CRÍTICAs Matana Roberts chega ao quinto capítulo de seu
ambicioso work in progress
Coin Coin com ideias renovadas e inventividade
intocável...
Por Fabricio Vieira
Em maio de 2011, foi lançado o primeiro capítulo de um novo
projeto concebido por Matana Roberts. Coin Coin Chapter One: Gens de couleur
libres provocou grande impacto, ficando no topo de muitas listas de melhores do
ano e causando burburinho em relação aos próximos capítulos do projeto. Afinal,
Coin Coin deveria ter 12 partes, ou seja, muito mais daquela única e fascinante
música estava por vir. Passada mais de uma década desde seu início, o projeto
Coin Coin segue em andamento. Agora temos o prazer de ouvir Chapter Five: In
the garden. Após uma sequência de lançamentos algo mais aproximada, os anos
foram se espaçando entre a chegada de cada capítulo (e haja ansiedade! Quantos
anos mais até Chapter Six ?!), a ver:
*2011: Chapter One: Gens de couleur libres
*2013: Chapter Two: Mississippi Moonchile
*2015: Chapter Three: River run thee
*2019: Chapter Four: Memphis
*2023: Chapter Five: In the garden
Talvez Coin Coin seja o projeto mais ambicioso de um(a)
artista da free music/creative music em andamento hoje. E cada entrega de
Matana Roberts tem gerado grande expectativa. O resultado tem sido
invariavelmente de encanto a cada parte que nos chega. O fato de Roberts mudar
todo o jogo de um capítulo a outro (tanto na formação instrumental quanto nos
caminhos expressivos adotados) tem ajudado a reaguçar o interesse pelo o que
está por vir. E até agora, toda vez que damos play em um dos novos capítulos da
série um mundo muito particular e fascinante se abre. Antes de olharmos para o
novíssimo Coin Coin Chapter Five: In the garden..., uma rápida repassada nessa
história.
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(photo: Anna Niedermeier) |
O projeto
Coin Coin nasceu bem antes de seu primeiro álbum
ser editado. Sua concepção data de 2005 e aos poucos essa música foi sendo
apresentada nos palcos, até começar a ser gravada.
Coin Coin era o apelido
de Marie Thérèse Metoyer (1742-1816), histórica personagem que sempre
fez parte das conversas familiares dos Roberts. Marie Thérèse viveu como
escrava até seus trinta e poucos anos, tornando-se, depois de conquistar a
liberdade, importante figura na Louisiana, se estabelecendo como destacada
líder comunitária. Com família vinda da região, Matana sempre teve a figura de
Coin Coin como arquétipo de mulher forte na sua casa, povoando as histórias que
ouvia enquanto crescia. Assim, por trás do projeto Coin Coin está o resgate da
ancestralidade, da memória familiar, de sua identidade. “
The name of this
project is called Coin Coin and it is named after the nickname of a woman who
played a big part in the ability of my family's survival. I am dividing the
anecdotes and history of my family into musical chapters of a sort that are
represented by different ensemble configurations. My hope is that one day I
will be able to perform the entire narrative with the different ensembles as
one large life cycle”, explicava Roberts à época do lançamento de Chapter One.
“Expect it to keep heading towards a liberation of the human
spirit”
A cada capítulo,
Coin Coin tem explorado uma nova gama de
sonoridades e referências culturais, nos levando por elementos de jazz, folk,
gospel, blues, spoken word, pós-rock, composição e improvisação, música
camerística, eletrônica e noise, em um complexo e inebriante resultado. A esta
altura, com já diversos títulos disponíveis, os capítulos-álbuns de Coin Coin,
ouvidos na sequência, vão compondo um painel, o
large life cycle almejado pela
artista. Roberts tem alterado a cada um dos capítulos de Coin Coin a instrumentação,
os artistas convidados envolvidos, as formas exploradas para desenvolver suas
ideias, sendo que em cada álbum uma figura, um personagem, digamos, serve de
linha condutora para a obra se desenvolver. E desta vez não é diferente. Para
Chapter
Five: In the garden... foram convocados: Matt Lavelle (clarinete alto, pocket
trompete), Stuart Bogie (clarinete baixo, clarinete), Cory Smythe (piano), Mazz
Swift (violino), Darius Jones (sax alto), Mike Pride e Ryan Sawyer (bateria,
percussão) e Kyp Malone (do TV On The Radio, que cuida de sintetizadores e da
produção) – a falecida trompetista Jaimie Branch (1983-2022), que deveria ter
tocado no álbum, recebe crédito por “courage”. Matana Roberts responde por
composições, sopros, gaita, percussão e voz.
Coin Coin Chapter Five: In the garden...
traz em sua tênue linha narrativa a história de uma mulher, ancestral sua, que
morreu após complicações de um aborto, ao qual foi obrigada a recorrer de forma
clandestina. “
I wanted to talk about this issue, but in a way where she gets
some sense of liberation”, explica.
Nessa nova reflexiva e inebriante viagem a que Matana
Roberts nos convida, passaremos por 16 faixas. As peças formam partes de um
todo, ou seja, foram pensadas para serem executadas sequencialmente, como uma
ópera que vai se desnudando tema a tema, com alguns tendo papel central no
desenvolvimento, outros compondo interlúdios e passagens a novas etapas, em um
processo em que nossos sentidos vão sendo tomados e conduzidos pela voz de Matana,
que canta, declama, narra. A faixa inicial (“We said”) funciona mesmo como uma abertura,
se desvelando com vagar, por entre sutil percussão, vozes ao fundo e a chegada
do marcante ecoar das pequenas flautas de metal (tin whistle, tocadas por
vários membros do grupo). Essa mesma estrutura retornará no último tema para
fechar o álbum – com o certeiro título
...ain’t i. ...your mystery is our
history –, desenvolvendo de forma mais ampla as ideias apresentadas na
abertura, com a bateria já bem pulsante e as flautas mais generosamente atuantes,
como uma banda de rua passando à nossa frente e seguindo adiante, deixando a
gente com tudo aquilo ali girando na cabeça e ecoando nos ouvidos.
A formação do grupo, com seus vários sopros, abre a perspectiva
de uma elevação da energia, o que ocorre em diferentes momentos, com as improvisações
coletivas assumindo protagonismo em diversas passagens. Aqui estão
provavelmente algumas das peças mais impactantemente free jazzísticas de
Coin
Coin, a destacar as instrumentais “Predestined confessions”, “Shake my bones” e
“Others each”. Mas os climas, de um modo geral, são variados, com o álbum
ondulando em tensão e cores enquanto vai rolando. Na encantatória “Enthralled
not by her curious blend”, os sintetizadores criam climáticas camadas, sobre as
quais a voz de Roberts vai nos conduzindo (“
My name is your name/ Our name is their name/ We are named/ We remember/ They
forget”) como que por uma clareira em noite de lua, até o sax nos despertar nos
compassos finais. Passado um pouco o meio do disco, “But i never heard a sound so long” e
“The promise” surgem como duas peças sequenciais com canto em coro, etéreas, um
intermezzo sombriamente melancólico, de chamar lágrimas, para serem ouvidas de
olhos baixos e em silêncio – são arranjos de
Roberts para “All the Pretty Little Horses”, uma tradicional canção de ninar
afro-americana, de autor desconhecido. Daí passamos a “Shake my bones”, que
abre com múltiplos sopros e piano bem marcado para dar uma chacoalhada nos
ânimos, com a linda melodia tocada pelo sax alto, entrecortada pelo violino e a
intromissão dos outros sopros, crescendo com vagar até o fecho enérgico.
A música de Matana Roberts não é entretenimento, não
esqueçamos. Ela está em combate, em luta contínua. A Arte como reflexão, como
protesto, um embate necessário iniciado lá pelos pioneiros do free jazz na
década de 1960 e que ainda não acabou. Não basta ouvir as notas, degustar as melodias,
sentir a energia: há muito mais em jogo. “There is something quite rancid going
on in America right now, more so than any time I have seen... a growing cohort
of ghoul-like humans who seem to think that your body does not belong to you.
We have seen some of this before, we knew it was wrong, and we eradicated some
of the issues. It wasn’t perfect how we did it, but we did it. And yet, like a
never-ending train wreck, here we are again. The lack of access to safe and
legal abortion services disproportionately affects marginalized and low-income
communities, who often lack the resources and support to obtain safe
reproductive health care...”, escreve no longo ensaio que acompanha o álbum.
Artista maior de nossos tempos, Matana Roberts é uma voz necessária por tudo
que nos oferece. E, mais uma vez, coloca na mesa um dos discos fundamentais do
ano. A gravadora, como nos outros capítulos da série, é a Constellation. Coin
Coin Chapter Five: In the garden..., gravado no Bunker Studios, no Brooklyn
(NYC), sai oficialmente amanhã, dia 29 de setembro, em CD, LP duplo e digital.
Coin Coin Chapter Five: In the garden... *****
Matana Roberts
Constellation
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*quem assina:
Fabricio
Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária.
Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda
correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como
Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e
literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns
“Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”,
de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e
Matthew Shipp (SMP Records)