As Múltiplas Vozes de CAMILA NEBBIA


LANÇAMENTOs A saxofonista argentina Camila Nebbia está em seu melhor momento e editou nos últimos tempos uma sequência de instigantes álbuns... 

 


Por Fabricio Vieira


Dentre diferentes inventivas vozes que surgiram na free music na última década, Camila Nebbia ocupa um lugar especial. Saxofonista, compositora, improvisadora, a artista argentina de 35 anos tem começado a ganhar o mundo, tendo sua música editada nos últimos tempos por selos internacionais. Imagino que Una ofrenda a la ausencia, que acaba de sair, represente um ponto marcante nesse seu instigante percurso por se tratar de um íntimo e sólido álbum solista e, melhor ainda, sendo lançado por um selo fundamental para o free jazz contemporâneo, o Relative Pitch Records, de Nova York.

Camila Nebbia desenvolveu a primeira etapa de sua trajetória em sua Argentina natal. Ela começou a tocar saxofone aos nove anos de idade e depois foi estudar seriamente o instrumento, tendo se formado em Saxofone Clássico, no Conservatorio Superior de Música Astor Piazzolla, e em Jazz, no Conservatorio Manuel de Falla (ela também estudou Cinema, na Universidad Del Cine). Para quem não frequentava a cena jazzística de Buenos Aires, a primeira vez que pôde ouvir a voz dela provavelmente tenha sido quando lançou, em 2017, o álbum “A veces, la luz de lo que existe resplandece s​ó​lamente a la distancia”, no qual comandava um potente sexteto e teve já alguma repercussão no exterior. Rapidamente, até meados de 2020, ela desenvolveria projetos inovadores e gravaria alguns de seus melhores trabalhos, sempre acompanhada de artistas locais – a destacar os brilhantes “Aura” (2020) e “Corre el río de la memoria...” (2021). Depois, decidiria migrar para a Europa, como forma de abrir novos horizontes, encontrar parcerias novas e apresentar de forma mais ampla e certeira sua voz ao mundo. Camila tem no sax tenor seu principal instrumento, mas também a vemos explorando, a depender do projeto, voz/poesia, além do trabalho que desenvolve em vídeo. Radicada no momento em Berlim, ela tem tido oportunidade de se apresentar em diferentes países, ao lado de figuras destacadas da free music, como Michael Formanek, Susana Santos Silva, John Edwards, Daunik Lazro, Benjamin Duboc, Tom Rainey... Seus mais recentes registros têm trazido parcerias com artistas estrangeiros, com resultados bastante interessantes. Destacamos abaixo os últimos trabalhos editados por Camila Nebbia, que bem ilustram a amplitude de sua música e das parcerias que tem feito mundo afora. Até o fim do ano, sua agenda tem concertos programados para acontecer em Alemanha, Suíça, Polônia, França, Suécia e Argentina. Fica agora a expectativa de que algum produtor ou evento (cadê o Sesc Jazz?) descubra o brilho do que ela vem fazendo e tenhamos finalmente a oportunidade de ver a saxofonista argentina em nossos palcos...  

 

Polycephaly

Camila Nebbia / Tomomi Kubo

Tripticks Tapes

Polycephaly é um inusitado encontro, um duo de Camila Nebbia com a artista japonesa Tomomi Kubo, que toca Ondas Martenot. Kubo vive na Espanha. Elas se encontraram pela primeira vez para tocar exatamente no dia em que foi registrado este álbum, no estúdio em que Kubo trabalha, em Barcelona, em abril de 2021. O resultado são seis peças improvisadas, bastante climáticas, sem ignorar momentos de maior vigor, como em “Anemone”, que abre o álbum com temperatura bastante elevada. Nebbia está com seu sax tenor, às vezes adiciona algo de sua voz, criando com as linhas fantasmagóricas de Kubo momentos que podem se configurar verdadeiramente oníricos, tendo talvez seu melhor na inebriante “Nyx”.  Publicado em digital e em K7, edição limitada de 100 cópias.

 

We Hear We Are Here

Camila Nebbia / Killick Hinds

ears & eyes Records

Desta vez, encontramos Camila Nebbia em Nova York. Por lá, ela se uniu ao extravagante Killick Hinds. Com uma longa trajetória no underground, Hinds, artista de Athens, na Georgia, apresenta sua música como Appalachian Trance Metal, com ênfase em "ritmos não quantificáveis e entonação intuitiva”. Eles se conheceram pela internet, à época do isolamento pandêmico, por meio do Composers and Improvisers Community Project. E quando fosse possível, planejaram tocar juntos, cara a cara. O encontro se deu no fim da tarde do dia 31 de agosto de 2022, no Brooklyn (NYC). Hinds toca diferentes instrumentos de cordas inusuais e para este encontro com Nebbia ele trouxe o H’arpeggione, que é um instrumento de 18 cordas que combina características do violão e do violoncelo. Nebbia está acompanhada apenas pelo seu sax tenor. De lá, saíram com oito peças, improvisação fluida, etérea por vezes, que prefere os caminhos contemplativos aos assombros enérgicos, com alguma elevação de tom aqui e ali (a destacar a faixa “Forgetting about everything"). Um disco para ser apreciado com silêncio e luz baixa.

 

La permanencia de los ecos

Camila Nebbia

577 Records

Neste álbum vemos Camila Nebbia comandando um quinteto. O registro foi feito em Nova York, com um potente grupo feminino, formado pela também argentina Cecilia Lopez (sintetizador, eletrônicos) e as artistas locais Joanna Mattrey (viola), Maya Keren (piano) e Lesley Mok (bateria). Esse quinteto se reuniu em agosto de 2022, por ocasião da temporada que Nebbia fez pela cidade, quando gravou também o disco com Killick Hinds. O que ouvimos aqui é uma encantadora música camerística, centrada em uma peça de 34 minutos, se desenvolvendo por entre material escrito e muita improvisação, na qual a face de líder/compositora de Nebbia, que conhecemos de outros trabalhos, fica mais latente. É uma música que se desenvolve nos detalhes, com vagar, trazendo um lirismo (a viola de Mattrey é fundamental para a música) sensível, crescendo em seus dez minutos finais. A proposta da criação é buscar desenterrar as reverberações profundas de tudo o que parece desaparecer. “Memória e esquecimento, repetições intermináveis, o legado dos nossos antepassados e o profundo impacto da migração, todos se entrelaçam nesta composição”, diz a apresentação do trabalho. O disco está previsto para ser lançado no dia 4 de novembro pelo selo nova-iorquino 577 Records.

 

Una ofrenda a la ausencia

Camila Nebbia

Relative Pitch Records

Discos solistas são uma peça quase obrigatória para saxofonistas da free music. Difícil quem se dedica ao instrumento não querer explorar sua voz solitária. O fato de Camila Nebbia editar este disco solista nesta altura de sua trajetória é bastante importante; ela está plena de suas potencialidades expressivas, dominando o instrumento em todos seus ângulos; as ideias improvisativas fluem com precisão, sem pontos sobressalentes. Junto a títulos solistas anteriores – ouçam “De Este Lado” (2019) e “Presencias” (2021) –, está compondo um painel-síntese de suas ideias mais íntimas. A opção por se focar em seu veículo central, o sax tenor, é muito acertada trazendo uma coesão interna precisa. O álbum foi gravado em dezembro de 2022, em uma passagem por sua Buenos Aires, no estúdio Doctor F – onde gravou alguns de seus mais importantes trabalhos –, fazendo uma conexão sensível com toda sua trajetória (não é gratuito o fato de todos os títulos terem sido mantidos em espanhol). “Todo se borra” abre o registro com um sax cortante, um solo que chega despertando os instintos. É encanto puro ser tomado por uma peça como “Sobre la función del olvido”, onde as linhas do sax são entrecortadas pela voz recitativa de Nebbia, completadas por delicados efeitos do FX. No meio do percurso, “Ríos que se cruzan” funciona como um intermezzo (poderia ser o corte de um lado para o outro em uma versão LP), sendo seguido pela contemplativa “Todo estaba inundado”, que nos joga às furiosas linhas de “Deshabitarse”. O disco fecha com a inebriante “Ofrenda ao vacío”, com o sopro indo e vindo por entre ruidosidades sutis, mas penetrantes. Una ofrenda a la ausencia é composto por 16 faixas, relativamente curtas (oscilam entre 1 e 3 minutos), que funcionam como pequenas partes de uma obra que apenas exibe sua plenitude quando vista/degustada em seu todo, ou seja, um álbum concebido para ser ouvido de forma ininterrupta, com as peças atingindo seu sentido pleno quando interconectadas entre si. O álbum está sendo editado em CD e digital.

 

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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)