PLAY IT AGAIN...


LANÇAMENTOs
Novidades de artistas de diferentes cantos do mundo. Experiências variadas, possibilidades múltiplas. Ouça, divulgue, compre os discos... 

 


Por Fabricio Vieira

 

The Sixth Decade – From Paris To Paris

Art Ensemble of Chicago

Rogue Art

Não podia ocorrer em melhor lugar a comemoração da entrada na sexta década de existência do Art Ensemble of Chicago. Com apenas dois membros originais do quinteto ainda vivos, o Art Ensemble of Chicago deu início em 2019 a uma turnê em celebração a seu 50º aniversário – lembrando que a história do AEC começou oficialmente em Paris, no final da década de 1960, quando seus membros trocaram Chicago pela Cidade Luz. Aquela turnê, com Roscoe Mitchell e Famoudou Don Moye comandando uma série de convidados – que inclusive passou por São Paulo, Sesc Pompeia, em outubro de 2019 –, se estendeu por meses, até o início da pandemia. E é daí que vem este novo álbum, captado em 7 de fevereiro de 2020, na Maison des Arts de Créteil, França. Mais do que um disco do AEC, talvez este registro (como o anterior We Are On The Edge) deva ser apreciado como uma celebração ao legado do AEC e à memória de seus outros três integrantes, Lester Bowie (1941-1999), Malachi Favors (1927-2004) e Joseph Jarman (1937-2019). Se a essência do que conhecemos por Art Ensemble of Chicago está viva aqui, e não apenas pela presença de Mitchell e Moye e a execução de temas antigos como Funky AECO, é fato que se trata de uma música com muitos elementos novos (e peças novas), dos variados vocais de Moor Mother, Roco Córdova e Erina Newkirk aos momentos em que a música de câmara, com ampla participação de cordas, se faz sensivelmente presente. Antigos e novos parceiros – Nicole Mitchell, Hugh Ragin, Tomeka Reid, Junius Paul... – dão coloração e vibração muito particulares à apresentação e fazem deste um registro muito fresco, que bem mostra o quanto a free music permanece vibrante e trazendo momentos artísticos maiores. Não sei se Mitchell e Moye ainda terão motivação para fazer algo mais sob a rubrica Art Ensemble of Chicago. Se não, esta última investida ficará como uma despedida à altura da importância que teve o AEC na história da música mais inventiva. Publicado em LP (edição limitada) e CD duplos.

 

Perpetual Motion

Satoko Fujii/ Otomo Yoshihide

Ayler Records

Satoko Fujii e Otomo Yoshihide nunca tinham gravado juntos. Isso é curioso considerando que ambos estão na estrada há umas três décadas, algo mais, e se tornaram dois dos mais relevantes artistas da free music vindos do Japão. Sendo da mesma geração, nascidos muito próximos – a pianista, em outubro de 1958; o guitarrista, em agosto de 1959 –, a dupla de artistas foi descoberta pelo ocidente em meados da década de 1990 e seguem em atividade ininterrupta, acompanhada de perto pelos entusiastas da música mais inventiva. Simbolicamente relevante o fato de o encontro ter sido captado, em janeiro de 2022, no lendário clube japonês Pit Inn, no boêmio bairro de Shinjuku, em Tóquio. O resultado são cerca de 47 minutos de música genialmente improvisada – piano e guitarra em possibilidades estendidas – dividida em quatro partes. 

 

 

Molten Gold

Ivo Perelman/ Anderson/ Morris/ Nicholson

FSR

Este é um muito excitante encontro inédito entre veteranos da cena nova-iorquina. O quarteto traz na linha de frente sax tenor (Ivo Perelman) e trombone (Ray Anderson), acompanhados de Joe Morris (um dos mais destacados guitarristas da free music, mas aqui tocando apenas contrabaixo) e Reggie Nicholson na bateria. A longa sessão, fresquíssima, captada em outubro de 2022 no Parkwest Studios, no Brooklyn (NYC), traz cerca de 1h30 de música improvisada com muita potência e segurança. São quatro peças, que vão de 20 a 28 minutos, nas quais as interações coletivas e os solos pontuais guiam o fluir narrativo dessas experimentadas vozes, em um diálogo preciso – Ivo Perelman vive uma fase muito estimulante em que os embates com outros sopros se tornaram uma marca de constante inventividade. Editado em CD duplo. 

 

Contour

Juanma Trujillo

Clean Feed

Este é daqueles álbuns que ilustram bem a universalidade da free music. O trio aqui presente é comandado pelo guitarrista venezuelano Juanma Trujillo. A seu lado estão Kenneth Jimenez, baixista da Costa Rica, e o veterano baterista Gerald Cleaver, uma das vozes mais pulsantes da cena nova-iorquina, nascido em Detroit. E o disco está sendo editado pelo selo português Clean Feed. Trujillo trocou a Venezuela por Los Angeles em busca de um lugar onde melhor pudesse desenvolver suas ideias musicais. Passados alguns anos, decidiu que deveria tentar a sorte em Nova York, onde desembarcou em 2014 e, desde então, tem desenvolvido seu trabalho por lá. Gravado no Douglass Recording, no Brooklyn (NYC), em junho de 2021, Contour traz sete peças, entre composições do guitarrista e temas nascidos da improvisação grupal. “I’ve listened to Kenneth and Gerald a lot and it was such a thrill to be playing and hear that remarkable quality that I associate with them, where every conceivable direction is fair game”, diz Trujillo. Uma potente estreia do trio.

 

Unwalled

François Carrier/ Schlippenbach/ Edwards/ Lambert

FSR

O saxofonista François Carrier é uma das vozes mais sólidas da free music vinda do Canadá. Carrier tem desenvolvido sua carreira desde a década de 1990 e nota-se em sua trajetória uma especial atenção por conexões com artistas de diversos países, sempre que possível registradas em disco. Este é o caso deste novo título. Em Unwalled, vemos o sax alto de Carrier em ação em quarteto, junto a seu antigo parceiro, o baterista também canadense Michel Lambert, e dois dos nomes centrais da cena europeia: o contrabaixista britânico John Edwards e o lendário pianista alemão Alexander von Schlippenbach. A música agora lançada foi captada no Studio ZentriFuge, em Berlim, no dia 27 de abril de 2022. O quarteto apresenta cerca de 75 minutos de música improvisada de primeira linha. São décadas de free impro unidas, o que resulta em um material com domínio pleno dessa arte, podendo soar enérgica, abstrata, melódica até por vezes, sempre com um ajuste fino.

 

Live Capitol Brig

Manuel Mengis/ Pfammatter/ Papaux/ Hagen

Wide Ear Records

O trompetista suíço Manuel Mengis apareceu em meados dos anos 2000 fazendo certo barulho na free music, lançando três elogiados álbuns com seu Gruppe 6 pelo selo Hat Hut. Mas na última década meio que parece que a repercussão internacional a seu trabalho desceu a segundo plano, com menos espaço sendo dedicado ao que vinha fazendo. Com este novo quarteto, Mengis mostra que continua afiado e cheio de ideias. A seu lado estão o tecladista Hasn-Peter Pfammatter, um antigo parceiro, e o percussionista Marcel Papaux. A eles se une Javier Hagen, fator que abre o álbum a novos campos. Hagen é um tenor nascido em Barcelona e radicado na Suíça que tem em seu currículo experiência ampla no campo erudito, com gravações que vão de Beethoven a Morton Feldman. Outro elemento vital para a música apresentada são os eletrônicos explorados por Mengis e Pfammatter, essenciais para o clima atmosférico que caracteriza o álbum. O registro extenso, editado em CD duplo, foi captado ao vivo em outubro de 2020, e apresenta 18 temas, que variam de 1 a 14 minutos, que devem ser ouvidos de forma sequencial, como se de um concerto ininterrupto se tratasse, para a melhor percepção do que oferece esta muito particular obra.


From Union Pool

Susan Alcorn/ Patrick Holmes/ Sawyer

Relative Pitch

Este é um encontro de sonoridades realmente inebriantes. A estreia deste trio, que já tocou junto em diferentes oportunidades nos últimos anos, é um dos mais bem-vindos registros deste começo de 2023. Susan Alcorn é a artista mais inventiva da pedal steel guitar na free music contemporânea; e a ela se juntam o clarinetista Patrick Holmes e o percussionista Ryan Sawyer. A sessão foi gravada no Union Pool, no Brooklyn (NYC), em março de 2022. Com apenas três extensos temas, o disco tem uma arquitetura bastante centrada, com Alcorn criando incontornáveis camadas climáticas, sobre as quais Holmes vai desenvolvendo linhas cortantes, mas com seu sopro cheio de traços melódicos, enquanto Sawyer entra e sai adicionado picos de maior robustez. Entre passagens que pedem atenção à escuta, temos extremos de energia, como em “Ñaar”, que despertam qualquer ouvido distraído. Um disco imperdível.

 


Eye Of I

James Brandon Lewis Trio

Anti- Records

O saxofonista James Brandon Lewis tem visto sua carreira ter uma acelerada ascensão nos últimos anos, marcadamente com a grande repercussão que tiveram seus álbuns “Molecular” (2020) e “Jesup Wagon” (2021). Para completar, ainda em 2020 Lewis ganhou como rising star no sax tenor na cultuada eleição anual dos críticos da Downbeat. Em um ritmo de constantes novas criações, Lewis apresenta agora mais um projeto, um trio ao lado de Chris Hoffman (violoncelo) e Max Jaffe (bateria). Eye Of I, a estreia do grupo lançada neste mês, mostra que o saxofonista segue em grande forma criativa, consolidando uma das obras essenciais da free music contemporânea. São onze peças, registradas em 15 de setembro de 2021 no BC Studio (NYC). A cada tema, Lewis vai destilando as múltiplas inspirações que o formaram, um caldeirão com free, pós-bop, blues, modal, soul, elementos que ora se revelam protagonistas, ora se dissolvem na sua palheta expressiva. Se ele é indiscutível sólido improvisador, também é um artista que não deixa em segundo plano os processos composicionais, culminando em uma obra com potencial para atrair ouvidos afeitos a diferentes linhagens jazzísticas. Eye Of I oferece várias entradas ao ouvinte. Há improvisação coletiva revertida em três fulminantes pequenas peças que funcionam como interlúdios (“Foreground”, “Middle Ground” e “Background”), uma conexão entre as faixas maiores que ajuda a amalgamar o todo. Em outro extremo, há uma releitura (muito particular, claro) do clássico R&B/soul dos anos 70 “Someday We’ll All Be Free”, de Donny Hathaway – aqui temos a participação especial do cornetista Kirk Knuffke; ele volta ainda em outra peça. Outro salto nos leva a outra revisitação, mas agora a um tema da lavra de Cecil Taylor, “Womb Water”. E depois de passarmos por diferentes faixas próprias, antes que o álbum se encerre Lewis dá mais um passo além e acena ao rock. Para a última e mais extensa peça do álbum, “Fear Not”, se junta a eles o The Messthetics, trio instrumental formado por Anthony Pirog (guitarra) e os membros do Fugazi Joe Lally (baixo) e Brendan Canty (bateria), em um encontro que arremata a proposta de sonoridade ampla e aberta, mas perfeitamente conduzida e coesa, do álbum. Com este novo trabalho, Lewis mostra que sua melhor fase segue sendo construída e que muito ainda promete, surpreendendo e encantando aqueles que descobriram (e os que estão por descobrir) sua música. Eye Of I, que tem liner notes assinadas por Thurston Moore, deve levar uma vez mais James Brandon Lewis às listas de melhores do ano. Editado em LP, CD e digital.

 

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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)