PHAROAH: o resgate de um disco imperdível


CRÍTICAs
Importante disco do saxofonista Pharoah Sanders gravado em 1976 ganha reedição caprichada com extras e muita história... 

  


Por Fabricio Vieira


Em 1976, Pharoah Sanders (1940-2022) vivia um período de transição. Desde 1964, quando gravou seu primeiro álbum para o ESP-Disk, ele não ficava tanto tempo afastado dos estúdios. Depois de muitos anos, seu contrato com a Impulse, pela qual lançou muitos de seus melhores trabalhos, havia chegado ao fim. Em 1974, a Impulse passou por uma reformulação e Sanders foi dispensado. Seu último registro para o icônico selo foi realizado em setembro de 1973, sessão que se tornaria o álbum “Elevation”, editado um tempo depois. Levariam quase três anos para o saxofonista voltar a entrar em um estúdio, após Bob Cummins, produtor e chefe do selo India Navigation, fazer uma proposta para ele: nasceria aí Pharoah.

 

O álbum Pharoah, que marcaria o início de uma nova etapa em sua trajetória, foi gravado em duas sessões, com resultados um tanto distintos. Sanders chegou com um novo grupo no estúdio que Cummins mantinha em sua casa, em Rockland County, Nova York. Era agosto de 1976. Estavam acompanhando Sanders naquela data Tisziji Muñoz (guitarra), Steve Neil (baixo), Greg Bandy (bateria), Lawrence Killian (percussão) e o tecladista Clifton “Jiggs” Chase (muito lembrado por seu trabalho depois junto a Grandmaster Flash; ele é coautor do clássico “The Message”). Naquele dia, duas peças foram gravadas. Elas formariam o lado B do álbum. São faixas que exploram novas vias, rumos algo diferentes dos que Sanders vinha trilhando na Impulse nos anos anteriores. Nascidas de troca de ideias entre Sanders e o produtor, trazem elementos que vão do rock ao soul. O órgão em “Memories of Edith Johnson” tem papel fundamental, sustentando a base da peça, marcada por incessante cantarolar e duas intervenções mais pontuais do sax. O outro tema gravado naquele dia, “Love Will Find a Way”, se tornaria mais conhecido. A peça começa algo mais ligada à fase Impulse, com a percussão embalando o clima e logo a voz de Sanders surgindo cantarolando um de seus poemas de paz e amor ("Sometimes I feel so good/ Giving love to you/ And hope you will feel/ That same as I do..."), antes de explodir em um solo fulminante. O estranhamento vem lá pelo meio da peça de 14 minutos, quando Muñoz vai da função de base para a de solista, liga os pedais de sua guitarra e adentra um cortante solo, em uma vibe rock setentista emergindo sem aviso. Um reflexo curioso dos tempos. Diz-se que Sanders não gostou muito do que saiu dessa sessão. E tomou um tempo para respirar. Algumas semanas depois, já em setembro, voltou ao estúdio. Para a segunda data de gravação, fez mudanças no grupo. Chase e Bandy não foram convidados desta vez. E sua então companheira, Bedria Sanders, uma pianista de formação, entra em cena tocando harmonium. Daqui saiu “Harvest Time”, o coração do álbum, uma peça de 20 minutos que ocuparia todo o lado A do vinil e que faria parte de seu repertório a partir dali. Harvest Time é mais conectada com o que vinha exibindo em seus álbuns anteriores, com ele em total controle do processo, com o sax tenor sendo o protagonista da peça. Um spiritual free jazz clássico de Sanders, reconhecível por qualquer um que acompanha sua música.

Pharoah não chegou a se tornar um disco obscuro, apesar de ser menos lembrado que sua discografia da Impulse. O álbum, inclusive, ganhou algumas reedições com o passar das décadas, algumas inclusive não autorizadas. Mas somente agora, 46 anos após ser editado pela primeira vez, recebe a atenção que merece. O selo Luaka Bop iniciou alguns anos atrás o resgate dessa bela obra. Em um projeto que contou com a participação direta do próprio Sanders – que infelizmente partiu antes de o processo estar concluído –, o selo resgatou o material, remasterizou com o devido cuidado (o som está excelente) e acaba de reeditá-lo. Em edição caprichada, em CD e LP duplos, Pharoah traz como extra duas versões inéditas ao vivo de Harvest Time, captadas em uma turnê europeia realizada em 1977, nos festivais de Middleheim (Bélgica, 19 de agosto) e Willisau (Suíça, 26 de agosto). Nos takes ao vivo Sanders já está acompanhado de outro grupo, um quarteto bem ajustado com Khalid Moss (piano), Hayes Burnett (baixo) e Clifford Jarvis (bateria). A nova edição conta ainda com livreto de 24 páginas, com raras fotos, entrevistas e testemunhos, além de uma conversa com o próprio Pharoah Sanders.

 

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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)