Um dos mais importantes selos da free music em todos os
tempos, o
Leo Records sinalizou que sua história está chegando ao fim....
Por Fabricio Vieira
Nesta semana, o Leo Records soltou um comunicado com o
título Leo Records Closing Down Sale. Sem adentrar o assunto, ficou no ar a
mensagem, logo repercutida por seus entusiastas nas redes, de que o Leo Records
está fechando as portas. Ao que parece, o selo criado por Leo Feigin em 1979
está mesmo chegando ao fim. Sua história, estruturada em uma infinidade de títulos
editados (para lá dos 700 álbuns, de artistas do mundo todo), é um capítulo
essencial do free jazz e da improvisação livre. Feigin está com 85 anos de
idade e segue à frente do selo que criou. E talvez seja realmente a hora de
dizer adeus...
Leo Feigin nasceu em fevereiro de 1938 em Leningrado (São
Petersburgo), na antiga União Soviética. Ele estudou Letras e Filologia;
apaixonado por música, descobriu o jazz nas transmissões clandestinas da Voz da
América. Ele sairia da União Soviética pela primeira vez em 1973, rumo a Israel.
Dali, partiria para Londres, onde conseguiu emprego como tradutor e depois locutor
na BBC. No fim daquela década, vai a Nova York onde ouve e se encanta com uma
não muito conhecida ainda Amina Claudine Myers e decide que é hora de fazer
algo que queria há tempos: editar um disco. Assim, com uma sessão registrada em
outubro de 1979 com Claudine Myers acompanhada de Pheeroan akLaff, em um
estúdio em Nova York, que receberia o título de Song For Mother E, nasce o
Leo
Records. “
Não havia planos para além de um LP”, diz Feigin. “
E depois de vários
LPs, percebi que era isso que eu queria fazer.” O catálogo do Leo Records não
tardaria em adicionar nomes icônicos do free à sua lista de lançamentos e em poucos
anos contaria com títulos de Cecil Taylor, Sun Ra, Art Ensemble of Chicago,
Evan Parker, Ivo Perelman, Marilyn Crispell, Joe Maneri, Anthony Braxton, Joëlle
Léandre e tantos outros artistas centrais da free music. Além disso, daria em
sua história espaço para muitos artistas menos incensados, alguns desconhecidos
mesmo, que tiveram na chance de lançar um disco por um selo desta envergadura
uma oportunidade única. “
Existem várias razões pelas quais eu produzo um disco,
mas uma das razões é incentivar [os artistas]”, diz.
Mas talvez a importância central do
Leo Records, que o faz
tão único, esteja na apresentação que fez ao mundo do free jazz vindo da União
Soviética. O fato de ser um russo expatriado, vivendo na Europa e comandando
uma gravadora permitiu que Leo Feigin acabasse por ser a ponte perfeita entre
esses dois universos. Foram amigos que seguiam vivendo na URSS no alvorecer da
década de 1980 que passaram a enviar para ele fitas de gravações de artistas
soviéticos que vinham fazendo o avant-garde jazz se desenvolver atrás da
Cortina de Ferro. Assim, o Leo Records teve acesso e pôde lançar aquela música, um tanto quanto de forma clandestina, e apresentar ao mundo nomes soviéticos
que se tornariam conhecidos por todos entusiastas do free jazz: os grupos Ganelin
Trio e Homo Liber, Sergey Kuryokhin, Anatoly Vapirov, Valentina Ponomareva, Vyacheslav
Guyvoronsky, Sainkho Namchylak, Vladimir Rezitsky... toda uma nova e fascinante
música que teria muito mais dificuldade para ser descoberta (se é que seria) no
ocidente se não fosse o trabalho de Leo Feigin e seu selo.
O
Leo Records manteve atividade contínua nessas mais de
quatro décadas de vida, sendo um dos mais longevos selos independentes da
história. No primeiro semestre deste ano, inclusive, foram lançados ainda alguns discos.
Mesmo conhecido, difundido e, por que não, idolatrado em cantos do mundo todo,
é difícil ter ideia de quanto o selo ainda vende, se ainda faz sentido
financeiramente seguir adiante. Há um bom tempo eles deixaram de lançar LPs
(mesmo com a moda em torno dos vinis na última década trazendo novos
compradores ao mercado); seus CDs seguem um padrão básico, sem muito luxo ou
edições “de colecionador” que elevem o apelo dos produtos: o recado é claro; o
que importa mesmo é a música. A impressão que fica é que há certa dificuldade
em explorarem bem os meios atuais de difusão musical. Comercializam música em
formato digital e é possível encontrar álbuns pelas plataformas de streaming
mais usadas, mas isso parece mais um adendo, algo que os músicos pedem/agilizam
do que o selo atuando por si só. O site da gravadora, que também funciona como
loja, não é nada amigável, parece nunca ter sido atualizado. Não criaram também,
por exemplo, uma conta do selo no Bandcamp para escoar/divulgar o catálogo,
como Clean Feed, FSR, NoBusiness e Relative Pitch fazem tão bem. Dessa forma,
muitos e muitos discos clássicos do Leo, fora de catálogo há tempos,
simplesmente não são acessíveis a novos ouvintes. No comunicado desta semana,
eles anunciam um
closing down sale (entendido pelos fãs como um saldão para
fechar as portas) com uma extensa lista de discos em oferta. Surpreende saber
que alguns dos álbuns listados ainda estão disponíveis no estoque (tem disco
editado com 500, 700 cópias há mais de duas décadas que não esgotou até hoje.
Isso ilustra bem a situação). Assusta imaginar o destino disso tudo daqui um
tempo. Vão tentar vender o catálogo? Vão apenas baixar as portas e passar o
estoque para lojistas interessados? Os artistas terão acesso e liberdade para
reeditar seus títulos ou parte daquilo vai desaparecer mesmo? O encerramento do
Leo Records, se for confirmado, representa o fim de um capítulo fundamental da
free music.
* 10 DISCOS IMPERDÍVEIS DO LEO RECORDS *
Ancora da Capo (1982)
The Ganelin Trio
Listen
O Ganelin Trio se tornou o mais conhecido e
cultuado grupo free jazzístico da URSS. O trio iniciou as atividades em meados
dos anos 70 sob o nome “G-T-Ch Trio”, em referência a seus membros: o pianista
Vyacheslav Ganelin, o baterista Vladimir Tarasov e o saxofonista Vladimir
Chekasin.
Ancora da Capo, um de seus mais representativos registros, traz
gravação feita em Leningrado em novembro de 1980, tendo sido editado em dois
volumes.
Esgotado em LP e CD.
Invocations (1984)
Anatoly Vapirov
Listen
Um dos pioneiros do free jazz na URSS, o saxofonista e
clarinetista Anatoly Vapirov deixou inspirados registros (pouco lembrados), com
destaque para seu material da década de 80.
Invocations é um de seus trabalhos
mais inventivos. Composto apenas por três longas faixas, gravadas em 81 e 83,
conta com a participação de nomes fundamentais da cena soviética, como Valentina
Ponomareva e Vladimir Volkov.
Fora de catálogo.
Quartet (London) 1985 (1988)
Anthony Braxton
Listen
Anthony Braxton comandou um incrível quarteto durante quase
uma década que contava com Marilyn Crispell (piano), Mark Dresser (baixo) e
Gerry Hemingway (bateria). Aqui vemos o supergrupo em seus tempos iniciais, em
apresentação no Bloomsbury Theatre, em Londres, em novembro de 1985. Fascinante
música da qual restaram outros registros desta turnê. Saiu em LP triplo, depois
em CD duplo.
Esgotado em LP e CD.
Pop-Mechanics No. 17 (1988)
Sergey Kuryokhin
Listen
O pianista Sergey Kuryokhin (1954-1996) foi um dos nomes
mais inventivos da cena russa e um dos primeiros a ser documentado pelo Leo.
Infelizmente ele morreu muito cedo, quando começava a circular e fazer
parcerias fora de seu país. Do piano solista ao comando de grandes bandas, foi
um artista múltiplo que teve na pós-moderna Pop-Mechanika seu projeto mais
ousado. Aqui, em gravação de outubro de 1984, o vemos em uma versão quinteto,
com um grupo incrível.
LP e CD esgotados.
Live in Zurich (1990)
Marilyn Crispell Trio
Listen
Marilyn Crispell é uma das mais fascinantes pianistas do
free jazz. Foi na década de 1980 que começou a sedimentar seu nome na cena,
comandando grupos ajustadíssimos como este trio ao lado de Reggie Workman e
Paul Motian. Registrado durante o Taktlos Festival, em Zurique, em abril de
1989, este é um de seus mais finos discos.
CD fora de catálogo.
Mother Russia (1991)
Keshavan Maslak
Saxofonista de Detroit, filho de imigrantes russos, Keshavan
Maslak (que também assina como Kenny Millions) foi um dos primeiros artistas do
free jazz de fora a tocar na URSS. Ele desembarcou sozinho na terra de seus
antepassados em fevereiro de 1989 e fez diversas apresentações, solo e ao lado
dos locais Misha Aperin, Anatoly Vapirov e Vladimir Tarasov. O disco, de
indiscutível importância histórica, é fruto desta pioneira turnê.
Songs From A Prison Diary (1993)
Phil Minton/ Veryan Weston
Uma das mais geniais experiências vocais comandadas pelo
britânico Phil Minton. A seu lado no projeto, o pianista Veryan Weston. A eles
se uniram um coro de 27 vozes e percussão. A apresentação, trazendo poemas de
Ho Chi Minh, ocorreu na igreja gótica de Saint Paul, em Estrasburgo, em outubro
de 1991. Inimaginável o que deve ter sido ver essa música ao vivo na igreja.
Sad Life (1997)
Ivo Perelman
Listen
O crescimento acelerado da discografia de Ivo Perelman na
última década e meia inevitavelmente vai deixando discos seus mais antigos sombreados.
Mas este explosivo registro é uma das melhores coisas que produziu. Para isso, nada melhor que um trio
completado por William Parker e Rashied Ali. Peças enérgicas que mostram bem toda sua liberdade improvisatória, por meio de um sopro em ebulição característico da época.
Golden Years of the Soviet New Jazz (2001)
Vários artistas
Listen
Incrível e muito extensa compilação do free jazz soviético.
São 4 boxes, formados por 4 CDs cada, em um total de mais de 15 horas de música.
Dos mais conhecidos membros do Ganelin Trio e Sergey Kuryokhin aos poucos
registrados Homo Liber, Tri-O, Moscow Improvising Trio, dentre vários outros,
um longo painel da música criativa feita na URSS especialmente na década de
1980.
Volume I, CD esgotado.
The Master and Margarita (2001)
Simon Nabatov Quintet
Listen
Pianista nascido em Moscou e radicado na Alemanha desde o
fim dos anos 80, Simon Nabatov reuniu um quinteto de peso para este seu ousado
projeto: Mark Feldman (violino), Mark Helias (baixo), Herb Robertson (trompete)
e Tom Raney (bateria). Inspirado no clássico russo O Mestre e Margarida, do
escritor Mikhail Bulgákov, este disco duplo é um fascinante encontro entre a
música e a literatura mais inventivas.
CD esgotado.
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em
Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por
alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou
também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos
anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de
liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo
Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live
in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)