LIVROs O saxofonista argentino
Leandro Gato Barbieri ganha
finalmente uma biografia à altura de sua intensa trajetória...
Por Fabricio Vieira
Quando se fala em Gato Barbieri diferentes referências podem
vir à mente das pessoas, a depender de sob qual ângulo conheceu a música dele.
Poucos tiveram uma trajetória como a do saxofonista argentino, que começa quando
se torna um destacado nome da cena jazzística portenha (até 1962, época em que
circulava mais pelas águas do hard bop), se transmuta em importante personagem
do free jazz internacional (a partir de 1965, quando começa a tocar na banda de
Don Cherry), se torna um inovador criador ao unir o free jazz a sonoridades
latino-americanas (entre 1969 e 1975) e deságua nas duvidosas paragens do
latin-smooth, a partir de 1976. A história de Leandro Gato
Barbieri (1932-2016) sempre mereceu ser conhecida mais de perto, o que somente agora é
possível com a publicação da biografia Gato Barbieri: Un sonido para el tercer
mundo. Escrita pelo historiador argentino Sergio Pujol (autor de uma
importante história do jazz em seu país, “Jazz Al Sur”), esta biografia editada
no fim de 2022, a primeira obra de fôlego sobre o saxofonista, mostra Barbieri
em todas as suas genialidades e contradições, do free jazz ao mainstream, dos
dias de estrela ao quase ostracismo.
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(Gato Barbieri, Don Cherry e Karl Berger, 1966) |
A obra acompanha a história do músico nascido em Rosario de
sua infância à morte, sendo dividida em oito capítulos. As primeiras cerca de 100
páginas são dedicadas à primeira fase de sua carreira de músico, desenvolvida
exclusivamente na Argentina e pouco conhecida por quem não é do país. Vale
notar que Barbieri deixaria seu país apenas em 1962, quando já estava com 30
anos de idade. Apesar de não ter gravado um disco seu até aquele momento, era
já um dos instrumentistas mais experientes e requisitados da cena jazzística de
Buenos Aires. O livro nos mostra que o garoto gago que começou à sombra de seu
irmão mais velho, o trompetista Rubén Barbieri, provavelmente nunca teria adentrado
o rumo que tomou se não tivesse conhecido Michelle, que entra em sua vida em
1960 e se torna a responsável por convencê-lo a deixar a Argentina (e por todas
as grandes viradas de sua carreira). Sem Michelle, com quem viveu até a morte
dela, em 1995, é bem possível que Barbieri terminasse como seu irmão, um músico
de talento, mas conhecido apenas na cena local.
O destino inicial quando decide tentar a sorte no exterior,
algo que mudaria completamente sua história, foi Roma, por escolha e ideia de
Michelle, claro. Vinda de família italiana, Michelle, que já tinha vivido boa
parte da vida no exterior, circulava bem pela cena cinematográfica da Itália. Sua
amizade com Bernardo Bertolucci seria decisiva para Barbieri – foi por
intermédio dela que ele foi convidado a compor a trilha sonora de “O Último
Tango em Paris” (1972), que se tornaria um fenômeno cultural global e
apresentaria seu nome ao mundo, indo muito além da cena jazzística pela qual
vinha circulando. Mas antes disso veio sua relação com o free jazz. Tocando em Roma
em grupos de diferentes músicos locais, com propostas variadas, acabou
conhecendo Don Cherry, algo que seria decisivo em sua jornada. No começo de
1965, achando que a cena italiana não oferecia mais nada de estimulante (nem
artística nem financeiramente), começou a pensar seriamente em retornar à
Argentina. Foi aí que Don Cherry, que estava passando uma temporada na Europa e
querendo montar um novo grupo, cruzou seu caminho. Não tardaria para o
saxofonista estar ao lado de um dos pais do free jazz, estreando em seu grupo em
maio de 1965, no Festival de Jazz de Bolonha. Barbieri iniciava assim, como que
em um desses acasos da vida, sua história no universo do free jazz, que se
estenderia pela década seguinte e concentraria o que ele fez de mais
relevante em sua carreira. A associação com Cherry o leva a se mudar de novo,
desta vez para Nova York, onde será um dos estrangeiros que ajudaram a fomentar
a cena free jazzística local. Ainda em 1965, em dezembro, Barbieri participaria
da gravação de “Complete Communion”, uma das obras-primas de Cherry e do free
jazz. Vai então se aproximando de outros músicos de relevo – Carla Bley seria
uma das principais amizades que faria – e aparecendo em clássicos como
“Liberation Music Orchestra” (de Charlie Haden).
Dono de um sopro muito particular, de fraseado econômico,
mas de profunda intensidade, explorando os altíssimos como poucos, Gato Barbieri
passaria também, enfim, a desenvolver sua própria obra. É muito simbólico que
seu primeiro álbum como líder, “In Search of the Mistery”, captado em março de
1967 em um estúdio no Brooklyn, seja um registro de free jazz (em quarteto que
contou com o lendário baixista Sirone) editado pelo icônico selo ESP-Disk. Este
é também o primeiro disco de free jazz gravado por um artista latino-americano.
Na sequência, vem uma nova e decisiva virada. Era setembro de 1968 quando
Barbieri reencontra um antigo amigo, Glauber Rocha, que estava na cidade para
um festival dedicado ao cinema brasileiro. “
Rocha se instaló en Nueva York con
su amigo, el percusionista Naná Vasconcelos. Preferieron pasar aquellas semanas
en compañía sudamericana y aceptaron la invitación de Gato y Michelle a
alojarse en su departamento”, conta o autor. Segundo declaração do próprio
Barbieri reproduzida no livro, “
improvisábamos con Naná durante horas, mientras
Glauber preparaba feixoada en la cocina. Y fu él quien me dijo que yo también
era de uma cultura pobre y marginada y que el jazz podía ser el vehículo para
expresarlo”. Assim, de uma conversa com Glauber, nasceria a etapa mais pessoal
de Gato Barbieri, quando ele une seu free jazz a sons latino-americanos. Essa jornada, que vai do álbum “The Third World” (1969) até “Chapter Four: Alive In
New York” (1975), forma um capítulo essencial na trajetória do saxofonista,
sendo seu último grande movimento criativo. Nesse período, volta a tocar e
gravar com músicos argentinos e de outras partes da América Latina – o que
inclui também brasileiros, como Naná Vasconcelos, Airto Moreira, Portinho, Novelli,
Helio Delmiro...
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(foto: Laura Tenenbaun) |
Mas em 1976, vem sua
derrocada – sua derrocada artística, de relevância criativa; por outro lado,
foi a época em que se tornou mais globalmente conhecido e que, de fato, ganhou
dinheiro. É quando Barbieri troca a Impulse pelo selo A&M Records, uma
máquina de fazer música pronta para consumo imediato e massivo. Sob os cuidados
da produção de Herb Alpert, se rende ao mundo descartável do latin-pop
instrumental. O primeiro registro desta nova etapa se chama “Caliente!” e marca
o fim da relação de Barbieri com o jazz mais avançado e criativo. Aos 44 anos,
Barbieri joga a toalha e se rende a um som permeado por clichês latinos e vibe smooth,
em uma fórmula que o acompanharia dali para frente. Para quem tinha alguma
dúvida, o livro deixa claro que foi uma escolha consciente, com o único
propósito de se tornar famoso (o então grande sucesso do mexicano Santana era
uma inspiração) e usufruir das facilidades que tal fama traria. Até o final dos
anos 80, Gato Barbieri viveu de fato o que esperava com sua virada sonora
radical; ganhou dinheiro e teve uma vida de luxo entre Nova York e Europa, com
hotéis 5 estrelas, roupas de grife, Rolls Royce e cocaína. Mas, uma meia dúzia
de discos depois, seria descartado pela indústria de sucessos rápidos à qual
vendeu sua arte. Barbieri jamais se recuperaria, passando mais de uma década sem
entrar em um estúdio, excursionando cada vez menos, ficando progressivamente isolado
e com, mais uma vez, dificuldades financeiras. Quando Michelle morreu, em 1995,
ele não tinha dinheiro nem para realizar o último desejo dela, que era ser cremada
e ter suas cinzas espalhadas na Itália (o que só ocorreu devido ao patrocínio
de uma antiga conhecida afortunada). Nos últimos anos de vida, com a saúde já
bem debilitada, tocava burocraticamente no Blue Note, em aparições semanais,
como um personagem do passado que as pessoas vão ver mais como um símbolo vivo
de outras eras.
O livro de Sergio Pujol, se de um modo geral é bem simpático
ao personagem que retrata, também não deixa de destacar seus momentos sombrios,
suas crises depressivas, o vício em drogas, a difícil situação financeira em
diferentes épocas, fazendo um retrato amplo deste que foi o mais famoso saxofonista
latino-americano. Utilizando muito material de arquivo e dezenas de
entrevistas, dentre antigos parceiros profissionais, amigos e familiares (ele
chegou a entrevistar também o próprio saxofonista, mas antes de trabalhar no
livro, em 1996, para o jornal Página 12), Pujol constrói uma obra indispensável
para se conhecer não apenas a trajetória de Gato Barbieri, mas para melhor
compreender as cenas musicais das quais fez parte. Gato Barbieri: Un sonido
para el tercer mundo foi editado apenas na Argentina, pela Planeta; espero que
não tarde a receber uma versão em inglês, pois não devem faltar interessados
nessa obra.
GATO BARBIERI: Un sonido para el tercer mundo
Autor: Sergio Pujol
Editora: Planeta
384 pgs. (espanhol)
*para quem quiser comprar o livro, uma forma sem erro é a
loja Zivals, de Buenos Aires, que vende pelo seu site e envia para o Brasil em
poucos dias
*ouça nossa playlist, uma seleção especial com o que de mais intenso Gato Barbieri produziu
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em
Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por
alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou
também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos
anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de
liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo
Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live
in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)