ECHOES: mais uma genial obra da Fire! Orchestra


CRÍTICAs  A big band Fire! Orchestra acaba de editar seu mais novo título, um incrível e ambicioso registro que nasce como candidato a disco do ano...  

  



Por Fabricio Vieira 

Se tem uma coisa da qual Mats Gustafsson não pode ser acusado é de se repetir. Afora ter protagonizado uma multiplicidade de projetos marcantes nas últimas três décadas, o saxofonista sueco faz de suas principais bandas um espaço ao qual agrega sempre algo realmente diferente, com frescor. Gustafsson poderia, como muitos free improvisers de primeira linha, seguir apenas se reunindo a outros instrumentistas para improvisar livremente... Mas ele, refletindo as múltiplas influências artísticas e sonoras que fazem parte de sua trajetória de músico, pesquisador e colecionador de discos, gosta de se aventurar por vias onde nunca (ou pouco) navegou antes. O Fire!, projeto que nasceu como trio em 2009, juntando Gustafsson, o baixista Johan Berthling e o baterista Andreas Werliin, ampliou suas perspectivas nos anos seguintes para se desdobrar na Fire! Orchestra, big band que fez exitosa e impactante estreia uma década atrás, com o brilhante álbum Exit (2013, Rune Grammofon). Em meia dúzia de títulos, a Fire! Orchestra foi mostrando variadas possibilidades de um título a outro, partindo de uma sólida base free jazzística e explorando elementos sonoros de várias matizes, soul e groove, rock progressivo, erudito contemporâneo, algo folk e até uma pitada de música brasileira (uma das paixões de Gustafsson), com cada elemento ganhando mais atenção de um trabalho a outro, gerando sempre uma variedade expressiva bastante sensível. Exit, o disco de estreia da big band, não seria a obra-prima que é sem as decisivas vozes de Mariam Wallentin e Sofia Jernberg. Ritual tem no amplo naipe de sopros seu coração. Já as cordas assumem protagonismo em Arrival. E Actions é uma surpreendente releitura de uma peça do lendário compositor polonês Krzystof Penderecki. Depois disso tudo, chegamos a seu sétimo álbum, Echoes

(photo: Micke Keisendal)

Sob diferentes aspectos, Echoes parece ser o mais ambicioso capítulo da Fire! Orchestra. A começar pela formação: se o primeiro álbum da big band contou com a participação de uns 25 instrumentistas (mais três vozes), agora Gustafsson reuniu nada menos que 43 artistas sob seu comando, entre vozes, cordas, metais, madeiras, piano, eletrônicos, guitarra e percussão, ampliando as cores e perspectivas exploradas pelo projeto nesta década de história. São cerca de duas horas de música, divididas em 14 faixas gravadas no Atlantis Studio, em Estocolmo, entre os dias 23 e 25 de março de 2022, com mixagem conduzida por Jim O’Rourke no mês de novembro. Essa verdadeira orquestra apresenta um amplo leque de instrumentistas que, por razões econômicas e logísticas, deu ênfase a artistas escandinavos ou estrangeiros que vivem na região. Nessa seleção, há nomes bem-conhecidos da free music contemporânea, como a trompetista portuguesa Susana Santos Silva e as saxofonistas Mette Rasmussen e Anna Högberg; há os veteranos Dror Feiler e Sten Sandell; e também artistas mais jovens que atuam na cena local atual, como as saxofonistas Julia Strzalek e Signe Emmeluth. Tem ainda gente vinda de outros campos musicais, como Amalie Stalheim (violoncelo), versada no erudito, e David Sandström, da banda sueca de hardcore Refused. E para fechar, um convidado muito especial: Joe McPhee.

Como acontece em todos os álbuns da Fire! Orchestra, Echoes é uma obra pensada como um todo. Não se trata de faixas independentes reunidas para compor um álbum, mas uma obra dividida em partes que se retroalimentam e que devem ser conhecidas em seu conjunto para atingir o potencial expressivo máximo planejado por seus criadores. A amplitude de propostas e linguagens trazidas para Echoes por seus compositores e intérpretes, se resulta em uma obra muito coesa, oferece uma viagem repleta de transformações estéticas, nos levando por rumos inesperados de um tema a outro. As 14 faixas são divididas em 7 grandes ECHOES, peças para orquestra que são um tipo de “quadro musical”, e outras 7 faixas menores, que são “pontes e comentários” entre/sobre os vários Echoes (e onde a improvisação rola mais livremente), explica Gustafsson. Os títulos de Echoes foram inspirados na obra do poeta sueco Erik Lindegren (1910-1968)  e quem conhece sua poesia deve encontrar ainda outros rastros a seguir nessa obra de infinitas camadas. O disco começa com ECHOES: I See Your Eye, Part 1, que funciona como verdadeira introdução, com uma batida cadenciada que vai progressivamente sendo atravessada pelas linhas criadas pelas cordas, sedimentando o terreno para a entrada do sax barítono, lá pelos cinco minutos, com Gustafsson esquentando e passando a conduzir a peça até seu desfecho. Segue-se com ECHOES: Forest Without Shadows, com percussão e cordas em primeiro plano e cortante solo de trompete. E quando parecia que seguiríamos em crescendo, o tom dá uma baixada já no terceiro tema, ECHOES: To Gather It All. Once, quando a voz docemente encantatória de Mariam Wallentin centraliza as nossas atenções; ela sussurra, declama, e vai nos guiando pelos 15 minutos da inebriante peça, que ganha mais força em seus minutos finais com um solo de trombone em destaque. Para quem estiver ansioso pelos pontos mais enérgicos, eles protagonizam a fulminante ECHOES: A Lost a Farewell, com suas massas explosivas de sopros e pulso contagiante. O material apresentado aqui é criação nova, concebido quase todo por Gustafsson, Berthling e Werliin especificamente para o álbum. Mas há uma especial exceção: uma releitura muito livre de “Cala Boca Menino”, de Dorival Caymmi (partindo da versão com arranjos de João Donato). Décima faixa do disco, ECHOES: Cala Boca Menino é conduzida pela voz do sueco Tomas Öberg, que trouxe uma nova letra à peça (provavelmente seria complicado cantar ou mesmo entender a brasileiríssima letra original: Cala a boca, menino/ Que seu pai logo vem/ Ele foi pro cabula/ Foi comer jaca mole/ Da cabeça dura). O resultado é contagiante. E as surpresas ainda seguem; somos levados depois a um tipo de interlúdio de cordas (Respirations), que nos arrasta à parte final do álbum, onde encontramos ECHOES: I See Your Eye, Part 2, uma reconexão com a abertura do disco, pela qual seremos conduzidos pelo canto-fala muito particular do mestre Joe McPhee, em um perfeitamente ajustado desfecho para a obra.   

O projeto Echoes fez sua estreia nos palcos em outubro de 2022, quando toda a banda se apresentou junta no Stockholm Jazz Festival. Mas dificilmente esta versão completa será vista de novo. “Gostaríamos, mas não é realista reunir e viajar com mais de 40 músicos”, disse Gustafsson em entrevista à Citizen Jazz. “Duvido que seja possível reunir toda a banda novamente, dada a logística e o orçamento de um monstro desses.” A solução então foi fazer uma versão menor para rodar os palcos, com um grupo de cerca de 18 artistas. A turnê dessa versão da Fire! Orchestra, apresentando Echoes, se inicia em maio (começando pela Europa, já com datas em Polônia e Suécia) e pretende se estender até 2024 (quem sabe o Sesc Jazz não se anima e nos dá essa alegria?). Quando veio ao Brasil pela primeira vez, em abril de 2011, exatamente com o trio Fire!, Gustafsson disse ao FreeForm, FreeJazz que queria com o grupo apresentar uma música “que mude focos e perspectivas, algo novo que abra suas mentes”. Essa missão do Fire! (que se estende, claro, à sua versão Orchestra) segue ditando e bem acontecendo, como mostra esse monumental trabalho que agora nos chega. Echoes acabou de ser oficialmente lançado, em LP triplo e CD duplo, no que, infelizmente, marca o fim do relacionamento da Fire! Orchestra com o Rune Grammofon, que editou todos os seus álbuns até aqui. Candidato a disco do ano, Echoes com certeza estará em muitas listas de destaques de 2023.  


Echoes  *****

Fire! Orchestra

Rune Grammofon

 

 

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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)