Matthew Shipp: New Concepts in Piano Trio Jazz


CRÍTICAs
O pianista Matthew Shipp acaba de editar um novo imperdível registro de seu fantástico trio, acompanhado mais uma vez por Michael Bisio e Newman Taylor Baker... 

 

Por Fabricio Vieira

Em setembro do ano passado, o selo ESP-Disk trouxe de volta ao mercado um fundamental registro da discografia do pianista Matthew Shipp: Circular Temple. Este álbum, gravado em outubro de 1990, estava fora de catálogo há muito e é um marco, sendo o primeiro disco em trio – ao lado de William Parker (baixo) e Whit Dickey (bateria) – gravado por Shipp. O formato de trio de piano-baixo-bateria, um dos mais clássicos do jazz, se tornaria uma das peças fundamentais da música de Shipp, especialmente pelos muitos trabalhos assim que tem realizado na última década e meia. Sua discografia conta com cerca de uma dúzia de títulos em trio. Agora chega aos ouvintes um novo capítulo nessa história, com a edição, também pela ESP-Disk, de New Concepts in Piano Trio Jazz.

Ao lado do baixista Michael Bisio e do baterista Newman Taylor Baker, Matthew Shipp comanda provavelmente o mais empolgante, envolvente e criativo trio da atualidade. Esse grupo está junto há quase uma década, tendo feito sua estreia nessa formação em “The Conduct of Jazz” (2015). Para gestar este novo álbum, se reuniram no Park West Studios (NYC) no dia 2 de agosto de 2023. Em apenas uma sessão, aos cuidados do sempre preciso Jim Clouse, criaram oito novas peças, que totalizam cerca de 45 minutos. Aqui não se trata propriamente de free improvisation. Na verdade, Shipp, um dos maiores improvisadores que já vi em ação, gosta muito de trabalhar com fugidios temas e passagens melódicas, que trazem algo de composicional em seu DNA. “Sounds completely thoroughly composed and yet completely spontaneously improvised at the same time”, diz Shipp sobre o álbum.

New Concepts in Piano Trio Jazz sabe ser diverso em sua justíssima coesão. É como se o trio nos mostrasse que a música que cada um deles produz há tanto tempo é ampla, sem limites e sempre tateando rumos novos – e a junção das três vozes faz alguns milagres surgirem à nossa escuta. Lírico e meditativo são palavras que vêm sem força à mente quando a faixa de abertura, “Primal Poem”, vai se desenvolvendo, com sua profundamente tocante melodia circular ao piano, que rapidamente nos engolfa. “The Function” nos joga para outros lados, abrindo com um walking bass irresistível, sendo a de ares mais jazzísticos que ouviremos. “Non Circle” é uma das mais intensas do conjunto, com o solo de piano no meio da peça, por sobre e entre a penetrante bateria, fazendo os ouvidos rodopiarem. Já “Tone IQ” vai por rumos sombrios, sendo penetrante, contemplativa, em meio a seus silêncios e toques esparsos. “Brain System” mostra o contrabaixo em seus momentos de maior protagonismo, com Bisio tirando do arco linhas penetrantes que duelam com o piano pelo espaço. “Brain Work”, a mais breve com seus 3 minutos, é uma espécie de intermezzo para piano solo, uma preparação para o encerramento apoteótico. E “Coherent System”, a mais longa, com seus quase 12 minutos, fecha a seleção com Shipp em sua voltagem mais acelerada, onde mostra a agilidade de dedos que estão sobre as teclas há tantas décadas, que sabem onde, quando e como ir, que já esquadrinharam cada milímetro do teclado, chegando ao êxtase lá pelo meio da faixa.

O trabalho de Baker é especialmente admirável; suas baquetas estão precisamente ajustadas, cada toque parece ter sido profundamente elaborado, a intensidade na dose precisa (para abrir “Sea Song”, ele saca as escovinhas, de forma a criar a atmosfera pedida pelo dedilhado sutil de Shipp aqui), as entradas e saídas cronometradas, a ritmicidade de fraturado contorno que dá um colorido único à música do trio. E o baixo... “Michael Bisio sounds like God's angel on this album”, afirma o pianista (o que mais poderia ser dito?). Matthew Shipp está com 63 anos de idade e continua nos brindando com mais e mais música de beleza e inventividade únicas. Não diria que este é o cume de sua trajetória por que isso seria injusto com as muitas obras incríveis com que Shipp nos brindou desde quando estreou no fim da década de 1980. Mas provavelmente New Concepts in Piano Trio Jazz faria parte de um Top 10 dos álbuns imperdíveis de sua incontornável discografia.  

 

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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)