No Carro de Fogo de SEI MIGUEL



CRÍTICAs  O trompetista Sei Miguel, uma das vozes mais excitantes da cena portuguesa, apresenta um novo trabalho de seu Carro de Fogo...  


 

Por Fabricio Vieira

 

Lá para 2005, um crítico estrangeiro chamou Sei Miguel de o segredo mais bem guardado da música portuguesa. À altura, o trompetista já caminhava para quase duas décadas de carreira, com um punhado de discos editados. Mas provavelmente era verdade que Sei Miguel, fora da Portugal que viu sua música se desenvolver, fosse um nome que ecoasse pouco. E talvez ainda hoje ele sofra de uma menor repercussão internacional do que a sua criativa música merecia. O trompetista nasceu em Paris em 1961. Chegou a morar no Brasil na infância, mas seria em outro país de língua portuguesa que faria sua arte acontecer. Com seus vinte e poucos anos, se estabeleceria em Lisboa, onde foi de fato se tornar músico profissional. Data do ano de 1988 seu álbum de estreia, “Breaker”, que já sinaliza sua muito particular visão do jazz mais livre. Infelizmente a música que fez até meados dos anos 2000 foi publicada por pequenos selos locais e, em grande parte, jamais reeditada (inclusive com discos que nunca subiram a plataformas de streaming), dificultando o acesso à sua criação como um todo – antes e agora. Só em 2005 começou a editar pelo Creative Sources e, em 2010, pela Clean Feed, o que ajudou a dar visibilidade maior à música que tem feito no século XXI.

(Foto: Nuno Martins)
Sempre empunhando um pocket trumpet, o artista tem produzido uma música muito particular, envolta em um processo criacional próprio que atingiu no projeto O Carro de Fogo de Sei Miguel sua síntese e maturidade plena. O projeto surgiu lá para 2011 com a ideia de ser um grupo fixo, uma banda mesmo – na apresentação do novo disco, fala-se em uma small orchestra of all fusions. O Carro de Fogo de Sei Miguel fez sua estreia discográfica, em álbum homônimo, apenas em 2019, pela Clean Feed. E agora apresenta este novo registro. Com o curioso título Um – Um – Um, E Não Há Forma de Morrer, o novo disco do Carro de Fogo traz três extensas peças captadas ao vivo. Apesar de terem sido registradas em eventos e tempos distintos, as faixas são bastante coesas e complementares, mostrando que o projeto tem um norte muito preciso em seu desenvolvimento. O trabalho é executado por um octeto formado por antigos colaboradores seus, a ver: a trombonista Fala Mariam (uma das primeiras mulheres a tocar trombone na free music, isso desde os anos 80), o saxofonista Nuno Torres, Bruno Silva (guitarra), Pedro Lourenço (baixo elétrico), André Gonçalves (órgão), Luis Desirat e Raphael Soares (percussão) – em um tema há a participação de José Lencastre (sax alto). As peças, “Âmago”, “Pequeno Veículo” e “Straight Face”, vêm de concertos realizados e captados em Lisboa, em 2017, 2019 e 2022. Quem ouviu a gravação anterior da banda sabe por onde esta música irá caminhar, com suas interações grupais criando climas, atmosferas e sensações muito particulares, onde tanto o silêncio quanto improvisações pontualmente mais ariscas desempenham seus papéis. O álbum abre com o trompete solitário, em linhas vagarosas que vão como que convocando os outros instrumentos e avisando os ouvintes que a viagem está se iniciando. Altamente climática, com órgão e guitarra em toques hipnóticos, “Âmago” nos remete a algo dos tempos iniciais do fusion, aquele sabor encantatório aberto pelos primeiros trabalhos de Miles e sua trupe, mas em uma chave contemporânea, com toda a bagagem do jazz livre nas costas. Em “Pequeno Veículo”, vemos o centro se deslocar para a interação entre trompete, trombone e baixo, funcionando como uma espécie de intermezzo entre as duas mais extensas peças. Já “Straight Face” se desenvolve em um esquema de crescente tensão, com os sopros e a guitarra indo ocupando os espaços com vagar, até alcançarem lá pelo meio da peça pontos de maior ebulição, que manterão a voltagem elevada até seu desfecho. 

O Carro de Fogo de Sei Miguel é um dos mais interessantes projetos contemporâneos e merecia estar circulando pelo circuito internacional da free music – me parece que a banda tem basicamente se apresentado em Portugal nesta sua pouco mais de uma década de existência. Vale notar que este não é um exemplar típico do mundo da free improvisation. Miguel trabalha com elementos composicionais, com estruturas variáveis que fazem parte da formatação de suas criações. A improvisação está lá, claro, sempre rondando o palco, mas como mais um elemento. Em conversa com o jornal Público, em 2010, ele falou sobre seu labor artístico: “Eu próprio não me considero um compositor: estudo formas, estudo a forma. E dirijo a música em cada músico, em módulos de trabalho a que chamo peças. Existem as peças mais escritas e sublimadas, com uma lógica interna particular, leem-se e tocam-se como poemas sinfónicos contemporâneos. E existem as peças genéricas, são sistemas, possuem um rigor informal e, portanto, enfatizam a personalidade de quem as toca”. Ouvir a obra de Sei Miguel é conhecer uma parte de relevo do que de mais criativo surgiu na free music de Portugal nas últimas décadas.

 


Um – Um – Um, E Não Há Forma de Morrer

O Carro de Fogo de Sei Miguel

Shhpuma

 

 

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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)