Memórias de um discípulo de Sun Ra



LIVROs
Ahmed Abdullah, trompetista que passou cerca de duas décadas ligado à Sun Ra Arkestra, traz seu testemunho daqueles tempos em nova biografia... 

 


Por Fabricio Vieira

O trompetista Ahmed Abdullah entrou para a Arkestra em 1975 e permaneceu, entre idas e vindas, por cerca de duas décadas ligado à banda. Agora temos a oportunidade de vê-lo rememorar esses tempos. Sua autobiografia saiu no fim do ano passado e infelizmente meio que passou despercebida pela impressa jazzística. A Strange Celestial Road: My Time in the Sun Ra Arkestra (Blank Form Editions, 536 págs.) é um importante documento que levou muito tempo para chegar aos leitores e deveria estar tendo uma repercussão maior. Abdullah começou a escrever o livro ainda na década de 1990. Louis Reyes Rivera, o coautor, morreu em 2012 sem ver o rebento vir à luz. “In June 1975, I had my first extended engagement with Sun Ra at the Five Spot. Things were coming together in a crazy way. Here I was, the father of twins, and working at a major New York nightclub with the great Sun Ra”, diz o trompetista, rememorando o início de sua história com a Arkestra.

O livro não se restringe às memórias de Abdullah, que nasceu no Harlem em 1947, durante seu longo período de relação com a Arkestra, apesar de isso formar o núcleo da obra. Há, por exemplo, um capítulo específico, “The Loft Movement”, que vai abordar a experiência do trompetista na cena loft, da qual participou ativamente com seus projetos durante os anos 70, tocando com artistas como Arthur Blythe e Billy Bang (época registrada na clássica série de discos “Wildflowers”, onde ele aparece comandando seu quinteto, que contava com o saxofonista Charles Bracken, no lendário Studio Rivbea). Abdullah, que quando entrou na Arkestra já era casado e com filhos, não se mudou para a Filadélfia, onde ficava o QG de Sun Ra e seus pupilos. Não eram todos os integrantes da Arkestra que moravam lá, alguns estavam alocados em outras cidades, indo e vindo de acordo com a demanda dos trabalhos. Assim, ele conseguiu manter atividades musicais próprias em andamento, ao lado de sua vida na Arkestra (seu primeiro álbum como líder, “Life’s Force”, data de 1979).

É interessante podermos ter com este livro uma visão diferente, complementar, sob outros ângulos, de Sun Ra e da Arkestra a partir de meados da década de 1970. O olhar de quem esteve lá, suas impressões e memórias daquele tempo (se não me engano, este é o primeiro livro de um ex-membro da Arkestra). Um exemplo: o trompetista traz uma narrativa bem mais abrangente do que a versão mostrada no livro “Space Is The Place” – a conceituada biografia de Sun Ra escrita por John Szwed – de quando a Arkestra foi à Nigéria, em meados de 1977, para participar do gigante evento FESTAC. Especialmente chamativas são as páginas sobre os últimos tempos de Sun Ra e a transição/renascimento da Arkestra sem seu criador – que, aliás, descobrimos que foi um período muito mais turbulento e cheio de incertezas do que parece para quem vê de hoje a Arkestra azeitada sob a batuta de Marshall Allen. “The Sun Ra Arkestra was not an easy crew. Discipline was low (Marshall could never be considered a disciplinarian), and as a mater os stylthere was too much indecision”, diz. Abdullah tinha suas próprias ideias para o legado de Sun Ra. Ele defendia a criação de um All-star project, sem usar o nome Arkestra, reunindo várias gerações de músicos ligados a Sun Ra. Mas ele acabou perdendo a disputa e se afastou da nova Arkestra. As histórias contadas por Abdullah são complementadas por uma valiosa galeria de imagens, muitas pouco conhecidas, que testemunham todo aquele tempo de ebulição da banda; são mais de 50 págs com fotos e pôsteres vindos do acervo de Val Wilmer, Adger Cowans, Marilyn Nance, dentre outros.  Altamente recomendado.

 

---------

*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)