CRÍTICAs Novo álbum da pianista
Kris Davis mostra seu
quinteto Diatom Ribbons em apresentação memorável no mítico clube
nova-iorquino...
Por Fabricio Vieira
Kris Davis já há algum tempo se firmou como uma artista
fundamental da música jazzística mais criativa feita nesses tempos.
Improvisadora, compositora e líder de projetos de grande impacto na cena atual,
a pianista nascida em 1980 em Vancouver, Canadá, e radicada no Brooklyn
nova-iorquino há cerca de duas décadas tem recebido reconhecimento crescente. Seus
projetos e parcerias têm expandido fronteiras, para além do fechado mundo do free
jazz, o que tem ajudado a levar sua música a mais gente (recentemente, por
exemplo, a vimos excursionando com o quarteto de Dave Holland). E isso tem se
refletido nos amplos reconhecimentos que vem colhendo. Alguns exemplos: em 2017,
ela venceu a eleição do Critics Pool da
Downbeat como pianista do ano na
categoria “rising star”. Em 2022, seria a vez de Kris Davis ganhar como
pianista na categoria principal do Critics Pool. Já na premiação anual da Jazz
Journalist Association, ela foi eleita pianista do ano em 2020 e 2021. Sua trajetória
teve início no começo dos anos 2000; o disco de estreia, “Lifespan”, apareceu
em 2004. Desde então, foram mais de 20 álbuns editados, afora os registros como
colaboradora. Um de seus projetos mais destacados é o
Diatom Ribbons. Esse
grupo formado em 2019 lançou seu disco de estreia naquele ano, com grande
repercussão. E agora retorna para um aguardado novo capítulo.
O núcleo do
Diatom Ribbons traz ao lado de Kris Davis a
baterista Terri Lyne Carrington, Val Jeanty (turntables e eletrônicos) e Trevor
Dunn (baixo elétrico e acústico). Se o primeiro registro do grupo contou com a
participação de Esperanza Spalding, Tony Malaby e Ches Smith, desta vez quem
entra para somar é o guitarrista Julian Lage. Esse quinteto subiu ao palco do
lendário Village Vanguard para uma temporada em maio de 2022. É dessas
apresentações, realizadas nos dias 27 e 28, que vem esse novo álbum.
Diatom
Ribbons – Live At The Village Vanguard é um disco duplo no qual Davis apresenta
a amplitude de suas influências e interesses. Formada em música clássica, ela
tentou primeiramente adentrar a cena jazzística mais tradicional, mas acabou
mesmo se encontrando no universo do free impro. E toda essa sua trajetória vai
ecoar aqui. “
My influences are wide-ranging”, diz Davis no release de
apresentação do álbum. “
And I'm always trying to digest them and filter them
through my own language and concept. With this music I wanted to be more overt
about some of the influences that have shaped me and that continue to shape
me.” O disco duplo tem 11 faixas, entre composições de Davis, muita
improvisação e particulares releituras de Wayne Shorter (“Dolores”), Ronald
Shannon Jackson (“Alice In The Congo”) e Geri Allen (“The Dancer”). Há também
uma peça, “Nine Hats”, que faz referências a Eric Dolphy (“Hat and Beard”) e
Conlon Nancarrow (“Study No. 9 for Piano Player”); esta faixa é altamente
climática, com estranhas combinações de camadas eletrônicas entrecortadas por
intervenções pontuais da guitarra e das ondulações percussivas. As explorações
seguem, com os ouvintes desavisados sendo surpreendidos com outros ecos de
outros tempos: samplers de vozes entrecortarão o espaço em “VW” (com Sun Ra
sendo convocado), “Bird Call Blues” (com Paul Bley e Olivier Messiaen!) e, a
que mais pega: Karlheinz Stockhausen, em fala sobre sua I
ntuitive Music, vindo
lá de 1972, na faixa “Parasitic Hunter”, possivelmente a melhor peça do
registro.
Todo esse caldeirão soa perfeitamente coeso e bem alinhado,
em uma música de grande inventividade que, se parte de um quarteto jazzístico
tradicional (piano, baixo, guitarra e bateria), amplia os horizontes com DJ e a
própria Davis indo além, ao trazer para o palco também piano preparado e um
sintetizador Arturia Microfreak. Uma combinação inusitada de sonoridades, que
abre em muito a música criada e apresentada a horizontes muito estimulantes e artisticamente
renovadores.
Diatom Ribbons – Live At The Village Vanguard se revela uma longa
viagem pelo mundo imaginativo-sonoro de Davis, à qual ela nos convida e conduz
com precisão e encanto, indo de momentos em que sua voz de pianista de jazz
fica mais proeminente a outros em que sua face de experimentadora e exploradora
sonora se revela em toda sua potência. O álbum, forte candidato a listas de
melhores do ano, será editado em 1º de setembro pelo Pyroclastic Records, em CD
duplo e digital.
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em
Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por
alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou
também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos
anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de
liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo
Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live
in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)