apenas declama, sem encostar os dedos no piano. “
Taylor averred that his
vocal performances had been improvised, unrehearsed – that he had chosen in the moment how to present
these lines. And that is audible when one listens; it’s possible to hear him
thinking, considering his next gambit between breaths”, lemos na parte em que
Chinampas é abordado. Com suas algo mais de 300 páginas,
In the Brewing
Luminous: The Life & Music of Cecil Taylor cumpre bem seu papel de nos
levar mais próximo ao universo desse genial artista e de poder redescobri-lo de uma
forma mais sistematicamente organizada. Mas fica, sim, o desejo de que muitas
das histórias apresentadas aqui fossem mais aprofundadas, exploradas com maior
vagar.
Cecil Taylor foi um artista realmente fascinante. Um
pianista revolucionário e visionário. Se ele, até pelo perfil vanguardista de
sua arte, nunca foi propriamente popular (é dele que o público de jazz mais
amplo vai lembrar quando o assunto é concerto solista improvisado de piano,
algo que ele iniciou antes de qualquer outro? Infelizmente não...), também teve
lá suas glórias e reconhecimentos em diferentes momentos de sua carreira de
mais de seis décadas. O livro nos lembra que ele foi reconhecido com a Bolsa Guggenheim
em 1973, com a prestigiosa MacArthur Fellowship em 1991 e o Kyoto Prize em 2013.
Deixou uma discografia ampla e fundamental, com cerca de 80 títulos. E se
apresentou por décadas em diferentes cantos do mundo. Nós, brasileiros, tivemos
a sorte de vê-lo tocando no país em duas oportunidades: a primeira em junho de
1989, com seu trio, apresentando-se em São Paulo e no Rio de Janeiro. Para quem
era jovem demais para ter presenciado aquele momento histórico, houve uma nova chance
em outubro de 2007, quando fez apresentação solista no Auditório Ibirapuera
(SP) e novamente também no Rio. Quem pôde ver Cecil Taylor em ação desfrutou
de um dos momentos maiores da música contemporânea, desses que se levam para a vida toda. Ler agora esta biografia significa poder redescobrir a arte desse pianista
sob novos ângulos, se deslumbrar uma vez mais – ou melhor dizendo, muitas vezes
mais – com sua música única e incomparável.
[...abaixo uma Playlist com um pouco do melhor de Cecil
Taylor para estimular os ouvidos de quem está se preparando para ler (ou já
degustando) sua imperdível biografia...]
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*quem assina:
Fabricio
Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária.
Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda
correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como
Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e
literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns
“Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”,
de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e
Matthew Shipp (SMP Records)