PLAY IT AGAIN (Solos)...


LANÇAMENTOs
Novidades de artistas de diferentes cantos do mundo; em destaque, trabalhos solistas. Experiências variadas, possibilidades múltiplas. Ouça, divulgue, compre os discos... 

 



Por Fabricio Vieira

 

We Fell In Turn

Kalia Vandever

AKP Recordings

Kalia Vandever é uma nova voz no mundo jazzístico que vem ampliando o vocabulário de um instrumento ainda relativamente pouco executado por mulheres: o trombone. E neste seu mais recente trabalho, ela mostra a amplitude de suas ideias da maneira mais desnuda possível, ou seja, de forma solista. Improvisadora e compositora, formada na Juilliard School, lançou seu primeiro álbum, In Bloom, em 2019 e vem, desde então, ampliando suas parcerias e colaborações, que já vão de Immanuel Wilkins a Mary Halvorson. Artista que faz parte do efervescente Brooklyn nova-iorquino, Vandever apresenta neste álbum 10 peças suas, registradas em março de 2022 no Koda Sound (NY). We Fell In Turn, de um modo geral, é bastante climático, com certa anestesiante morosidade permeando a pouco mais de meia hora que compõe o disco, com as notas cortando delicadamente o espaço, em meio a pinceladas de efeitos que surgem aqui e ali, ampliando as texturas. “My solo process has always been heavily rooted in improvisation,” diz Vandever na apresentação do trabalho. “I wanted the process to feel similar to the way I perform. Lee Meadvin, who engineered and produced the album, had a heavy hand in the creative process as well. He would dictate prompts before I started improvising and those pieces ended up shaping a lot of the imagery that comes up throughout the record.” As faixas, com ideias concentradas e coesas, oscilando entre 2 e 4 minutos cada, funcionam com perfeição para serem ouvidas sequencialmente, como partes de um todo maior. Editado em LP e digital.

 

 

Øbsidiana

Filipe Raposo

Lugre/Tinta-da-China

O pianista português Filipe Raposo está trabalhando em um ambicioso projeto de piano solo. São três álbuns acompanhados de livro com fotos e textos do artista. A trilogia compõe um ensaio sonoro e visual, com cada título trazendo uma reflexão sobre a influência de três cores essenciais, o vermelho, o preto e o branco. Øbsidiana é o segundo capítulo do projeto. A bagagem sonora de Raposo, espelhada em sua obra, é ampla, absorvendo elementos do jazz e da improvisação, do erudito e da música popular portuguesa. O resultado são 12 faixas, um conjunto muito coeso, carregado de bastante lirismo, passando por momentos de delicada melancolia (como na belíssima “Do Not Go Gentle Into That Good Night”, título inspirado no clássico poema do galês Dylan Thomas; ler o poema junto à execução da música é experiência realmente tocante), swingando ora ou outra (“A Sombra de Peter Schlemihl”) ou mesmo flertando com brechas de quase-silêncio (“Et in Arcadia ego”); a obra revela um artista de refinadas ideias e grande domínio técnico-expressivo. O projeto – daqueles desenvolvidos para se ter fisicamente, ouvir-ler-ver em seu todo – tem sido desenvolvido com vagar: a primeira parte da trilogia, Øcre, que tinha o vermelho como cor focal, foi editada antes da pandemia, em 2019. O pianista trabalha agora no último capítulo, a vez do branco, ainda sem data para sair.

 

 

Aqui, Dentro

João Madeira

Miso Records

O contrabaixo solista parece estar sendo investigado cada vez mais por diferentes artistas. Agora é a vez de João Madeira estrear no formato. Experimentado baixista da cena jazzística e improvisada de Portugal, tem trabalhado na última década com nomes como Ernesto Rodrigues, Miguel Mira e a Variable Geometry Orchestra. Este é um registro bastante particular, gravado no auge da pandemia, em maio de 2020. São apenas duas peças, de 24 e 16 minutos, que trazem muitas camadas a serem desvendadas por trás de certo minimalismo que a princípio parece marcá-las. A explicação sobre a obra ajuda-nos a melhor compreendê-la: “É uma peça performativa com dois andamentos para contrabaixo solo. A primeira parte do solo foi desenvolvida ao longo de cerca de 30 anos de estudo do contrabaixo, finalmente fixada em 2019 como uma composição. A segunda parte decorre de um dos cinco andamentos compostos para a peça A Máquina Hamlet, de Heiner Muller. As duas peças estão estruturadas em forma de espiral provocando no ouvinte um mergulho no som, uma outra experiência de percepção estética e auditiva, através da qual, dentro do som (uma nota) que ouve, por camadas, em direcção a um infinito potencial, cada ouvinte virá a descobrir o seu lugar de todas as músicas, uma música, todos os lugares". Agora é só aceitar o desafio e adentrar esses 40 minutos de música.

 


Tears of a Cloud

Taiko Saito

Trouble in the East Records

Imagino que não pouca gente descobriu o trabalho de Taiko Saito a partir de seu duo com a genial pianista Satoko Fujii, o Futari. Radicada em Berlim, Taiko Saito é uma artista japonesa, em atividade desde a década de 90, que toca vibrafone e marimba. Nascida em Sapporo, ela estudou marimba clássica e percussão na Toho School of Music. Muito versátil, Saito tem trabalhado com nomes que vão do produtor de hip hop Shing02 à compositora Sofia Gubaidulina, com gravações de projetos seus aparecendo em selos como Leo Records e Clean Feed. Em Tears of a Cloud, vemos Saito sozinha explorando vibrafone e marimba em nove peças – uma delas, “Angry Bee”, foi captada ao vivo durante o Berlin Solo Impro, um muito interessante festival que aconteceu há alguns anos e que colocou no palco uma dúzia de artistas em apresentações solistas. Esta não é a primeira experiência da artista nesse formato; em 2009, ela já havia lançado o álbum solista "Landscape". Mas agora parece que a encontramos mais amplamente solta na exploração improvisatória, possivelmente com alguns reflexos de sua experiência com o Futari nos últimos anos. Tears of a Cloud será lançado no dia 28 de abril em LP e CD.

 


Lisbon-Paris: Stereo Noise Solo

Luís Lopes

Shhpuma

O guitarrista português Luís Lopes tem sido um dos mais inventivos representantes da free music de seu país no século XXI. Sua discografia traz incríveis projetos de visadas bastante distintas, a destacar os sempre excitantes Humanization 4tet e Lisbon Berlin Trio. Lopes também tem realizado trabalhos solistas, nos quais explora tanto a guitarra acústica quanto a eletrificada. No projeto Noise Solo vemos sua versão mais radical – como indica o nome, temos aqui o guitarrista lidando sozinho com sua face mais ruidosa. Trata-se de um projeto onde Lopes está acompanhado apenas de sua guitarra e amplificadores. Uma década atrás, vimos chegar o álbum “Noise Solo”, que registrava esta sua faceta. Agora, um novo capítulo do projeto vem para excitar os ouvidos de quem gosta de circular por vias de ruidagens sem filtros ou amortecedores. Lisbon-Paris: Stereo Noise Solo traz duas extensas peças, uma gravada ao vivo no SMUP Parede (Lisboa), em 13 de abril de 2018; a outra, captada no Soirées Tricot Tricollectif Festival (Paris), em 30 de abril de 2017. A música foi executada com uma guitarra Gibson ES-340 (“A magic guitar that sings an enormous and generous spectrum of frequencies”, diz Lopes). Lisbon-Paris: Stereo Noise Solo mostra que adentrar o terreno do noise é muito mais do que apenas fazer barulho; para se ter uma obra realmente excitante, é preciso ter ideias e experiências sonoras que extrapolem o ato de criar ruídos. E Lopes sabe exatamente o que faz e como fazer disso algo verdadeiramente interessante.

 


Rites of Percussion

Dave Lombardo

Ipecac Recordings

Quem viveu as vias mais alternativas do rock e depois adentrou o universo da free music foi se deparando com nomes conhecidos seus circulando por ali, muitas vezes em experiências cheias de surpresas. Thurston Moore, Jason Pierce, Mike Patton, Luc Ex, Henry Rollins, Mick Harris, diferentes artistas tocaram ou mesmo montaram projetos com gente do free. Nessa lista, pode entrar também Dave Lombardo. O baterista fundador do Slayer começou nos anos 90 a interagir com o mundo da free music, provavelmente levado por seu amigo Patton. E a partir do fim daquela década, Lombardo tocou em diferentes oportunidades com John Zorn (chegando a gravar com ele), Fred Frith, Bill Laswell... Pensando na abertura artística a que está exposto Lombardo, não deixa de gerar muita curiosidade este seu novo álbum, o primeiro registro solista que faz. “Mike Patton originalmente me deu a ideia já em 1998”, conta Lombardo na apresentação do trabalho. “Tive ideias que gravei ao longo dos anos, mas Patton continuou insistindo que eu tinha que fazer um álbum de bateria. Então, a ideia por trás do disco está sendo realizada há anos. Eu só tinha que encontrar o momento certo para fazê-lo.” E foi no isolamento da pandemia que este momento surgiu. Lombardo não se restringe ao kit bateria, explorando também gongos, maracas, chocalhos, congas, bongôs, dentre outros aparatos percussivos em 13 peças, logo tirando do ar a impressão de que poderia tratar-se de um disco apenas focado em seu DNA metal. Sai em 5 de maio em CD, LP e digital.

 


Music Delivery/Percussion

Andrew Cyrille

Intakt Records

Em 1969, Andrew Cyrille entrou no escritório do famoso produtor John Hammond, da Columbia. Ele levava embaixo do braço uma cópia de uma gravação que havia feito na França e buscava um selo que se interessasse em lançar o material no mercado norte-americano. Tratava-se de aproximados 47 minutos de um trabalho de percussão solista, algo realmente inovador e raro à época. Hammond colocou o disco para tocar, enquanto Cyrille começava a explicar o projeto. Passado menos de 1 minuto, Hammond interrompeu a audição: pode esquecer, isso não é vendável. Sorte que What About?, que se tornaria um marco na free music, não dependeu da boa vontade do famoso produtor para circular e sobreviver até hoje (quem não conhece o disco?)... Cinco décadas depois, Cyrille, do esplendor de seus 83 anos, retorna ao formato para, uma vez mais, nos surpreender com sua sempre inventiva investigação percussiva. Music Delivery/Percussion é o novo registro solista desse mestre da free music, que traz 11 peças realizadas em janeiro de 2022 no Sound On Sound Recordings (EUA). São cerca de 43 minutos de música, remixada em maio passado por Cyrille, David Amlen e Patrick Landolt, que mostra o quanto uma sessão de percussão solista pode ser prazerosa. As variações não são poucas de faixa a faixa, dando-se sempre ênfase a uma possibilidade percussiva. “Thruway” abre com ele explorando a bateria mesmo, conduzindo o som com suas baquetas. Mas logo surge “La Ibkey (Don’t Cry)”, onde Cyrille passa a tirar a música com as mãos. Na sequência, “Metallic Resonance” traz o músico explorando pratos e outros aparatos percussivos de metal, em uma delicada peça onde o silêncio e as pausas ganham importância. E as variações vão se sucedendo, com pandeiros (“Tambourine Cocktail”), cowbells tocados com baquetas (“Cowbell Ecstasy”) e por aí vai. Um saboroso exemplar que bem representa a ampla e profunda arte desse notável percussionista.  

 


Gomberg III-V - Airplay

Franz Hautzinger

Trost Records

O experiente trompetista austríaco Franz Hautzinger reúne neste álbum que acaba de soltar experiências solistas que tem conduzido nos últimos anos. Começando sua trajetória na música ainda na década de 1980, Hautzinger tem estado envolvido com diferentes perspectivas da música criativa, aberto a explorações amplas de/com seu instrumento. Em 1997, iniciou a exploração do quartertone trumpet, que culminou no aclamado disco solista “Gomberg” (2000). Este novo registro é um prolongamento das pesquisas iniciadas lá. Gomberg III-V - Airplay traz um conjunto de 22 peças captadas em três momentos distintos: 2008, 2014 (ambos gravados em Viena) e 2018 (captado na cidade de Brest). Ouvido junto ao álbum “Gomberg” original, este novo disco permite que acompanhemos praticamente duas décadas de exploração sonora de Hautzinger. É um painel complexo e com muitas variáveis. Hautzinger não fica focado apenas no trompete seco, adicionando elementos outros a cada faixa, passando por dispositivos eletrônicos, zither, voz e percussão, tudo muito sutil, variando de uma peça a outra, criando um painel sonoro de muita riqueza expressiva.

 


In Medias Res

Peter Evans

Independent

O trompetista Peter Evans traz um aperitivo de algo maior que está por vir. In Medias Res é um single que ele acaba de soltar, parte de um futuro álbum para trompete solista. “In Medias Res is a short improvised solo using a few different techniques I've been working with recently. This is a snapshot of a larger collection of solo pieces I've been developing over the last two years. A release is down the road this year or early 2024”, explica Evans. Um dos maiores trompetistas de sua geração, Evans tem no formato solista um de seus veículos mais inventivos (como pudemos ver ao vivo no Brasil em apresentações memoráveis em julho de 2016). Seu disco solista Lifeblood (2016) é uma das obras-primas do formato. E, com Peter Evans explorando diferentes técnicas novas, como disse, a expectativa de nos depararmos com algo realmente fresco e impactante – e este single apenas aguça o apetite – fica nas alturas. Já um dos álbuns mais aguardados do ano...

 


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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)