CRÍTICAs Dois documentários fundamentais para conhecer
o universo do free jazz, Fire Music e Imagine The Sound, estão em cartaz no In-Edit
Brasil...
Por Fabricio Vieira
Quando em 2014 o diretor Tom Surgal anunciou que estava
iniciando uma campanha colaborativa para poder finalizar um documentário sobre free jazz que estava realizando houve muito burburinho. O título do projeto
era tentador: Fire Music: A History of The Free Jazz Revolution. Logo se falou em
uma resposta ao filme “Jazz”, de Ken Burns, sempre criticado por ter tratado o
free jazz de forma ligeira e parcial. Surgal tinha o amparo de conhecidas
figuras que davam credibilidade a seu projeto, a destacar alguns dos envolvidos na
produção executiva, Thurston Moore, Nels Cline e Ron Mann – este, responsável
por dirigir o pioneiro documentário envolvendo artistas do free jazz Imagine
The Sound, de 1981. Fire Music levou ainda alguns anos até ser concluído, tendo
sua pré-estreia apenas em 2018 – e com a versão final, a que se tornou a
oficial, ficando pronta mesmo apenas em 2021 e com um novo subtítulo, The Story of Free Jazz. Agora nós teremos a oportunidade de ver tudo isso ao
mesmo tempo e pela primeira vez. O festival In-Edit Brasil programou nada menos
que Fire Music e Imagine The Sound para esta sua edição.
Além do envolvimento de Ron Mann, Fire Music e Imagine The
Sound têm conexões basilares, que fazem com que vê-los em sequência seja mesmo
uma experiência complementar e que permite certo aprofundamento nos tempos áureos
do free jazz. A começar pelo universo abordado. Ambos direcionam suas lentes a
figuras da era clássica do free jazz, ou seja, os Estados Unidos da década de
1960 e seus protagonistas. As lentes de Imagine The Sound são mais fechadas,
tendo seu foco em quatro nomes: o saxofonista Archie Shepp, o trompetista Bill
Dixon e os pianistas Cecil Taylor e Paul Bley. Já Fire Music olha mais para a
formação e o estabelecimento da cena free jazzística, com seus múltiplos
personagens e alguns desdobramentos (o filme fala rapidamente sobre a cena loft
dos anos 70 e o surgimento do free europeu). Apesar de surgir bem depois,
pensando em certo didatismo seria mais interessante a opção de assistir
primeiro a Fire Music, devido a seu perfil mais de testemunho histórico. E
depois ver Imagine The Sound, que vai exatamente destacar apenas alguns dos
personagens que fizeram parte do universo apresentado em Fire Music.
Apesar de seu tema ser uma revolução artística, Fire Music segue uma linha mais padrão, se guiando por uma rota temporal para
falar sobre o gênero, utilizando depoimentos e material de arquivo visual e
sonoro (inclusive com cenas de Imagine The Sound). O filme abre com imagens de
uma explosiva apresentação da Sun Ra Arkestra, que funciona como uma introdução
ao universo que será apresentado; a jornada então começa, partindo de Charlie
Parker, protagonista da revolução jazzística anterior, que morreu em 1955, pouco
antes de o free jazz eclodir. Daí, vão sendo apresentados os pioneiros Ornette
Coleman, Cecil Taylor, John Coltrane e assim sucessivamente. Uma ideia
interessante foi a de centrar os depoimentos apenas em artistas que viveram
aquele mundo inicial do free jazz. Aparecem na tela (boa parte entrevistado
para o filme mesmo, outros resgatados em arquivo) Bobby Bradford, Rashied Ali, Noris
Sirone Jones, Bill Dixon, Dave Burrell, Noah Howard, Gato Barbieri, Wadada Leo
Smith, Prince Lasha, George Lewis, John Tchicai, Roswell Rudd, Burton Greene, Sonny Simmons,
Karl Berger... Sim, apenas homens. A pianista e compositora Carla Bley vai
surgir como uma isolada voz feminina no filme (apenas a vocalista Ingrid Sertso
também dará seu depoimento). Se o documentário fosse focado apenas nos
primeiros anos do free jazz, até 1965, por exemplo, poderia se falar sobre a
ausência de artistas mulheres na cena à época. Mas como se estende até a
chegada da década de 1970, sem dúvida outras artistas mulheres poderiam ter tido
espaço, ser ouvidas no filme.
O subtítulo final do documentário, o mais simples The Story of Free Jazz, não deixa de poder gerar certa expectativa errônea.
Se tenta ir um pouco além, Fire Music é focado de fato em Nova York e na
primeira década do free jazz. O documentário vai, temporalmente, se desenvolvendo
sem pressa – aos 58 minutos, ainda se está falando de Albert Ayler –, para de
repente acelerar no que parece ser uma tentativa de ampliar seu escopo. Deixamos
Nova York e começamos a ver o que acontecia em Chicago apenas com cerca de 1
hora de filme rodado, quando se fala um pouco de AACM, Art Ensemble of Chicago
e Anthony Braxton. Menos de 10 minutos depois, estaremos de volta a Nova York,
já falando da cena loft que se estruturou nos anos 70. Daí saltamos rapidamente
para a Europa, onde, durante uns 5 minutos, fala-se da cena que surgiu lá, com
depoimentos de Brötzmann, Gunter Hampel, Evan Parker, Han Bennink... E a Sun Ra
Arkestra, que abre o documentário, é reconvocada para encerrá-lo. Se é
indiscutível a importância de Fire Music, é inevitável a sensação de que
poderia ter ido bem mais longe, mesmo que mantivesse o recorte temporal que
escolheu. O tanto de arquivo (áudio, iconográfico, de vídeo) que é catalogado
nos créditos nos faz imaginar o quanto de coisa (muita provavelmente pouco
conhecida) ficou de fora. Material mais raro, como o que vemos de Albert Ayler
e Marion Brown, acaba explorado de forma ligeira. E o filme é relativamente
curto, estava tudo na mão... enfim. Fica a expectativa de o filme ter sido
bem-sucedido a ponto de empolgar Tom Surgal a fazer uma parte II seguindo de
onde parou.
Imagine The Sound traz personagens que estão em Fire Music,
mas a visada é bem diferente. Realizado em 1981, tem um ar mais fresco, não de
olhar o passado (vendo de hoje, trata-se de passado, mas quando foi lançado o
enfoque eram artistas que estavam fazendo a música ainda acontecer naquele
momento). Os quatro músicos que o filme acompanha estavam bem vivos à época:
Cecil Taylor (1929-2018), Paul Bley (1932-2016), Bill Dixon (1925-2010) e Archie
Shepp, último remanescente daquela turma, ainda ativo hoje com seus 86 anos.
Ron Mann apresenta aqui um filme mais dinâmico, com uma linguagem fresca e inventiva.
Não há material de arquivo envolvido, nem um tom didático. O diretor liga sua
câmera e filma os quatro músicos em ação, separadamente, e os ouve falar sobre
a arte que fazem e professam – como é incrível ver o artista que Cecil Taylor
era, inventividade florescendo à nossa frente, ele só ao piano, recitando sua
poesia, fazendo seus passos de dança, sempre emocionante; não à toa, por mais equilibrado
que o documentário tente ser, Taylor acaba se tornando seu ponto luminoso,
aquele que nos faz redobrar a atenção toda vez que surge na tela. As entradas e
saídas dos quatro músicos vão se alternando, ora um ora outro, não é um bloco
para cada, o que reforça a agilidade narrativa do documentário. O filme foi
realizado todo no Canadá, com as filmagens dos músicos tocando tendo sido
feitas num estúdio em Mutual St, em Toronto. O entrevistador, que vemos na tela
algumas vezes, é o músico e editor Bill Smith, um saxofonista pioneiro do free
jazz no Canadá e responsável por anos pela revista de jazz Coda. Ron Mann, que
tinha apenas 22 anos à época, conseguiu realizar um dos filmes imperdíveis a
abordar o universo do jazz mais inovador. Não deixem de assistir aos dois filmes e poder sentir um pouco mais de perto a revolução que essa música protagonizou.
SESSÕES no In-Edit Brasil
“FIRE MUSIC” (2021)
*16/06 – CineSesc, às 15h (R$ 8 a R$ 24)
*22/06 – Cinemateca, às 19h (grátis)
*23/06 – Associação Cultural Cecília, às 18h (grátis)
“IMAGINE THE SOUND” (1981)
*18/06 – Cinemateca, às 16h (grátis)
*21/06 – Cine Cortina, às 21h (grátis)
*24/06 – Associação Cultural Cecília, às 16h (grátis)
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*quem assina:
Fabricio
Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária.
Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda
correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como
Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e
literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns
“Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”,
de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e
Matthew Shipp (SMP Records)