CRÍTICAs O pianista e compositor cubano
Aruán Ortiz alcança
toda sua plenitude criacional em seu novo álbum,
Pastor’s Paradox, que acaba de sair pela
Clean Feed...
Por Fabricio Vieira
Aruán Ortiz é um dos artistas mais empolgantes da
atualidade. Vivendo um período de intensa criatividade, com muitos estimulantes
projetos e colaborações, tem colocado no mercado alguns dos melhores discos
recentes da free music. O novo Pastor’s Paradox, que acaba de sair pela Clean
Feed, já chega demarcando espaço como um dos lançamentos imperdíveis do ano.
Este pianista nascido em Santiago de Cuba, em 1973, começou
a estudar música desde a infância. Seu primeiro instrumento foi o violino,
depois passou para a viola, que estudou a fundo, para apenas mais tarde chegar
ao piano. Estudante de música clássica, começou a descobrir o jazz na
adolescência, algo que mudaria o rumo de sua vida. “
Fui levando duas vidas
paralelas, com a viola e a música clássica no conservatório e o piano e a
música popular. E quando chegou a altura de ir para a universidade, que era em Havana,
encontrei por lá todos os grandes, Chucho, Gonzalo... o piano jazz cubano era
gigante. Foi nessa altura que percebi que queria ser como eles e que percebi
que para isso teria de praticar muito. Abandonei a viola e comecei a praticar,
de forma muito intensa, o piano”, contou Ortiz em entrevista recente à
Jazz.pt.
Em meados da década de 1990, decide ampliar seus horizontes. Acaba na Espanha,
em Barcelona, onde vai começar a se aprofundar de vez no jazz. Um tempo depois,
chega aos Estados Unidos. Sua primeira destacada parceria no jazz seria com o
trompetista Wallace Roney, com quem tocou por anos. Quando se muda de Boston
para Nova York, conhece Muhal Richard Abrams, algo que marca outro ponto de
virada. A discografia que vai estruturando a partir de “Aruán Ortiz Trio – Vol.
1” (2003) mostra todas essas suas influências, ora mais para um lado, ora para
outro, mas sempre com uma música de contagiante resultado. Nesta trajetória, alguns
álbuns imperdíveis, a destacar “Hidden
Forces” (2016, trio com Eric Revis e Gerald Cleaver); “Cub(an)ism” (2017, solo); e “Random Dances and (A)tonalities (2018, duo
com Don Byron), todos esses editados pelo selo suíço Intakt Records.
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(photo: Holger Thoss) |
Na última década em especial, Ortiz se consolidou como um
nome de muita presença e força no cenário da free music contemporânea. E Pastor’s
Paradox é um dos cumes desse percurso artístico. Projeto nascido em 2020 como
uma peça encomendada pelo Jazz Coalition Comission Funds, cresceu para uma
suíte em cinco partes, já com o apoio do South Arts Foundation, estreando em 2021
em Dallas. Daí veio a ideia de gravar o projeto, ampliado algo mais, chegando a
esta versão final de sete partes, que agora forma o novo disco. Ao lado de
Ortiz (piano e composição), estão Don Byron (clarinete, clarinete-baixo), Lester
St. Louis (violoncelo) e Pheeroan akLaff (bateria). Há ainda a participação em
algumas faixas de Yves Dhar (violoncelo) e Mtume Gant (spoken word). Pastor’s
Paradox é uma composição inspirada na vida política e nas visões de Martin
Luther King Jr. Passados 60 anos desde que Luther King proferiu seu clássico
discurso “I Have a Dream”, no Lincoln Memorial, Ortiz mergulhou nessa peça,
desvelando seus temas, estrutura, dinâmica vocal e referências históricas e
bíblicas para escrever sua suíte. “I studied that speech from different angles,
particularly his use of analogies and how he integrated different aspects of
literature into his message. It’s amazing when you analyze its structure”, diz
Ortiz, que também estudou outros discursos históricos do pastor, como “The Drum
Major Instinct”, de 1968. “This original work delves into the evolution of Dr.
Martin Luther King's speeches as he expanded his awareness of the devastating
negative impact of systemic economic inequality and the lack of support for
black and brown communities, which he vehemently denounced during the last
stage of his prolific civil rights activism.”
Pastor’s Paradox traz em seus sete temas o clima da luta
pelos direitos civis da década de 1960, a aura de protesto e repressão à
espreita, mas em uma linguagem muito atual. Vale notar que Luther King e seus
discursos são uma inspiração para o trabalho, mas a base da suíte é seu
desenvolvimento instrumental, com as palavras sendo usadas apenas em parte das
faixas (1, 4 e 6), marcadas pela presença marcante e decisiva de Mtume Gant. Na
peça de abertura, “Autumn of Freedom”, esse jogo é direto, com Gant, em meio à
explosão instrumental free jazzística, declamando algumas das palavras do
clássico discurso de King. O clima do disco vai se alternando entre momentos de
maior tensão (“From Montgomey to Memphis (to April 4th)” e “Turning the Other Cheek No More”) e outros de soturno lirismo (como na faixa-título e em “The Dream that Wasn’t Meant to be Ours”), compondo uma obra de atmosfera
camerística, marcada por justos solos (Byron está inspiradíssimo) e uma coesão
interna que torna um pecado ouvir o disco com pausas, sob o risco de quebrar
sua fluidez expressiva. A peça “No Justice, No Peace, Legacy!” (que seria um
fantástico título para o álbum) fecha o registro de forma brilhante, com as
vozes dos instrumentistas entoando, em jogo coral, esse grito de ordem na
abertura e no encerramento da faixa, nos lembrando que as batalhas iniciadas lá
na década de 1960 ainda estão longe de terminar... Com
Pastor’s Paradox, Aruán
Ortiz mostra que está em sua plena maturidade artística.
Pastor’s Paradox
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Aruán Ortiz
Clean Feed
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*quem assina:
Fabricio
Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária.
Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda
correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como
Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e
literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns
“Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”,
de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e
Matthew Shipp (SMP Records)