LANÇAMENTOs Na
nossa última visita do ano a discos editados em 2023, em destaque sete imperdíveis
álbuns da
free music produzidos por artistas de diferentes partes do globo...
Ouça, divulgue, compre os discos...
Por Fabricio Vieira
Beyond The Margins
Rodrigo Amado/ Schlippenbach/ Flaten/ Hemingway
Trost Records
Rodrigo Amado tem de tempos em tempos surgido com novos projetos, em
parcerias que se revelam incrivelmente ajustadas. Uma de suas últimas paradas é
este novo potente quarteto, batizado como
The Bridge. O saxofonista português
há muito faz de suas agrupações verdadeiras reuniões internacionais, o que
ajuda a universalizar o som de elevado requinte criativo que tem desenvolvido.
Para
Beyond The Margins, Amado trouxe para dialogar com seu sax tenor o lendário
pianista alemão Alexander von Schlippenbach, o contrabaixista norueguês Ingebrigt
Haker Flaten e o baterista norte-americano Gerry Hemingway. O encontro se deu
no Pardon To Tu, em Warsaw (Polônia), em outubro de 2022, originando o disco há
pouco lançado. O saxofonista tinha se unido a Schlippenbach uns anos atrás,
quando ele juntou forças ao Motion Trio, resultando no belíssimo álbum “The Field”
(2021, NoBusiness Records). Quem acompanha a discografia de Amado dará um valor
extra ainda maior à parceria com Schlippenbach: o saxofonista nunca traz
pianistas para seus projetos, seja por acaso ou uma decisão motivada por alguma
escolha estética (nunca perguntei a ele). Se lá com o Motion Trio o pianista
era um convidado de um grupo já com sonoridade própria, aqui estamos no campo
da descoberta, com os quatro músicos atuando pela primeira vez juntos, naqueles
esquemas de encontros criativos que apenas a free improvisation pode nos
oferecer em sua plenitude. O resultado são apenas três peças. A faixa-título,
que abre o álbum, é a síntese das ideias do quarteto. Se estendendo por 40
minutos, é aberta exatamente pelo toque de Schlippenbach nas teclas; o sax logo
atende a seu chamado, entoando uma linha de melodia sensível que não tarda a se
desdobrar em labirintos que, em pouco mais de dois minutos, elevarão
rapidamente a temperatura, antes de abrir espaço para um solo de piano. Assim,
em pouquíssimo tempo, já estamos envoltos por esta música que vai se
desenvolvendo entre pontos de respiro e de ebulição (rumando para seu cume
a partir dos 23 minutos, quando Amado vai elevando o tom paulatinamente, até rasgar os espaços com seu sopro cáustico, com o piano em
hipnóticas linhas ao fundo – arrepiante). Após essa epopeia de sons e emoções, o
ouvinte encontra dois tipos de “encores”, ambos com cerca de 7 minutos cada:
“Personal Mountains” e “(visiting) Ghosts”, esta uma surpresiva (e tocante)
releitura de um dos clássicos maiores do free jazz, pérola de Albert Ayler
gestada na primeira metade dos anos 60. Espera-se que a distância não
desestimule este vibrante quarteto, que eles sigam tocando juntos e trazendo
momentos brilhantes como os aqui registrados.
Chimaera
Sylvie Courvoisier
Intakt Records
A pianista e compositora suíça Sylvie Courvoisier convocou
um grupo afiadíssimo para este seu novo projeto. A seu lado em
Chimaera estão
os trompetistas Wadada Leo Smith e Nate Wooley, o baixista Drew Gress, o austríaco
Christian Fennesz (guitarra e eletrônicos) e o baterista Kenny Wollesen. Com tal sexteto, Courvoisier explora esta nova criação de sua palheta, uma peça
que nasceu inspirada pela obra do pintor simbolista francês
Odilon Redon
(1840-1916). Sonho, fantasia, devaneio, palavras como essas vêm à mente quando
sentamos para ouvir essa sedutora e hipnótica música, originalmente encomendada
e estreada no Sons d’Hiver Festival, em Paris, em fevereiro de 2022 no formato
quinteto. Para seu registro em disco, realizado em novembro de 2022 no Oktaven
Audio, em Mont Vernon (NY), ela adicionou a sexta voz, o mestre Wadada Leo
Smith. O resultado são seis longas peças, totalizando cerca de 1h30 de música. Courvoisier
trouxe uma base antiga, de sua confiança, para iniciar o projeto, o trio com
quem trabalha há uma década, ou seja, Gress e Wollesen. A esta base se integram
com perfeição os outros três músicos. A música de
Chimaera é feita para se
adentrar com vagar, no tempo que ela demanda. O disco abre (“Le pavot Rouge”)
com o baixo e piano em toques sutis, cortados espaçadamente por acordes soltos
na guitarra (aliás, o trabalho de Fennesz será vital em todo o percurso na
criação de texturas fundamentais à atmosfera inebriante que permeia a obra). Os
trompetes aparecem passados pouco mais de dois minutos e o sexteto vai
construindo, sem arroubos, a magia desenhada por Courvoisier nesta obra. No decorrer do álbum, o ouvinte também vai se deparar
com momentos de intensidade maior e interação robusta, que nos lembram as
raízes free jazzísticas que marcam o percurso desses artistas, como em “Partout
des prunelles flamboient” e “La chimère aux yeux verts”, mas sem nunca quebrar
a linha característica que faz esta obra ser o que é. Os nomes das peças são
inspirados em títulos de pinturas de Redon; vale procurar reproduções delas na
internet, já que serviram de inspiração primeira para Courvoisier criar
esta obra onírica e encantadora.
Chimaera está sendo editado em CD duplo e digital. Um dos discos do ano.
Seven Skies Orchestra
Perelman/ Wooley/ Maneri/ Lonberg-Holm/ Morris/ Moran
FSR
Ivo Perelman tem certa obsessão com formações mais enxutas.
Não à toa, cerca de 70% de sua discografia é formada por álbuns de duos ou
trios. Daí cresce a curiosidade por esse recente trabalho no qual o saxofonista
irá explorar o formato de sexteto, algo que chegou mais perto apenas nos tempos
iniciais de sua carreira, lá na época de “Children of Ibeji” e “Man of The
Forest”. O saxofonista chamou para a empreitada antigos e novos parceiros, que
se reuniram em novembro de 2022 em sua segunda casa, o ParkWest Studios, no
Brooklyn nova-iorquino. Ao lado de seu sax tenor estão: Nate Wooley (trompete),
Mat Maneri (viola), Fred Lonberg-Holm (violoncelo), Joe Morris (baixo) e Mat
Moran (vibrafone). O grupo maior também tinha mais o que dizer, e o resultado é
um álbum duplo, 1h44 de música improvisada dividida em 10 faixas. Com sua
formação sem bateria, o sexteto de
Seven Skies Orchestra apresenta uma sonoridade de colorido
muito particular. O disco abre com Moran delicadamente sentindo o vibrafone,
como uma introdução mesmo, uma espécie de chamamento aos outros músicos, que
vão chegando sem afobação, sax, baixo e trompete, para logo todo o sexteto
estar convocado. O disco vai se desenvolvendo com suas ondulações internas (no
núcleo de cada faixa) e externas (nas conexões entre as faixas, gerando o
todo), com elevações e recuos de tensão e energia. Há temas algo mais
contemplativos (Part Five, Part Eight), outros mais intensos (Part Ten), sempre
com uma ajustada conversação entre o sexteto, de interação grupal fundamental,
com os picos de destaque ora a um instrumento, ora a outro. Editado em CD duplo
(infelizmente não está disponível nas plataformas digitais; mesmo no Bandcamp
aparece apenas uma parcela do álbum, o que hoje em dia restringe em muito a
difusão da música apresentada).
Duot with Strings
Cirera/ Prats & ZARM Ensemble
FSR
Este é um muito frutífero encontro que teve como pano de
fundo a estimulante cena portuguesa. O álbum é o sexto do duo
Duot, projeto
nascido em terras espanholas unindo o saxofonista Albert Cirera (que morou por
anos em Lisboa) e o baterista Ramon Prats. A eles na empreitada se uniu o
quarteto de cordas
ZARM, criado em Portugal pelos locais Carlos Zíngaro
(violino) e David Alves (violino) ao lado dos estrangeiros residentes em Lisboa
Ulrich Mitzlaff (violoncelista vindo da Alemanha) e Alvaro Rosso
(contrabaixista do Uruguai). O sexteto internacional se encontrou em dezembro
de 2021 para uma apresentação na Igreja do Espírito Santo, em Caldas da Rainha
(Portugal). E é de lá que vem a gravação deste disco.
Duot with Strings traz
seis peças, em um total de 41 minutos. Quem conhece o Duot de trabalhos
anteriores – a destacar Fé, de 2019, seu melhor registro – vai encontrá-los
aqui em novas águas. A potência direta característica de duos de sax e bateria
ganha novas perspectivas ao unir forças com um quarteto de cordas. A música,
como é de se esperar por quem conhece esses instrumentistas, é livremente
improvisada, com rica elaboração expressiva resultando em momentos que vão do densamente
contemplativo (“A Kind of Trees”) a intensos diálogos de cortante interação (“Crumbled
Time”). Editado em CD e digital.
Family
Gard Nilssen’s Supersonic Orchestra
We Jazz Records
Infelizmente é muito difícil vermos alguma das grandes
orquestras free jazzísticas que se mantêm em atividade tocando no Brasil.
Especialmente na atualidade, em que a vinda de músicos ligados ao free jazz
está em uma triste fase minguada, pensar na possibilidade de alguém bancar toda
uma orquestra para tocar por aqui é quase um devaneio. Assim, temos que nos
contentar com a audição em discos de bandas incríveis como a
Gard Nilssen’s
Supersonic Orchestra. Projeto comandado pelo baterista norueguês Gard Nilssen –
que, com seu trio, já esteve em duas oportunidades tocando no país –, a
Supersonic Orchestra estreou de forma arrebatadora em 2020. E agora chega a
este novo álbum mantendo tudo o que falamos na ocasião de seu aparecimento (“
a
Supersonic Orchestra estreia com música intensa, enérgica, mas também com
momentos de grande inventividade harmônica e ritmicidade contagiante”). Com 17
instrumentistas, é formada por experimentados artistas da Escandinávia –
exceção do saxofonista polonês Maciej Obara –, com alguns nomes mais conhecidos
pela sua atuação na cena free internacional, como os saxofonistas Kjetil Moste,
Mette Rasmussen e Per Texas Johansson e o baixista Petter Eldh.
Family foi
gravado ao vivo no Mondrian Jazz at Paard Van Troje (Holanda), em outubro de
2022. São oito peças, em pouco mais de uma hora de música de muito vigor. O
grupo é formado por três baixos, três baterias e quase uma dúzia de sopros. De
explosões enérgicas a momentos que não deixam de trazer certo swing, entre
solos matadores, interação grupal ajustadíssima e arranjos inventivos,
Family
reforça a impressão anterior de que a
Gard Nilssen’s Supersonic Orchestra é um
dos grupos orquestrais imperdíveis da atualidade. Sai em CD e LP duplo.
Requiem for Jazz
*****
Angel Bat Dawid
International Anthem
Angel Bat Dawid esteve em São Paulo, onde fez apresentação
única no Sesc Jazz, há poucos meses. A clarinetista, pianista e compositora
desembarcou no país após lançar a obra de maior ambição e repercussão de sua
trajetória, este
Requiem for Jazz (infelizmente não foi dessa vez que a vimos
apresentando esta maravilha). Suíte em 12 movimentos – intercalados por
interlúdios e intros –, a obra tem entre suas inspirações o clássico filme “The
Cry of Jazz” (1959), de Ed Band, do qual extrai alguns diálogos, e as missas de
Réquiem da liturgia católico romana. A partir daí, entra a genialidade da
compositora Bat Dawid para criar “
um amplo tratado sobre a história
afro-americana”, como resume o release. “
I want us to have this very wonderful
conversation that Ed Bland started over 50 years ago and I want to continue the
conversation; because this is a loving conversation that we need to have with
each other”, diz a artista.
Requiem for Jazz estreou em 30 de setembro de 2019
no Reva & David Logan Center for the Arts, em Chicago, sendo uma encomenda
do Hyde Park Jazz Festival. E apenas este ano chegou ao mercado, em CD e LP
duplo. Para a empreitada, ela trabalhou intensamente com vozes e convocou uma
big band com marcada presença de cordas e sopros – em “Lux Aeterna-Eternal
Light/My Rhapsody”, há a especialíssima participação do mestre
Marshall Allen. Quem
conhece a estrutura de uma missa de réquiem, explorada por séculos na música
clássica, irá se deparar com suas partes obrigatórias, “Kyrie Eleison”, “Dias
Ire”, “Lacrimosa”, Sanctus”, “Agnus Dei” etc., que formam os movimentos
propriamente da suíte, tendo o quarteto de vozes (a soprano Tramaine Parker, a
contralto Monique Golding, o tenor Deacon Julian Otis Cooke e o barítono Phillip
Armstrong) como protagonista, em impactante efeito lírico. Entre cada
movimento, um interlúdio de sonoridade distinta, com pontos eletrônicos, a voz
de Dawid, algum solista, uma surpresa a cada vez, jogando com os ouvintes e os
levando de uma sensação a outra, com coloridos variados de inescapável impacto.
Tudo perpassado pelos filtros de Bat Dawid, embebidos da música afro-americana,
gospel, soul, spiritual, jazz... Uma obra que pode levar às lágrimas se
executada em sua completude no melhor ambiente – um teatro ou, seria incrível, uma
igreja mesmo. Realmente um trabalho tocante.
Ex Machina *****
Steve Lehman & Orchestre National de Jazz
Pi Recording
Steve Lehman tem desenvolvido projetos de grande
inventividade. Uma das vozes mais interessantes da free music no século XXI, o
saxofonista tem trabalhado com nomes como Anthony Braxton e Vijay Iyer,
enquanto desenvolve uma sólida carreira como líder. O músico de Nova York
expandiu suas investidas e neste ano entregou um álbum de ambição única em sua
trajetória, unindo forças à Orchestre National de Jazz. Grupo criado em 1986
com o apoio do Ministério da Cultura da França, a Orchestre National de Jazz se
tornou um importante veículo de exploração inventiva em seu país, tendo passado
por sua formação sempre em mutação nomes destacados da free music, como as
pianistas Eve Risser e Sophie Agnel, o guitarrista Marc Ducret e a saxofonista
Alexandra Grimal. Lehman começou a trabalhar com a ONJ em 2022, culminando com
este
Ex Machina. A partir de composições de Lehman e de Frédéric Maurin
(diretor artístico da ONJ),
Ex Machina apresenta um ambicioso trabalho para big
band jazzística que envereda pela música espectral (o título do trabalho faz
referência a
Tempus Ex Machina, de Gérard Grisey, nome maior do espectralismo).
Em diálogo com o conjunto estão processos eletrônicos desenvolvidos pelo lendário IRCAM (Institut de Recherche et de Coordination Acoustique/Musique, criado por Pierre Boulez na década de 1970). Essa integração entre elementos acústicos e eletrônicos, ora mais visível em certas partes, ora menos em outras,
é um fator que traz inegável particularidade à obra. Do IRCAM veio um
software interativo por meio do qual sons eletrônicos gerados interagem em
tempo real com os instrumentistas, respondendo e impulsionando os
improvisadores a novos campos e sacudindo as estruturas das peças. Lehman
também coloca seu sax alto para trabalhar, a exemplo das interações solistas
entre ele e seu fiel parceiro Jonathan Finlayson (trompete) na contagiante “Los Angeles Imaginary”. O resultado é apresentado em 11 faixas, cerca de 1h10 de música muito viva. Mais uma genial obra que Lehman nos oferece.
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em
Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por
alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou
também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos
anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de
liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo
Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live
in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)