CRÍTICAs Álbum lendário de 1971 nascido no coração do
coletivo BAG,
Ofamfa ganhará uma reedição pela primeira vez...
Por Fabricio Vieira
O Black
Artists' Group (BAG) foi um dos fundamentais coletivos surgidos na
década de 1960 que tiveram papel fundamental no desenvolvimento do free jazz. Em muito inspirado na AACM,
o BAG nasceu em St. Louis, Missouri, com a missão
de difundir arte e cultura,
gerar reflexão e ser um polo de luta para o povo preto naqueles
incendiários tempos, tendo seu período nuclear de atuação entre 1968 e 1972. Não se tratava apenas de música: teatro,
poesia, dança e artes plásticas faziam parte dos projetos que fomentavam o coletivo.
No âmbito musical, de lá vieram alguns dos que seriam destacados protagonistas
do free jazz: os saxofonistas Oliver
Lake, Hamiet Bluiett e Julius Hemphill, os
trompetistas Floyd LeFlore e Baikida Carroll, e o percussionista Charles “Bobo” Shaw. O poeta Ajulé (Bruce Rutlin)
era quem comandava as aulas de escrita criativa; a bailarina Georgia Collins, o
centro de dança; Emilio Cruz, as aulas de artes plásticas; e Mallinke
Elliott, as atividades teatrais.
Muito da música
produzida sob as franjas do BAG nasceu e morreu ali mesmo. Alguns
poucos registros que sobreviveram foram fruto de pequenos selos criados por músicos envolvidos com aquela casa, como o Mbari, de Julius Hemphill.
Outro selo desses foi o
Universal
Justice Records, responsável pelas primeiras gravações do Human Arts
Ensemble, uma das bandas centrais formadas em meio àquela
ebulição de St. Louis. Em 1971, sairia o que é considerado o primeiro registro representante do BAG:
Ofamfa. Assinado pelo grupo
Children of the Sun, o disco traz um octeto que contava com Oliver Lake (soprano, alto), Bobo
Shaw (bateria), LeFlore e
Ishac Rajab (trompetes), Rashu Aten (congas), Arzinia Richardson (baixo),
Vincent Terrell (violoncelo) e Ajulé
(poesia, spoken word, arranjos). O
Children of the Sun esteve
ativo durante pouco mais de um ano e se apresentou sempre que pôde, deixando,
para nossa sorte, esse registro para a eternidade.
O instigante trabalho
tem em seu núcleo a poesia
de
Ajulé e sua voz recitante, permeado
por momentos energy free jazz. Sabemos pelo encarte que na hora da gravação houve a participação de quatro dançarinas, o que ilustra bem o processo de
criação coletiva que concentrava o foco do BAG – creditadas como Johadi,
Sandra Weaver, Carolyn Zachary e Etta Jackson. Pena que não há vídeos
ou imagens da produção... “
The conceptions reflect
experiments which sought to establish a balance/harmony between the mediums of
muse/ic and the spoken/sung word, (often the motions of dancers added still
another depth) a balance which would catch the pulse and flame of the will of
our people”, explica Ajulé no encarte. Aqui
estamos já além da órbita do free jazz mais cru, sendo que muito de seu frescor emana exatamente da recitação
poética. Apesar de ser uma criação coletiva, de
fato a força das ideias de Lake e Ajulé não passam despercebidas, formando
importante caminho para a obra ser o que é. E em meio a longas passagens de spoken word (a dominar a faixa
de abertura, “Sweet Street Song”), há
momentos mais focados na energia free, especialmente destilada pelos sopros, a
destacar “Trane Songs”, e tendo
na combinação disso tudo seu melhor, como em “Rent Man”. Nunca reeditado, fora do mundo digital,
Ofamfa passou a valer uma fortuna: no Discogs, tem gente
oferecendo uma cópia original por
600 euros... Assim, o anúncio de finalmente,
após mais de cinco décadas, ter chegado a hora de uma reedição do álbum surge
como um dos grandes eventos do ano. A nova edição de
Ofamfa será em vinil, pelo
selo britânico
Moved-by-Sound. A data de lançamento do LP, que sairá em edição
limitada de 500 cópias, é 3 de junho. E a gravadora já fez uma grande ação:
disponibilizou o disco completo em seu Bandcamp. Hora de redescobrir essa
beleza.
“All of the brothers playing and writing on this record are
members of the Black Artist Group (BAG) which is based in St. Louis, ‘Misery.’
The Black Artist Group, a loose association of young Black men & women, is
a potent/fertile creative force; a group which has contributed
strong/fresh/inspirational creativity in the fields of
Music/Writing/Dance/Drama. The Children of the Sun is one of the units
operating under the BAG umbrela. (...) all different creative approaches and
reflecting a sum of influences and wisdoms which ranges across 500 years
from here to Africa...” (Ajulé)
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em
Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por
alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou
também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos
anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de
liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo
Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live
in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)