Sons nas Redondezas (novidades nacionais)


LANÇAMENTOs
  Em destaque, discos de artistas nacionais que exploram diferentes vias improvisativas, criativas e jazzísticas. Ouça, divulgue, compre os discos... 

 


Por Fabricio Vieira

 

YvoTrio

YvoTrio

Independente

O guitarrista Yvo Ursini, integrante do grupo Projeto B, aparece com novo trabalho. Desta vez, trata-se do trio formado ao lado de Matteo Papaiz (baixo) e Mauricio Caetano (bateria). O YvoTrio mostra em seu disco de estreia homônimo dez peças autorais, gravadas no Space Blues Studio. Eles se apresentam como um trio de música instrumental alternativa e mostram em suas peças uma amplitude de influências e rumos, que se refletem de forma distinta, sem perder a coesão do álbum, de um tema a outro. Ouvindo as peças, vamos nos deparando com elementos que descendem ora do jazz contemporâneo, ora de certas linhagens pós-rock, há ainda traços que vem do instrumental brasileiro, compondo, assim, um painel aberto que bem funciona para a confecção das equilibradas e inventivas faixas. Nesse percurso, há espaço para certa melancolia (“Bécon Les Bruyères”), em outro extremo, um toque rock mais direto e certeiro (como em “Rocker”, com seu baixo de linhas contagiantes e uma guitarra que abre a faixa com efeitos cortantes que algo remete aos campos do pós-punk), e até momentos altamente climáticos, como na entorpecente “Cidade Vazia”, com Ursini explorando também sintetizador e efeitos.  

 

Calisthenics

Marina Cyrino & Matthias Koole

Seminal Records

Duos envolvendo flauta e guitarra definitivamente não estão entre os mais visitados na free music. Isso aguça ainda mais a curiosidade para conhecer este trabalho que une Marina Cyrino e Matthias Koole. A dupla, em temporada na Alemanha, concebeu este novo projeto que batizaram de Instituto de Práticas Sônicas Nômades Ilícitas Certificadas. Se inusual é a formação, inusuais também são os caminhos percorridos pela dupla. Amparados por piccolo e flauta alto amplificados (Cyrino) e guitarra elétrica (Koole), navegam pela improvisação livre em faixas nas quais técnicas estendidas são importantes bases nessa busca por uma criação à qual não faltam particularidades. Com livre inspiração nos desenhos de “Handbook of Calisthenics and Gymnastics: A Complete Drill-book with Music to Accompany the Exercises”, de J. Watson, editado em 1864, o IPSNIC desenvolveu as oito peças (ou “exercícios”, como se referem à produção) aqui apresentadas. As faixas podem ser divididas em dois blocos; de um lado, sete peças mais breves, duas delas com menos de 1 minuto, nas quais as ideias se desenvolvem de forma mais direta e pontual (exceção a “Donkey Kick”, que chega a 7 minutos e oferece mais tempo para as ideias irem preenchendo nossos ouvidos e atenção). A oitava peça, “Full Arch” (que forma sozinha o lado B na versão LP), se revela como uma síntese do projeto, abrindo e ressignificando caminhos pontuados pelas faixas mais breves. Com seus 18 minutos, “Full Arch” mostra a dupla em seu mais alto vigor criativo, desenvolvendo plenamente o proposto no projeto. Calisthenics sai em digital e edição especial em vinil, limitada a 300 cópias.

 

Starting Point

Grupo Um

Far Out Recordings

O Grupo Um causou bastante impacto com seu disco de estreia, Marcha Sobre a Cidade, de 1979. Mas havia um lendário registro anterior a seu celebrado debute oficial. E finalmente esta gravação ganhou uma edição comercial, quase cinco décadas após ser gestada. Era 1975 quando os irmãos Lelo e Zé Eduardo Nazário chamaram o baixista Zeca Assumpção para um projeto que unia liberdade jazzística, elementos da música brasileira e muitos experimentos expressivos. Este trio entrou no mítico Estúdio Vice-Versa, em São Paulo, naquele 1975, onde passou dois dias e gravou as seis peças que formam o registro agora resgatado. Já com todos elementos que consagraria o Grupo Um alguns anos à frente, é inacreditável que Starting Point não tenha sido redescoberto antes, nesses resgates da música nacional que de tempos em tempos vemos acontecer. E, mais uma vez, como aconteceu com o fantástico álbum Viajando com o Som, de Hermeto Pascoal, tal resgate e (caprichada) edição ficou a cargo do selo britânico Far Out Recordings. As seis faixas são autorais, assinadas por Lelo e Zé Eduardo, e mostram uma amplitude de ideias que bem ilustram a inspiração sem fim dos irmãos. Entre faixas com brasilidades mais explícitas (“Cortejo dos Reis Negros”), com toques jazzísticos mais acentuados (“Suite Orquidea Negra”) ou navegando por vias mais experimentais (“Jardim Candida”), o álbum é um grande registro, à altura dos outros trabalhos que o Grupo Um soltaria em sua trajetória. Editado em LP, CD e digital.

 

Duo Ímã

Amanda Rocha/ Lucas Bardo

Independente

Muitos projetos surgiram durante o isolamento imposto pela pandemia a partir de 2020. Esse é o caso deste novo duo instrumental que surgiu em Araraquara, interior de São Paulo. Formado pelos irmãos Amanda Rocha (contrabaixo) e Lucas Bardo (piano, teclados), o Duo Imã reflete os tempos em que foi gestado. “Uma narrativa sonora introspectiva, sensível e existencial”, diz, acertadamente, o texto de apresentação do projeto. Já falamos sobre o trabalho de Amanda Rocha por aqui, mas era uma proposta bastante distinta, o duo/power trio La Burca, mais integrado à cultura pós-punk/rock alternativo. Agora, com o Duo Ímã, vemos uma outra face de sua música. “Jazz, música clássica e rock são permeados pelo diálogo timbrístico entre baixo e piano”, resultando em uma música instrumental intimista, de sensível lirismo. O resultado tem sido apresentado aos poucos, com uma série de singles que começaram com Tabernáculo, no fim do ano passado, e que teve seu mais recente capítulo com o lançamento da peça Circunstância. Aguardamos agora o álbum de estreia.

 

ODO~

Sintodrama

Independente

Filipe Maliska, baterista do sensacional Entrevero Instrumental, apresenta aqui seu novo projeto, o duo Sintodrama. Criado ao lado de Kauê Werner em Santa Catarina há alguns anos, o Sintodrama começou a trabalhar neste ODO~ em 2021. O ponto de partida do álbum foi a questão: “Cheiro tem som?”. “Através desse projeto de pesquisa e composição, foram sintetizados timbres e criadas escalas microtonais a partir de vibrações de moléculas odoríferas”, dizem na apresentação. As explorações eletroacústicas do duo – ou, como dizem fazer: diferentes possibilidades sônicas através de processamento de sons acústicos e síntese através de algoritmos – resultaram em 12 faixas, além de um documentário, “Sinto Cheiro de Drama”, de 42 minutos, que ajuda a clarear as ideias por trás do disco e do projeto Sintodrama como um todo. O duo disponibilizou ainda o algoritmo para supercollider Odor Molecule Sonification, para síntese sonora a partir de moléculas odoríferas. Assim, dar apenas play no disco talvez não seja suficiente para compreender tudo o que o projeto se propõe.

  

Ao Vivo no 74Club

Dror Feiler & AjaxFree

Brava

Encontros entre artistas brasileiros e estrangeiros na free music são um capítulo à parte na história dessa seara musical no país. Muitas parcerias aconteceram, especialmente na última década e meia, rendendo inclusive discos e projetos mais consistentes. Um dos pontos mais recentes nessa história aconteceu no fim do ano passado. O saxofonista e improvisador israelense (radicado na Suécia) Dror Feiler é um antigo conhecido nosso, tendo estado no país já em outras oportunidades. Em novembro de 2022, ele fez uma breve turnê por São Paulo, organizada pela Brava, e não faltou diálogo com artistas locais. Um desses encontros foi devidamente registrado e agora editado. No dia 5 de novembro de 2022, Feiler se apresentou no 74Club, em Santo André, no ABC paulista. Ao saxofonista se uniu o AjaxFree. Projeto do músico Fábio A., que conta com mais de duas décadas de estrada, o AjaxFree caminha pelas vias do noise/experimental. Feiler (sax alto, sopranino, soprillo e eletrônicos) também gosta pouco de barulho e o resultado do encontro com o AjaxFree (objetos amplificados, pedais, shaker chaos, chaos machine, geradores de ruídos) não poderia ser diferente: quase meia hora de cortantes ruidosidades sem amarras.    

 

Ni yuxibu xinã rewe

Marco Scarassatti & Ibã Huni Kuin 

sirr-ecords

Marco Scarassatti, artista sonoro, improvisador, compositor e professor da UFMG, tem desenvolvido um importante trabalho, por caminhos múltiplos. E este seu mais recente disco é especialmente interessante. Para o projeto, Scarassatti partiu de cânticos rituais do povo Huni Kuin, que vive nas margens do rio Jordão, dentro da Floresta Amazônica, no Acre. “O canto, dentro da cosmo-percepção Huni Kuin, é também um elemento forte e essencial para essa conexão com o espírito da Floresta, numa reconfiguração anamórfica”, explica. “Ni yuxibū xinã rewe, que em português significa Sons do Espírito da Floresta, surgiu a partir de um contato inicial com Ibã, em 2016, quando gravei os cantos do ritual do Nixi Pae (Ayahuasca), em Porto Seguro, Bahia.” Ibã é um mestre de cantos de seu povo. E sem a aproximação com ele, Scarassatti provavelmente não teria desenvolvido este projeto. As gravações com Ibã foram realizadas em dois momentos distintos. “A partir dessas gravações, procurei fazer processamentos que recriassem a alteração tempo/espacial própria do transe. A ideia era criar uma miração auditiva”, conta Scarassatti. Entre o primeiro encontro com Ibã e o disco que ora ouvimos houve um capítulo intermediário. Em 2020, Scarassatti foi convidado (junto a Livio Tragtenberg, que assina a produção musical do disco) para apresentar uma instalação sonora no Festival Culturespaces, na Suíça. “Foi um concerto audiovisual com imagens em vídeo feitas pelo Luiz Pretti e, no palco, eu e o Livio tocávamos com o Ibã.” Depois, veio a ideia de transformar a experiência em um disco. O resultado, dividido em oito peças, é realmente um hipnótico mergulho de quase 40 minutos em um universo muito particular, uma inebriante sonoro-cultural experiência – potencializada ao extremo com bons fones ou um potente estéreo e, recomendamos, luzes apagadas.

 

Rasgo

Mariana Carvalho/ Paula Sanchez

Neue Numeral

A pianista brasileira Mariana Carvalho tem nos últimos anos feito interessantes parcerias no exterior. Formada em piano pela USP, fez parte do NuSom e da Orquestra Errante antes de rumar para a Europa (vive hoje em Berlim). Antes da Alemanha, uns anos atrás, ela esteve por Portugal, onde tocou e gravou com destacados nomes, como Ernesto Rodrigues, Maria do Mar, Hernani Faustino, Helena Espvall, Abdul Moimeme, dentre outros, aparecendo em diferentes discos editados pelo fundamental selo Creative Sources (destaque para o intrigante “Eclipse”, de 2021). Neste seu mais recente álbum, Mariana Carvalho aparece em duo ao lado da violoncelista argentina Paula Sanchez. O registro foi feito antes da pandemia e só agora está saindo por um selo argentino. Rasgo foi captado em setembro de 2019, em Basel, na Suíça, e traz oito peças. Não sei o quanto as duas instrumentistas já haviam tocado juntas, mas o álbum apresenta um encontro muito bem ajustado, que leva o ouvinte a pensar que está diante de um duo que muito se conhece (se não era o caso, o diálogo improvisado foi certeiro). Piano e violoncelo são explorados por vias de amplas possibilidades expressivas, recorrendo a técnicas estendidas e estimulante inventividade, resultando em algo que vai se abrindo aos ouvidos com o passar das faixas, fazendo com que os sentidos aguardem com ansiedade quais serão os passos seguintes – e surpresas não faltam no caminho. Improvisação livre conduzida por duas vozes que mostram que sabem exatamente o que querem com sua música, com muita precisão técnica, levando a resultados de inquietantes rumos. Mariana Carvalho tem construído um importante capítulo de sua história no exterior, se revelando como uma das vozes mais inventivas da música feita por artistas do Brasil na atualidade.

 

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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)