CRÍTICAs
Documentário que aborda a montagem do ciclo de óperas LICHT, em cartaz no
In-Edit Brasil, apresenta retrato sem concessões de
Karlheinz
Stockhausen...
Por Fabricio Vieira
Em 2019, uma notícia
agitou os círculos de entusiastas da música contemporânea mais inventiva: pela
primeira vez, seria apresentado o ciclo de óperas
LICHT. Esta obra do
compositor alemão
Karlheinz Stockhausen (1928-2007) era considerada
praticamente impossível de ser montada, a começar pela sua duração total,
estimada em 29 horas! Excêntrico, polêmico, ególatra, um compositor genialmente criativo, Stockhausen foi o nome
mais conhecido – ao lado de John Cage – de uma geração de artistas de vanguarda
que levaram a música de concerto (e não só ela) a campos inimaginados na
segunda metade do século XX. A repercussão em torno da figura de Stockhausen
extrapola em muito o seu campo de atuação. Basta lembrar que quando esteve no
Brasil, em 2001, durante o festival Carlton Arts, os ingressos esgotaram tão
rapidamente que um show extra de última hora acabou sendo programado. Não que a
música em si de Stockhausen tenha se tornado popular (em qualquer sentido) em
algum momento. Mas o fato de passar a ser chamado pela imprensa, em meados dos
anos 90, de
avô da música eletrônica – ou “Papa Techno” –, em uma época em que
as raves incendiavam as noites mundo afora, ajudou Stockhausen (que já havia
extrapolado fronteiras ao ser citado por artistas pop como os Beatles, que o
colocaram entre outras figuras influentes na capa de Sgt. Pepper’s) a se tornar cada vez mais um daqueles artistas mais conhecidos do que ouvidos (ou lidos, ou vistos...),
em que a aura de cult se torna mais relevante que a apreciação da obra em
si.
E por isso o documentário LICHT - Stockhausen’s Legacy, que estreou lá fora no ano passado e chega agora às
nossas telas por iniciativa do sempre atento In-Edit Brasil, deve atrair mais
do que apenas os ouvintes realmente interessados na obra do compositor alemão
ou na chamada música erudita contemporânea. E por isso talvez a escolha da
linha narrativa pela diretora holandesa Oeke Hoogendijk para seu filme, pensando em um público mais amplo que pode ser atraído às salas de cinema, tenha sido acertada. Se parte da montagem do ciclo LICHT, Hoogendijk não se prende
apenas a isso e usa esse gancho para adentrar a vida do cultuado artista – e sem
poupá-lo. O filme pode ser dividido em dois blocos: um, mais focado no desafio de
colocar no palco uma obra tão ambiciosa (em todos os sentidos). Já o outro, estruturado a partir dos depoimentos, basicamente de filhos e ex-mulheres, nos
quais se constrói um retrato, digamos, não de todo simpático a Stockhausen.
Para quem não
conhece a biografia de Stockhausen, as histórias que vão surgindo na tela
talvez tragam algumas surpresas ou soem algo confusas. Um resumo de sua vida
familiar: ele se casou pela primeira vez com Doris Andrea, com quem viveu entre
1951 e 65, tendo quatro filhos, dentre eles Markus, trompetista que seria
parceiro muito próximo do pai durante grande parte de sua vida. Depois, se
casou com a artista plástica alemã Mary Bauermeister, vivendo juntos de 1967 a 72, tendo mais dois filhos, Julika e Simon – este, um artista sonoro que trabalha com
eletrônicos e que atuou ao lado do pai nos anos 80 e
90. Em meados da década de 1970, seria a vez de a clarinetista norte-americana
Suzanne Stephens se tornar a companheira do compositor; e no começo dos anos 1980, entraria
na sua vida a flautista holandesa Kathinka Pasveer. E foram Suzanne e Kathinka
– com quem manteve um relacionamento estável até o fim da vida, formando um
equilibrado triângulo relacional, como elas pontuam no filme – que se
tornaram suas herdeiras artísticas, responsáveis pela preservação e divulgação
de sua obra. Assim, as duas artistas são onipresentes no documentário, mais do
que qualquer outro familiar de Stockhausen, estando ambas envolvidas com cada
etapa da criação do espetáculo tema do filme.
Um dos blocos de
LICHT - Stockhausen’s Legacy é aquele no qual vamos poder observar mais o
homem Karlheinz Stockhausen do
que sua obra. Stockhausen é retratado como pai ausente que tinha apenas sua
música como real interesse na vida. A única forma de os filhos estarem próximos
a ele era fazendo parte de seu universo musical. As mágoas em relação a ele vão
se acumulando e aprofundando no decorrer dos relatos, passando longe dos usuais
depoimentos elogiosos que marcam documentários de abordagem biográfica. Para quem
conhece a música de Stockhausen, é especialmente interessante as participações
de Simon e Markus, já que eles fizeram parte, por longo tempo, das criações do pai.
Simon, nascido em 1967, passou a acompanhar o pai nos palcos e estúdios ainda
adolescente, no começo dos anos 80. Focado em eletrônicos e sintetizadores,
trabalhava muito próximo a ele, criando bases para muitas das peças do compositor. Já Markus, nascido em 1957, se tornou trompetista e
sempre pareceu ser o grande herdeiro artístico de Stockhausen, que escreveu muita
música exatamente pensando nele – um dos protagonistas de LICHT é Michael, interpretado
por um trompetista, tendo ficado a cargo de Markus por décadas (mas não na
apresentação de 2019). E mesmo os dois, como contam, romperam com
o pai em dado momento, quando desejavam fazer sua própria música – e a resposta de Stockhausen
foi se afastar deles. Para o compositor, música e vida eram indissociáveis;
e só uma música importava, a dele. Simon rompeu com o pai em 1996 e nunca mais
teve contato com ele (passados anos de silêncio, Simon
enviou uma carta em busca de uma reaproximação; Stockhausen jamais respondeu).
Markus se afastou do pai no começo do século XXI – em dezembro de 2007, quando Stockhausen
morreu, ele decidiu seguir no Chile, onde tinha concertos agendados, deixando
de estar presente no enterro dele. Uma questão levantada por uma de suas filhas,
com quem ele cortou relações por ela criticar sua música, resume a impressão
que nos deixa seu retrato no filme; diz ela:
por que pessoas como ele decidem
ter filhos?
O outro bloco é o que
deveria ser o centro de interesse do documentário, ou seja, a montagem de
LICHT.
Composto entre 1977 e 2003, LICHT é um ciclo que reúne sete óperas, que
totalizam nada menos que 29 horas de música. Demandando cerca de 500 artistas
(entre instrumentistas, cantores, dançarinos, atores...), quatro helicópteros e
sete teatros, LICHT é uma obra de temática mítica, trazendo elementos das
tradições judaico-cristã e védica. Seus três protagonistas (e centros sonoros)
são Eva, Lúcifer e Michael. Cada uma das óperas representa (e é nomeada com) um
dia da semana e as simbologias ligadas a eles, ou seja: Montag (segunda-feira;
regido pela Lua), Dienstag (terça; regido por Marte), Mittwoch (quarta;
Mercúrio), Donnerstag (quinta; Júpiter), Freitag (sexta; Vênus), Samstag
(sábado; Saturno) e Sonntag (domingo; Sol). O projeto original prevê que o
ciclo seja apresentado sequencialmente, com cada ópera em seu respectivo dia da
semana e em um teatro/local diferente. Durante sua vida, Stockhausen viu estreias
e apresentações avulsas deste ou daquele dia do ciclo, como a celebrada
montagem de Montag, em 1988, no Teatro ala Scala de Milão. Mas ele morreu antes
que toda a obra pudesse ser encenada como planejado. A primeira montagem que
buscou abarcar o ciclo todo é esta de 2019, realizada em Amsterdã pela Dutch
National Opera e documentada em
LICHT -
Stockhausen’s Legacy – portanto, mais de uma década após a morte do
compositor. Sob a direção artística de Pierre Audi, a montagem retratada foi a
que chegou mais longe, mas, mesmo assim, ficou devendo a totalidade: as sete
óperas foram, digamos, condensadas em cerca de 15 horas de música, divididas em
três dias de apresentações. Daí o nome da apresentação de 2019 ter sido
aus LICHT.
De qualquer forma, é o mais longe que se chegou em relação a colocar LICHT no
palco. O já lendário Helicopter String Quartet (um quarteto de cordas em que
cada um dos instrumentistas toca a partir de um helicóptero em voo, com
transmissão de imagens diretamente para um telão no teatro), que faz parte de Mittwoch, não foi deixado de lado, apesar da
dificuldade sempre grande de encená-lo. Afora a monumentalidade
estrutural de se montar uma obra dessas, vemos no documentário a dificuldade de
se chegar ao que seria o produto final. É sensível a dificuldade de se
encontrar a linha ideal para a montagem nos embates retratados entre Pierre
Audi (que se mostra fascinado por Licht, mas não um especialista em
Stockhausen) e Suzanne Stephens e Kathinka
Pasveer, que conviveram por décadas com Stockhausen e com LICHT, sendo
conhecedoras profundas do que a obra representa e como seu criador desejava que
fosse apresentada. O fato de as duas artistas estarem diretamente envolvidas com a
montagem sem dúvida ajudou a dar o melhor rumo possível ao projeto, para sorte de quem teve o prazer
de presenciar esse momento culturalmente tão marcante (a direção musical de LICHT coube
a Pasveer). Ver momentos do antes e do durante de LICHT no palco em
2019, generosos porque a diretora do filme teve amplo acesso a todas as etapas,
é o grande atrativo do documentário, que o torna de fato imperdível e único.
Talvez para quem esteja mais interessado na arte do que na pessoa de
Stockhausen fosse mais estimulante o filme dar menos espaço para o homem e ampliar o mergulho na sua obra, abrindo uma discussão mais profunda sobre o papel de LICHT no trabalho desenvolvido por mais de cinco décadas pelo compositor alemão, por exemplo. De qualquer forma,
LICHT - Stockhausen’s Legacy é um documentário muito bem-realizado e oportuno, que merece
ser apreciado por quem se interessa pelas vias mais inventivas da música
contemporânea.
SESSÕES no In-Edit
Brasil
"LICHT – Stockhausen’s
Legacy" (2022)
*19/06 – CineSesc,
às 18h (R$ 8 a R$ 24)
*21/06 –
Cinemateca, às 19h (grátis)
*24/06 – CCSP/Spcine
Paulo Emilio, às 18h (grátis)
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*quem assina:
Fabricio
Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária.
Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda
correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como
Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e
literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns
“Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”,
de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e
Matthew Shipp (SMP Records)