CRÍTICAs A pianista suíça Sylvie Courvoisier se uniu a Cory
Smythe para esta imperdível releitura a quatro mãos do clássico Le Sacre Du
Printemps...
Por Fabricio Vieira
“
Já os primeiros compassos do prelúdio provocaram risos de
escárnio. Eu fiquei revoltado. Essas manifestações, a princípio isoladas, logo
se generalizaram, levando por sua vez a reações contrárias e se transformando
rapidamente em um tumulto indescritível.” Assim se recordaria Igor Stravinsky (1882-1971)
sobre a estreia de sua peça
Le Sacre Du Printemps, em maio de 1913, no Théâtre
des Champs-Élysées, em Paris. Aquela peça politonal, marcada pela utilização de
ritmos populares e uma intensidade de execução que assombrou o público – com seu
não menos inovador e ousado balé, coreografado pelo lendário Vaslav Nijinsky –,
se tornaria uma das obras mais emblemáticas da música do século XX. Gravada inúmeras
vezes por orquestras de todo o mundo, revivida pelos mais destacados maestros durante
o último século, Le Sacre Du Printemps (The Rite of Spring/ A Sagração da Primavera)
não causa mais tumulto nas plateias, mas mantém seu impressionante vigor e
intensidade penetrante em níveis que ainda podem causar forte impressão nos ouvintes.
Menos executada é a versão de Le Sacre Du Printemps para dois pianos feita pelo
próprio Stravinsky mais de um século atrás. Essa redução provavelmente tinha a
função inicial de ser mais utilizada para os ensaios do balé de Le Sacre Du
Printemps. Mas ganhou vida própria e foi sendo executada em programas de
concerto de pianistas com o tempo. Agora é a vez de a pianista suíça
Sylvie Courvoisier, nome emblemático da free music,
enfrentar essa obra. Para a empreitada a quatro mãos, ela convidou Cory Smythe.
A relação de Courvoisier com a peça de Stravinsky vem de há um
bom tempo. Durante cerca de uma década, a pianista se apresentou com o dançarino
de flamenco Israel Galván, interpretando sua peça La Curva. Em dado momento,
Galván citava em sua coreografia uma pose clássica de Nijinsky, e Courvoisier
passou a tocar no piano naquele momento um trecho de A Sagração da Primavera.
Daí veio a ideia de um novo projeto dos dois, com a pianista passando a
trabalhar em um arranjo solo de The Rite of Spring. Mas aí ela descobriu que os
herdeiros de Stravinsky apenas permitiam execuções ao piano da
Sagração se
fosse a versão para dois pianos do próprio compositor. Foi então que decidiu
procurar um colega para tocar a peça e chegou, por sugestão da saxofonista Ingrid
Laubrock, a Cory Smythe. Assim foi nascendo o álbum agora editado, que traz uma muito estimulante releitura do clássico de Stravinsky, completado com uma
nova composição de Courvoisier,
Spectre d’un songe (“uma resposta
impressionista a Stravinsky”, que trabalha com elementos característicos do
compositor russo e abre as portas para a improvisação mais livre, algo tão caro
à pianista). “
It’s inspiring to dig into a great piece like this”, afirma
Courvoisier. “
When you study and practice this music, you begin to integrate it
the same way you do a jazz tune”, explica. “
It took me probably two years to
learn it, maybe more, and when you live with a piece like that it changes your
whole approach. Then when you improvise it comes back. I think it’s part of my
language now.”
Gravado em dezembro de 2021 no Oktaven Audio, em Mount
Vernon (NY), por Ryan Streber, e mixado em 26 de julho de 2022,
The Rite of
Spring - Spectre d’un songe é um impressionante álbum que merece atenta escuta
por aqueles que se interessam pelas inovações sonoras de ontem e de hoje. O
fato de Courvoisier trazer uma peça sua para dialogar com Stravinsky amplia
pontes entre universos sonoros distintos mas complementares, fazendo desta uma
experiência de grande vigor expressivo e inegável frescor criativo. O álbum, editado pelo selo Pyroclastic Records, se
divide, então, em duas partes: o primeiro bloco é a releitura do clássico
stravinskyano, separado em dois movimentos, “Le Sacre Du Printemps Pt.1 - The Adoration of the
Earth” (de 15m45) e “Le Sacre Du Printemps Pt. 2 - The Sacrifice” (18m33); o
segundo bloco é representado pela peça “Spectre d’un songe”, com seus 29
minutos. Os dois pianos trabalhando juntos oferecem uma sensível massa sonora
que, se materialmente não é possível reproduzir com a mesma robustez as maciças
seções de sopros e percussão que marcam Le Sacre Du Printemps, dão conta de
criar intensidade impactante e excitante, que fazem dessa versão algo com
indiscutível apelo. Um álbum para ser degustado seguidas vezes, com novas camadas
expressivas se revelando a cada escuta. “
The Rite of Spring is a piece
I’ve loved for as long as I can remember”, diz Courvoisier. “
It’s not an easy
piece. This project was an incredible challenge.”
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em
Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por
alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou
também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos
anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de
liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo
Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live
in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)