RADIO DIASPORA Apresenta: BOEMIA


CRÍTICAs
O intensamente criativo duo Radio Diaspora, projeto do trompetista Romulo Alexis e do baterista Wagner Ramos, lança seu novo álbum, Boemia... 

 


Por Fabricio Vieira

Em abril de 2016, a música criativa contemporânea brasileira viu surgir um álbum que podemos chamar de marco: era o EP de estreia de um novo duo, o Radio Diaspora. Por trás do projeto, o trompetista Romulo Alexis e o baterista Wagner Ramos. “Radio Diaspora utiliza como ponto de partida e ponto de fuga o reservatório inesgotável da diáspora africana e todo o universo de referências que permeia a negritude: suas poéticas, suas lutas históricas, suas narrativas, seus códigos”, lia-se na apresentação daquele primeiro registro. Tal síntese se mostraria um norte iluminado ao irmos vendo/ouvindo sua discografia ser arquitetada nesta quase uma década de projeto. Disco após disco, concertos e concertos depois, o Radio Diaspora – que também dividiu ideias com diferentes parcerias nessa jornada – chegou a um ponto de excelência que faz de cada lançamento seu anunciado um momento de expectativa elevada. Agora Alexis e Ramos nos presenteiam com mais uma preciosidade: Boemia.

(foto: Marcello Vitorino)
O novo álbum do Radio Diaspora (o 12º de estúdio) foi garimpar referências desta vez no Rio de Janeiro: é um experimento que se inspira no samba da Lapa carioca dos anos 70, diz a apresentação do álbum – vale notar: o duo segue firme pelas vias free jazzística e improvisatória, não se trata de um registro sambístico. O diálogo inspiratório com o gênero existe sim, é palpável, por vezes mais explícito, mas de um modo geral concretizado por entre as camadas sonoras características às que o duo nos acostumou, pelas trilhas que se abrem e às quais eles nos convidam a percorrer sem amarras, levados por um chamamento irresistível. “Desta vez partimos de um rema específico, o disco Vida Boêmia, do João Nogueira, e a cena de samba carioca dos anos 70”, diz Ramos. Com essa vibração no entorno, entraram no Estúdio Ori (SP), em julho de 2023. E foram fazer aquilo no qual são mestres: improvisar. “Gravamos o álbum todo num take, sem preparações prévias, e fora a mix não há nenhuma inserção de pós-produção. Então, foi um processo de criação em tempo real, impro livre mesmo, mas voltado numa relação com os samples. Wagner recortou os samples, mas nunca havíamos tocado com eles. Eu sequer ouvi os samples antes da sessão de gravação”, explica Alexis.

(foto: Jéssica Senra)

Boemia traz seis faixas, em um total de aproximadamente 40 minutos (sim, tamanho perfeito para compor um LP, que esperamos que venha!). O duo explora uma ampla palheta instrumental, na melhor escola Art Ensemble of Chicago, trazendo um colorido aberto mas coeso, genialmente costurado. Romulo Alexis: trompete, boquilha, shenai, gaita marroquina, pedais, agogô, caxixi e eletrônicos. Wagner Ramos: bateria, Sampler Roland SP-404 SX, Wavedrum Korg, SPD-One Wavepad, Minimoog Model D Synthesizer e percussões. Os samples que dialogam com eles vêm do citado disco “Vida Boêmia” e o que sai daí (fragmentos melódicos, repetições silabares, aqui e ali as vozes de João Nogueira e Clara Nunes) se integra com ajuste preciso ao que os músicos foram criando no calor da hora; uma comunhão lúdica. “Flor do Ruído” é o ponto maior dessa celebração: peça com momentos mais energy music do álbum (abre com desconcertantes robustos tons extraídos do trompete com uma boquilha de sax soprano), traz a dupla em irrefreável troca de ideias até que a voz de Clara Nunes, ecoando de algum lugar, rompendo barreiras temporais e estilísticas, se une a eles na roda festiva. Nos deparamos novamente com tal potência em “Sol da Vibração”, outra peça de vigor maior em que propriamente a marca central de duo de sopro e percussão bate em seu pico. O lírico-encantatório marca “Entre a manhã e o amanhecer” (especialmente em sua primeira metade), com sons que nos levam pelas ruas após uma noite de celebração, o dia despontando, a cidade entorpecida se abrindo à nossa titubeante visão – passagens altamente imagéticas; peça perfeita para abrir o lado B de um vinil.


Boemia acaba de ser lançado e o Radio Diaspora já nos oferece a oportunidade de apreciar essa fantástica criação ao vivo. Nesta quinta-feira (29), Romulo Alexis e Wagner Ramos levam Boemia ao palco do Sesc Vila Mariana (SP). Sobre o show, diz o trompetista: “O curioso agora é que para a execução do álbum a gente cria o caminho inverso. As improvisações originais tomam o contorno de composições, ou como dizia o Walter Smetak, decomposições, uma vez que a gente se guia pelo que ficou registrado nos fonogramas, mas não ficamos completamente fiéis ao que está no álbum”.


*RADIO DIASPORA Apresenta BOEMIA*



Quando: 29/2 (qui), às 20h

Onde: Sesc Vila Mariana

Quanto: R$ 12 (comerciário) a R$ 40 (inteira)

 



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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)