LANÇAMENTOs Em
destaque, 11 álbuns em explorações solistas, duos e trios, de artistas da
free
music vindos de diferentes partes do globo... Ouça, divulgue, compre os
discos...
Por Fabricio Vieira
(Un)Prepared pieces for Guitar and Trumpet
Marcelo dos Reis/ Luís Vicente
Cipsela Records
Este encontro íntimo entre dois dos fundamentais artistas da
free
music de Portugal é um ponto de chegada muito excitante.
Marcelo dos Reis e
Luís Vicente têm trabalhado juntos há cerca de uma década e meia, em diferentes
contextos, totalizando mais de uma centena de concertos (como contam no texto
de apresentação) e dividindo projetos tão marcantes como as bandas Chamber 4,
Fail Better! e Frame Trio. Neste ponto de suas trajetórias concluíram que era a
hora de criarem algo em duo, apenas guitarra e trompete em diálogo. A
oportunidade surgiu em janeiro de 2022, durante uma residência no Grémio
Operário de Coimbra. É daí que vem esta gravação. São oito peças, nas quais a
excelência técnica e improvisativa de Reis e Vicente transborda em momentos de
inspiração maior. Se os climas e as opções expressivas se alternam de uma peça
a outra, um fio comum atravessa todo o álbum, fazendo com que presenciemos
uma obra coesa, de amplas mas muito cúmplices ideias. Não tarda para que certo
encantamento engolfe o ouvinte e faça com que siga, sempre com interesse
renovado, de uma peça a outra. “One Deer at a Car Window” é especialmente
tocante, com o trompete buscando as notas de forma sufocada enquanto a guitarra
vai e vem em cortantes linhas que vão se tornando cada vez mais adensadas
até o fechamento da peça. Já “Rotterdam at Night”, com a circular e fraturada
melodia que vem da guitarra, soa como uma entorpecente canção de ninar. De um
encantamento a outro, as faixas de
(Un)Prepared pieces for Guitar and Trumpet
formam um conjunto que nos traz uma inebriante experiência sensorial, se
revelando em sua escuta um dos álbuns imperdíveis publicados neste ano. Editado em CD, tiragem limitada de 300 cópias.
Motor Motor
Sofia Salvo/ Obligado/ Schultz
Plus Timbre
O
Motor, trio argentino formado há poucos anos, chega a seu
segundo registro mantendo o vigor e a inventividade de sua estreia. Com uma
estimulante formação, com dois saxes –
Sofía Salvo (sax barítono) e
Gustavo
Obligado (alto) – e bateria (
Marcelo von Schultz), o trio é um dos grupos
mais estimulantes da cena argentina. Imagino que a banda se reúna raramente, já
que Salvo e Obligado vivem em Berlim há já algum tempo. A gravação deste disco,
realizada em fevereiro de 2022 no El Precioso Studio, em Buenos Aires, deve ter
ocorrido pela ocasião da passagem dos dois saxofonistas pela cidade.
Independentemente disso, o
Motor tem uma música de forte cumplicidade
imaginativa, com os dois saxes sempre trabalhando em diálogo, sem
atropelamentos, enquanto a poderosa bateria de Schultz enche os espaços que os
sopros atravessam com dosada fúria.
Motor Motor traz cinco peças, em pouco mais
de meia hora de música. “Re Motor”, que abre o disco, e “...chocolate endless”,
que o encerra, concentram muito da mais potente energia oferecida pelo trio. Sai
somente em formato digital.
Ochotona Calls
Eva-Maria Karbacher
Wide Ear Records
A saxofonista suíça
Eva-Maria Karbacher é uma nova voz que
vem chegando no cenário europeu da free music. Nascida em 1992 em Zurique,
Karbacher cuidou primeiro de sua formação antes de começar a ocupar seu espaço
na cena. Ela estudou saxofone clássico na Lucerne University, onde também tirou
um diploma de estudos avançados em Jazz Performance; fez ainda um Master of
Arts na Musikakademie Basel, onde estudou improvisação com Fred Frith e Alfred
Zimmerlin. Sua estreia aconteceu em 2019, com o álbum “Coexisting”, um duo com
o violinista grego Dimos Vryzas. Desde então tem tocado por diferentes lugares
da Europa, ampliando suas parcerias. E agora a vemos em exploração solista.
Ochotona Calls traz uma artista já sólida e conhecedora profunda das
possibilidades oferecidas por seu instrumento. Acompanhada apenas por um sax
soprano, ela entrou no Streets Studio, em Atenas, em dezembro de 2021, onde
registrou as três peças (de 21, 12 e 5 minutos) que formam o álbum. Free impro
com um sensível apuro técnico, sem arroubos, que mostra uma nova artista que
merece ser acompanhada em seus próximos passos. Editado em CD e digital.
Artificial Intelligence
Ivo Perelman/ Elliott Sharp
Mahakala Music
Ivo Perelman tem nos últimos tempos se dedicado a criar
séries de parcerias em duo com instrumentos específicos. Após “Brass and Ivory
Tales” (2021), formado por nove duos de sax e piano, e “Reed Rapture in
Brooklyn” (2022), com 12 duos de saxes, ele desenvolveu um novo capítulo nessa
história, com diferentes duetos ao lado de guitarristas. Dentre os artistas de
diferentes sotaques que chamou – James Emery para o álbum “The Whisperers”, Joe
Morris para “Elliptic Time” –, a parceria mais interessante é esta ao lado de
Elliott Sharp, com quem nunca tinha gravado antes. O esquema tradicional de
Perelman, de criação instantânea, encontra em Sharp um parceiro que trouxe
possibilidades bastante distintas das trilhas às quais o saxofonista está mais
acostumado. Sharp é um artista que trafega por vários círculos sonoros, tocando
com gente do clássico ao rock, além de ser um dos mais inventivos nomes saídos
da downtown scene. Para este encontro, Sharp trouxe uma guitarra Strandberg
Boden de 8 cordas e eletrônicos, criando um ambiente dialogal muito particular
e interessante para as explorações do sax tenor de Perelman. São quatro faixas
(ou quatro partes), com “Part One” e seus 29 minutos colocando na mesa tudo o
que essa parceria tem a oferecer. Gravado em janeiro de 2022 no Park West
Studios, no Brooklyn (NYC), sob os cuidados de Jim Clouse. Editado apenas em formato
digital.
Two Trios
Guillermo Gregorio
ESP-Disk
Pioneiro do free jazz na América Latina, o saxofonista e
clarinetista argentino
Guillermo Gregorio tem uma muito longa história na
música. Em meados da década de 1960, ele já estava registrando seminais peças
solistas improvisadas, mas seria somente a partir dos anos 90, vivendo nos EUA,
que sua discografia ganharia corpo. Gregorio gravou com muitos incensados
instrumentistas da free music (Mats Gustafsson, Mat Maneri, Jim O´Rourke, Steve
Swell, Paula Shocron...) e montou uma discografia que, se não é tão extensa,
não deixa de trazer destacados exemplares. Neste seu mais recente álbum, o artista
de 82 anos apresenta sua música acompanhado de dois trios distintos, em duas
datas, num total de 11 peças. Nas seis primeiras faixas, gravadas em outubro de
2018 no Ann Arbor, em Michigan, Gregorio (clarinete) é acompanhado por dois
antigos parceiros, o violoncelista
Fred Longberg-Holm e a vibrafonista
Carrie
Biolo. O restante do álbum traz Gregorio ao lado de
Nicolas Jozwiak
(violoncelo) e
Ivan Barenboim (também um clarinetista argentino) na Downtown
Music Gallery, em Nova York (para onde ele mudou em 2015, após longo período
vivendo em Chicago). Esta segunda parte foi gravada em 9 de fevereiro de 2020,
sendo seu último testemunho antes da pandemia fechar o mundo. O álbum como um
todo soa bastante coeso, poderia tratar-se de duas sessões seguidas tocadas na
mesma noite, e mostra que o músico argentino segue com muitas ideias para
mostrar. Sai em CD e digital no começo de dezembro.
Le Sillage
Tomomi Kubo & Vasco Trilla
Brava
Conheci o trabalho da artista japonesa
Tomomi Kubo há pouco,
ao ouvi-la compartilhando ideias com a saxofonista argentina Camila Nebbia no
álbum “Polycephaly”. Agora podemos vê-la uma vez mais circulando pelo cenário
da free improvisation, novamente em duo, desta vez ao lado do conhecido
percussionista catalão
Vasco Trilla. Kubo mora na Espanha e toca Ondas Martenot,
um instrumento eletrônico de teclado criado há um século, utilizado até em
peças sinfônicas (exemplo: Turangalia-Symphonie, de Olivier Messiaen), mas que
segue soando como algo inusitado. No contexto da free music, gera verdadeira
curiosidade. Tomomi e Vasco se reuniram para esta sessão em novembro de 2022,
no UnderPool Studio, em Barcelona. O resultado são cinco peças improvisadas, de
um modo geral muito atmosféricas e detalhistas, nas quais as sutilezas de
gestos e toques – a destacar as faixas “Lacunarity” e “Crepuscular Rays” –
criam camadas hipnóticas e inebriantes (há peças que trazem também maior
intensidade, a ver “The Crevasse”).
Le Sillage traz muito fresco aos ouvidos,
com possibilidades sonoras realmente pouco escutadas por aí. Sai apenas em
formato digital.
On/Off
Malleus Trio
Independente
Este trio canadense mostra um enérgico e envolvente jazz
contemporâneo que tinha (tem) tudo para os tornar bem conhecidos fora de sua
área. Formado em Vancouver em 2007, o trio reúne
Dominic Conway (sax tenor),
Geordie Hart (baixo) e
Ben Brown (bateria). Eles estrearam com um já bem
promissor álbum homônimo apenas em 2017 e agora lançam este seu terceiro disco.
On/Off traz 14 peças que, se tem a improvisação em seu DNA, são temas
compostos, dilapidados nos palcos antes de terem sido gravadas (como eles contam
em uma entrevista ao site
V13). Eles se saem melhor nas peças mais agitadas,
nas quais o pulso robusto de Brown se torna um irresistível motor basilar e o
groove de Hart fica mais solto, contagiante. Destaque para peças com riffs bem
marcados e envolventes como em “Little Tigers” e na faixa-título. Gravado no
The Warehouse Studio (um estúdio local de propriedade de Bryan Addams),
On/Off
tem tudo para representar um momento de conquista de ouvidos novos, com
potencial de levar a banda além-fronteiras. Editado em CD e digital.
Visiones
Nicolás Politzer
Independente
Sempre é bom ver artistas latino-americanos
desbravando a cena
free lá fora. Aqui temos mais um interessante material nesse
sentido. O baterista argentino
Nicolás Politzer, que vem se consolidando como
um forte nome de seu instrumento na cena de Buenos Aires, esteve no ano passado
em temporada nos Estados Unidos. Por lá, se reuniu com seu conterrâneo
Santiago
Leibson (piano), que mora há algum tempo em Nova York. Eles se uniram então, em um trio, ao experimentado baixista norte-americano
Michael Formanek. Juntos,
protagonizaram um concerto no Scholes Street Studios, no Brooklyn (NYC). Esta
sessão, que aconteceu em junho de 2022, agora sai em edição independente. São
cinco peças, cerca de 40 minutos de música improvisada muito inspirada, com uma
sensível marca introspectiva, que mostra que o clássico formato de
piano-baixo-bateria ainda pode render muito.
Visiones é o segundo álbum como
líder editado por Politzer.
Live at Rock Palace
Trinity
Multikulti Project
A cena free espanhola tem muito menos repercussão
internacional que a portuguesa. Mas vira e mexe aparecem exemplares muito
estimulantes que atestam a força da música livre feita no país. Este
Trinity é
um bom exemplo. Trio formado por
Luis Erades (saxes alto e barítono),
Pablo
Rega (guitarra elétrica) e
Fernando Lamas (bateria), o Trinity parece estar em
seu segundo álbum (ao menos conheço apenas um outro título, Brute, que saiu no
ano passado. Aliás, há muito pouca informação na internet – e no release – tanto
sobre este disco quanto sobre os membros do grupo). Aqui vemos o trio de
experimentados músicos em ação ao vivo, em março de 2022, no Rock Palace, um
pequeno lugar em Madri aberto à música underground. O resultado são quatro
faixas intensas, em um total de cerca de 45 minutos. O power trio mantém a
energia lá no topo e sinaliza que o rock mais arisco é uma das linhas
hereditárias deles. Publicado em CD e digital.
The Intrinsic Nature of Shipp
Matthew Shipp
Mahakala Music
Matthew Shipp criou um verdadeiro
book para piano solista.
Em meados da década de 1990 ele começou a registrar seu trabalho no formato com
os álbuns "Symbol Systems" e "Before The World". Desde
então, contabiliza-se mais de uma dúzia de discos solistas gravados por Shipp.
Mais uma vez ele retorna ao formato e mostra que ainda tem muito o que dizer
nessa conversa íntima entre ele e o seu instrumento.
The Intrinsic Nature of
Shipp foi captado em março deste ano, no Park West Studios, no Brooklyn
nova-iorquino. Com Jim Clouse cuidando de gravação, mixagem e masterização,
temos mais um exemplar de precisão e perfeição artística. São 10 novas peças,
em quase 50 minutos de música, que mostram todas as facetas da linguagem de
Shipp. O álbum tem em um de seus extremos a intimista e melancolicamente
melódica “Tune Into It”; no outro, a densamente robusta e impactante “The
Bulldozer Poetics”. Em meio a isso, peças de linhas abstratas como “Crystal
Structures”, a frágil “The”, com seus sufocantes silêncios, e as reviravoltas
sonoras de “Jazz Frequency”, que parece ser a peça mais tecnicamente complexa
do álbum. Shipp nos dá neste novo registro um de seus melhores exemplares
solistas, forte candidato a aparecer em muitas listas de destaques do ano. Editado
em CD e digital.
Beyond Dragons
Angelika Niescier/ Tomeka Reid/ Savannah Harris
Intakt Records
Angelika Niescier esteve no Brasil apenas uma vez, em
setembro de 2019, onde fez uma breve apresentação em duo com o baixista Arthur
Decloedt. Infelizmente foi muito pouco. Esta saxofonista nascida na Polônia e
radicada na Alemanha é uma muito potente e inventiva voz e merecia ter tido
espaço para mostrar muito mais de sua arte para nós. Niescier, que tem mais de
duas décadas de carreira, está em momento bastante estimulante, tocando alguns
projetos de forte impacto.
Beyond Dragons traz um novo trio ao lado da fantástica
violoncelista
Tomeka Reid e da baterista
Savannah Harris. Elas se reuniram em
março deste ano em Chicago, no Kingsize Sound Labs, e saíram de lá com um dos
discos imperdíveis da temporada. “Hic Svnt Dracones” abre o álbum de forma arrasadora e nos faz querer seguir ouvindo o disco sem interrupções. Niescier
está aqui munida de seu sax alto, em ebulição, com uma energia que remonta aos
tempos clássicos do free jazz, sendo impulsionada pelas linhas irresistíveis de
Reid e o pulso contagiante de Harris. Dos incríveis momentos soturnamente
contemplativos de “Oscilating Madness” (em que o violoncelo exerce papel
central, com seu hipnótico e imaginativo arco explorado no limite) às linhas
contagiantes e repetitivas de sax que abrem “A Dance, to Never End” ou os
pontos de maior abstração de “Tannhauser Gate”, as composições de Niescier vão
se revelando justas, sem nada de supérfluo, abertas a improvisações sem
fronteiras, que dão o tempero final que faz dessas peças algo tão estimulante.
Editado em CD e digital.
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em
Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por
alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou
também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos
anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de
liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo
Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live
in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)