PLAY IT AGAIN... (Novidades de Portugal e Espanha)


LANÇAMENTOs
Novos álbuns de artistas da free music vindos de Portugal e Espanha. Experiências variadas, possibilidades múltiplas. Ouça, divulgue, compre os discos... 

 


Por Fabricio Vieira

 

Trafiklys

João Gato/ Duarte Ventura

Timbuktu Records

Como toda viva cena, a portuguesa sempre está a trazer novas caras para o jogo. Aqui temos um desses exemplares, um novo duo formado pelo vibrafonista e percussionista Duarte Ventura, e o saxofonista e flautista João Gato, ambos na casa dos 23 anos. São artistas que nasceram com os anos 2000. E chegam agora trazendo novos ares à vibrante música feita em Portugal. Ventura e Gato mostram neste registro criações próprias, que exibem muita inventividade e precisão técnica. Gravado em julho de 2023 no Timbuktu Studios, em Lisboa, Trafiklys é composto por seis peças e dois interlúdios. “Bebop de Marte”, que abre o álbum, é um cartão de visitas com muita personalidade e “1”, que fecha o registro, a mais intensa faixa da dupla. “Trafiklys é um registo da pesquisa que temos feito em duo durante os últimos três anos, uma documentação do nosso desenvolvimento de um tipo de comunicação instantânea enquanto intérpretes e improvisadores”, disse o duo à Jazz.pt. Editado em CD e digital.

 

 

Gut Liver

Misanthrope Trio

Cyllinder Recordings

Gonçalo Almeida e Luís Lopes são dois músicos abertos e ligados ao rock e ao noise, como diferentes projetos com os quais estão envolvidos testemunham. O baixista e o guitarrista portugueses se uniram nesta banda que muito deve a essas searas. Para completar o trio, nas baquetas está o alemão Philipp Ernsting (que divide com Almeida o trio de jazzcore Albatre). Sob o nome de Misanthrope Trio, eles se uniram em fevereiro de 2023 na Holanda. É de lá, de duas apresentações, que vem as duas longas peças que formam este Gut Liver. Com 37 e 21 minutos, as peças se constroem de forma similar, com inícios mais tateadores, como que preparando nossos ouvidos, rumo a longos diálogos de cortante ruidosidade. Alta voltagem. Publicado em CD, edição limitada.

 


Defiant Illusion

Carla Santana/ Lencastre/ Maria do Mar/ Almeida

A New Wave of Jazz

Encontramos neste Defiant Illusion um muito chamativo quarteto português formado por Carla Santana (eletrônicos), José Lencastre (sax alto), Maria do Mar (violino) e Gonçalo Almeida (contrabaixo). Aqui estamos em um campo camerístico, de sutilezas, onde acústico e eletrônicos se combinam em peças atmosféricas, soturnas, cortantes sem arroubo – o nome de uma das peças, “The Way of Zen”, poderia ser o título do álbum. Há pontos mais quentes no caminho, sim, como em “The Enigma Of...”, mas a tensão geral parece outra. São oito faixas, registradas no Toolate Studio, em Abóboda, Portugal, no dia 21 de outubro de 2022. Todos artistas experimentados, soam em cúmplice harmonia neste projeto, que não sei se foi de ocasião ou se permanece ativo. Lançado em CD, edição limitada de 200 cópias.

 


Muracik

Liba Villavecchia Trio + Luis Vicente

Clean Feed

O veterano saxofonista espanhol Liba Villavecchia apresenta mais um belo trabalho com seu trio, que traz seus conterrâneos Alex Reviriego, no contrabaixo, e Vasco Trilla, na percussão. Para reforçar o time, desta vez o genial trompetista lisboeta Luis Vicente foi convidado. Eles se encontraram no estúdio La Casamurada, em novembro de 2022, com um punhado de temas de Villavecchia e Reviriego (Vicente colabora com uma peça também). O resultado são as seis faixas que formam este quente álbum. Este quarteto ibérico se revela uma banda bastante afiada, herdeiro da melhor tradição free jazzística, criando temas de fluida energia, mas que não ignoram certo tratamento melódico quando preciso – tudo isso é brilhantemente representado pela peça “Ornette  Surrounds”, síntese da sessão.       

 


Sonic Alchemy Suprema

Alma Tree

Carimbo Porta-Jazz

Em 2020, Ra Kalam Bob Moses, o veterano percussionista de NY que circula pelo jazz mais criativo desde meados dos anos 1960, estabeleceu contato com o muito mais jovem baterista português Pedro Melo Alves. À interação entre os dois se uniu o catalão Vasco Trilla. E da conversa entre os três percussionistas veio a ideia de tocarem juntos quando possível. Nascia assim o projeto Alma Tree. Em maio de 2022, com a poeira da pandemia abaixando, tiveram a oportunidade de se encontrar pessoalmente em Portugal e colocar em prática as ideias que vinham trocando há algum tempo. Eles entraram no estúdio Cara OJM, no Porto, no dia 30 de maio de 2022 e gestaram o disco editado há pouco. São 15 temas, muito imagéticos, que devem funcionar em sua plenitude em uma sala de concerto, onde as intervenções mais sutis possam ser apreciadas em cada detalhe. Algumas peças contam com participações especiais dos saxofonistas João Pedro Brandão, José Soares e Julius Gabriel. Sai em edição limitada, 300 cópias, em CD.

 


Vale das Flores

Isabel Rato

Nischo

A pianista e compositora portuguesa Isabel Rato apresenta seu quarto álbum, Vale das Flores. “Inspirado nas comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, da Liberdade e da Igualdade”, é um disco de música portuguesa, que revisita autores “vitais na luta pela liberdade”, como José Afonso e Sérgio Godinho, trazendo também canções tradicionais do país. Tudo isso sem esquecer do jazz, uma das bases da artista. O quinteto de Isabel Rato conta com João Capinha (saxes e clarinete), João Custódio (contrabaixo), João David Almeida (voz) e Alexandre Alves (bateria). Ao grupo são adicionados convidados especiais (como o quarteto de cordas Arabesco), que participam de algumas faixas. Um álbum que soa bastante interessante, com rumos e ecos com sabor de descoberta para quem não está acostumado a ouvir a canção portuguesa. Disponível em CD e nas plataformas de streaming.

 


In The Light of The Current Myth

Savina Yannatou/ Fernández/ Guy/ Gabriel/López

FSR

Este é um verdadeiro encontro internacional da free music, que reuniu um quinteto europeu de altíssimo nível. Estão aqui a vocalista grega Savina Yannatou, o saxofonista alemão Julius Gabriel e o baixista britânico Barry Guy. A eles se juntam os veteranos artistas espanhóis Agustí Fernández (piano) e Ramón López (bateria). A reunião do grupo aconteceu em Portugal, mais precisamente no Porto, na Sala Porta-Jazz, em apresentação realizada em março de 2023. Para completar, a edição do material se dá pelo FSR, ou seja, um selo polonês! In The Light of The Current Myth fica assim como uma celebração euro-global da free improvisation... E que potente celebração! Afiadíssimo, o quinteto apresenta sete faixas de alta voltagem, com todos os integrantes do grupo devidamente inspirados. Um muito excitante disco.

 


Behenii – Part I

El Pricto/ Don Malfon/ Vasco Trilla

Discordian Records

Aqui temos um muito intenso exemplar vindo da viva cena de Barcelona. O trio aqui presente reúne antigos parceiros de diversos projetos, que se conhecem há duas décadas: El Pricto (sintetizador modular), Don Malfon (saxes barítono e alto) e Vasco Trilla (bateria e percussão). Então a música improvisada que trazem soa bem ajustada, como se fossem um trio fixo (o que não é o caso). Quem conhece os envolvidos sabe que ruidosidade e energia estão no DNA deles. E é isso que você vai ouvir aqui (mas há também momentos/peças mais divagatórias, como “Alhayhoch” e “Tail of the Great Bear”). Os títulos das faixas vêm das 15 estrelas fixas de Behenian, “consideradas especialmente úteis para aplicações mágicas na astrologia medieval da Europa e do mundo árabe”. Neste Part I, temos as primeiras 8 peças/estrelas. A gravação foi realizada no The Golden Apple, em setembro de 2023, em Barcelona. Pulicado apenas em formato digital.

 


Odd Objects

Sonic Tender

Robalo Music

O Sonic Tender reúne um trio de formação instrumental tradicional, com piano (Guilherme Aguiar), guitarra (João Carreiro) e bateria (João Valinho). Mas o que esses artistas portugueses fazem com seus instrumentos é outra história. Neste álbum de estreia, ouvimos uma música à qual a palavra desconcertante se encaixa com justeza. O que estão a tocar? Quem está tocando? Questões que surgem e ressurgem no decorrer da escuta do disco... Um piano com uma melodia fraturada, que parece trôpega, que não se permite se desenvolver, é cercada por ruidosidades que ecoam por todos os lados, em uma saborosa confusão auditiva: é por aí que começa o disco, com “Judging” sinalizando o universo que se abrirá diante de nós.  Mais do que apenas o uso amplo de técnicas estendidas, as ideias que estruturam essas peças nos fazem adentrar labirintos de surpresiva navegação. Apesar de parecer tratar-se de free impro puro, há material composto por trás das peças. Com sua genial estranheza, já é um dos registros mais desafiadores e interessantes lançados neste ano. Editado em CD.

 

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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)