CRÍTICAs O quarteto [Ahmed] edita dois novos
títulos, sedimentando de vez seu espaço como uma das vozes essenciais da free
music contemporânea...
Por Fabricio Vieira
Mesmo com suas mais de seis décadas de existência, o free
jazz é um gênero que consegue ainda encontrar caminhos de revitalização,
mostrando que permanece como uma forma de expressão artístico-sonora de elevada
potência. Enquanto muitos músicos, inevitavelmente, se acomodam em fórmulas certas
que os deixam confortáveis, outros, independentemente do ponto da carreira em
que se encontram, têm lampejos de genialidade que nos fazem lembrar o porquê de
essa música ser tão especial.
Pat Thomas é um desses. Este pianista britânico,
nascido em Londres em julho de 1960, tem participado de inúmeros trabalhos
destacados desde os anos 90. Mas foi com um projeto novo que chacoalhou a cena.
Em 2016, Thomas resolveu ampliar o trio – o [ism], que lançou novo disco,
Maua, há pouco – que mantinha ao lado do sueco
Joel Grip
(contrabaixo) e do francês
Antonin Gerbal (bateria), convidando o saxofonista
Seymour
Wright. Sob o nome
[Ahmed], o novo quarteto não era apenas mais uma agrupação
de free impro. O nome do grupo é uma homenagem ao contrabaixista
Ahmed
Abdul-Malik (1927-1993) e a ideia era revisitar, de forma aberta e
desconstruída, seu cancioneiro – reimaginá-lo, como dizem na apresentação do projeto. Em 2017, eles lançaram o primeiro álbum, “New Jazz Imagination”,
indicando o rumo que aprofundariam nos anos e registros seguintes.
Ahmed Abdul-Malik é muito lembrado por seu trabalho como
contrabaixista; costuma ser celebrado por estar no incrível quarteto formado
por Thelonious Monk com John Coltrane em 1957. Mas Abdul-Malik concebeu também
um trabalho próprio e importante como líder e compositor. Especialmente por
cerca de uma década, a partir de seu álbum “East Meets West” (1959), registrou alguns
discos nos quais trazia suas composições, material de grande inventividade que
fazia o jazz dialogar com o Oriente Médio e a África. Abdul-Malik, também
lembrado por tocar oud (instrumento com o qual ele participou do clássico Live
at the Village Vanguard, comandado por Coltrane em novembro de 1961), acabaria
se afastando da cena jazzística, se dedicando mais ao ensino, dando aulas na
New York University e no Brooklyn College, em suas últimas décadas de vida.
Este é o universo que o grupo [Ahmed] resolveu explorar. De um modo geral, a
música do quarteto – o nome do grupo aparece nas capas primeiramente em árabe,
seguido por [Ahmed], assim com colchetes – se desenvolve por meio de peças
bastante longas (normalmente, uns 45 minutos em média cada), nas quais os temas
de Abdul-Malik são reimaginados pelas vias do free. São peças formadas por
núcleos rítmicos ferozes, com baixo pulsantemente grooveado, enquanto piano e
sax alto criam linhas demolidoras em que as repetições de fragmentos temáticos
mínimos têm papel basilar, criando uma intensidade hipnoticamente contagiante e
desconcertante. “We had to find a context for playing Abdul-Malik’s music, and
I think that’s how we found this collective way of playing. If we were just
freely improvising, it would be very different music. The compositions are the
bedrock, the foundation for what we’re doing. We wanted to do his music, but we
also wanted to put our own mark on it, so we came up with this approach. We’re
all coming from the improvised thing while respecting the fact that there’s
this compositional framework, and we’ve used the rhythmic concepts more”,
explicou Pat Thomas em entrevista à DownBeat uns anos atrás.
Essa música única chega agora com novos capítulos para a
alegria de quem já tinha sido engolfado por esse universo (ou para atrair novos
ouvintes; ninguém interessado em free music deveria ficar de fora dessa
celebração sonora). O grupo tinha permanecido quieto desde o lançamento de seu
terceiro álbum, “Nights On Saturn (Communication)”, de 2021. E volta com tudo,
com dois lançamentos seguidos. O primeiro deles é
Wood Blues. Editado em LP e
digital pela Astral Spirits, apresenta uma gravação realizada ao vivo no Glue Factory (Glasgow), em 2 de abril de 2022. O disco traz
apenas a faixa-título, com seus 58 minutos ininterruptos. O título desta vez
faz uma referência ao clássico de Abdul-Malik
Oud Blues. Se lá no original a
peça abre com um walking bass sobre o qual o oud vai se impondo, aqui o baixo
dedilhado abre as portas para o piano, antes de o sax logo começar a marretar
acordes repetitivos e cortantes. Passados apenas cinco minutos, já estamos em
um ponto de ebulição que vai se manter até o desfecho da peça, em
impressionante tour de force que adentra linhas swingantes em sua rota final,
fazendo os pés bailarem involuntariamente –
new jazz imagination, como dizia o
título do álbum de estreia deles.
Wood Blues
é um dos discos mais intensos que você vai ouvir neste ano.
O outro lançamento do [Ahmed] é
Giant Beauty. Trata-se de um
box com 5 CDs (e um extenso livreto de mais de 90 páginas, com críticas,
entrevista...), editado pelo selo Fönstret, que traz registros feitos ao vivo
entre os dias 10 e 14 de agosto de 2022 durante o Edition Festival for Other
Music, em Estocolmo (Suécia). Cada CD é composto por apenas um tema, tocado em
uma noite específica, com as peças variando entre 44 e 49 minutos. As composições
reimaginadas de Abdul-Malik são Nights On Saturn, Oud Blues, African Bossa
Nova, Rooh (The Soul) e El Haris (Anxious). A maioria desses temas já apareceu em outros discos deles (mas em releituras tão diferentes quanto a
livre imaginação permite). Se é inevitável (no bom sentido) uma clara coesão entre todo o
material (poderia ser apenas um concerto inacabável), cada faixa (ou cada CD)
tem uma vibração própria, acertando em cheio ao ofertar música fresca e
renovada de um registro ao outro.
Rooh (The Soul) é uma das joias daqui. É uma
peça que chega com uma vibração diferente daquilo a que estamos acostumados ao
ouvir o quarteto. A faixa começa sua jornada de 46 minutos com arrastada e
cortante introdução, com o baixo em arco dando a linha mestra por sobre a qual
o piano vibra de forma sutil, menos martelante que o usual, enquanto o sax
alonga notas ao extremo, rasgando o ar em contínua palpitação. Foi a maneira
que encontraram para ligar sua versão à original (note-se que lá são apenas
3m37 no total!), que é uma composição, que aparece em “East Meets West”, de
forte e encantatório sabor oriental. Como a proposta do [Ahmed] é levar as
coisas ao extremo, apenas sua inebriante introdução dura mais que o triplo da peça
original. E passados uns 12 minutos, o jogo esquenta de verdade, em um choque
para os sentidos.
El Haris (Anxious) é a faixa que tem a conexão mais direta
com Rooh (The Soul); é o tema mais antigo de Abdul-Malik já resgatado por eles,
vindo do álbum “Jazz Sahara”, um disco de 1959 que ele lançou em parceria com Johnny
Griffin. Aqui o sax de Seymour Wright domina a primeira parte, comandando a
linha melódica por entre a qual a peça vai se desenvolvendo, com Gerbal
acentuando uma pegada percussiva encorpada, rumo a uns dos pontos mais explosivos
já tocados pelo quarteto. Com esses novos registros que nos chegam, o [Ahmed]
sedimenta de vez sua posição como um dos grupos necessários e imperdíveis da
contemporaneidade, uma das vozes que fazem a free music permanecer, de fato,
viva e pulsando.
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em
Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por
alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou
também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos
anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de
liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo
Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live
in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)