Satoko Fujii: 100



CRÍTICAs A fantástica pianista, compositora e improvisadora japonesa Satoko Fujii encerra o ano com o lançamento de mais um brilhante álbum, seu 100º disco...



Por Fabricio Vieira

A pianista japonesa Satoko Fujii se tornou um dos nomes obrigatórios da free music contemporânea e agora chega a uma simbolicamente importante marca: seu 100º álbum. A estreia em disco de Fujii aconteceu em 1996, já em grande estilo: um dueto com o lendário Paul Bley, “Something About Water”. A partir daí, projetos por múltiplas vias (de fundamental exploração solista ao comando de orquestras), ao lado de muitos dos principais nomes da música criativa, foram fazendo do universo de Fujii um dos campos artísticos mais desafiadores e estimulantes do século XXI. E chegamos a Hyaku (palavra japonesa para 100). Para comemorar este seu 100º registro, Satoko Fujii, de 64 anos, preparou uma especial nova obra, Hyaku: One Hundred Dreams, que sai pelo seu selo Libra Records e chega ao público, em CD e digital, nesses últimos dias de 2022 (ainda a tempo de figurar nas listas de melhores do ano).

(photo: Bryan Murray)
Satoko Fujii não é das artistas que conheço há mais tempo. Acompanho a trajetória dela há cerca de uma década, mas desde que cheguei à sua música sabia que havia ali algo único, que deveria ser seguido com atenção, com interesse renovado a cada novo registro (e que registros! Uma nova aventura de escuta de um capítulo a outro...). "Eu gosto de conduzir muitas coisas diferentes ao mesmo tempo, não quero me limitar. Acredito que podemos fazer qualquer coisa na música", disse ela, em entrevista ao FreeForm, FreeJazz em 2020. Fujii esteve na América do Sul uma única vez, em novembro de 2015, com o quarteto Tobira, e infelizmente fez apenas dois discretos concertos no Brasil, no Sesc Ribeirão Preto (interior de SP) e no Instituto Ling (Porto Alegre). Nem precisa dizer que passou da hora dela voltar a nossos palcos... Durante a pandemia, Fujii ficou bem isolada em sua casa em Kobe, no Japão. Nesse período de quase dois anos, se concentrou em trabalhos solistas, outros ao lado de seu companheiro, o trompetista Natsuki Tamura, e realizou também alguns projetos a distância. Somente neste ano Fujii voltou aos palcos, tendo já circulado pelo exterior também. E é daí que vem este novo registro. Para Hyaku: One Hundred Dreams, a pianista reuniu parceiros novos e antigos dentre alguns dos mais expressivos nomes em atividade na free music: Ingrid Laubrock (sax tenor); Wadada Leo Smith (trompete); Sara Schoenbeck (fagote); Ikue Mori (eletrônicos); Natsuki Tamura (trompete); Brandon Lopez (baixo); e os bateristas Chris Corsano e Tom Rainey. Ao piano, Fujii comanda este estelar octeto na execução desta sua nova composição dividida em cinco partes.

One Hundred Dreams é uma obra que exibe bem a amplitude das ideias de Fujii. Com quase uma hora de duração, a peça foi concebida para ser ouvida em sua totalidade, como uma suíte em cinco partes, com a sequência das faixas indo construindo o todo da composição. Elementos sonoros variados vão surgindo para estruturar a peça em sua complexidade expressiva e ousadia experimental; há jazz, há música de câmara, algo avant-rock, ruídos e silêncios, com a free improvisation coletiva sendo o amálgama que une tudo em um todo coeso e bem elaborado. Apesar de ser uma obra coletiva, certo protagonismo instrumental oscila de uma parte a outra, com Fujii se preocupando em dar espaço para todos mostrarem bem sua voz: na faixa 1, destacam-se o piano e os eletrônicos, com o fagote fazendo uma aparição marcante, em soturno solo; os trompetes assumem o comando na faixa 2, com Smith em suas clássicas linhas que cortam o espaço, antes de o baixo deixar seu solo no ar; já o sax e as baterias fazem a quente abertura da faixa 3, a mais enérgica e free jazzística do conjunto; a parte 4 traz jazzística forma em seu início, surpreendentemente cortada por desconcertantes linhas vindas dos eletrônicos e de técnicas estendidas ao piano (Fujii leva seu instrumento a campos que só ela conhece), em um jogo de texturas e contrastes único; a parte final traz o piano ao centro novamente, demarcando o espaço que será tomado por todo o noneto, rumo aos intensos momentos que fecham a obra. O álbum mostra realmente a música atual da pianista, tendo sido registrado há pouco tempo, no dia 20 de setembro de 2022, no DiMenna Center for Classical Music, em Nova York. Hyaku: One Hundred Dreams é mais um capítulo imperdível na genial trajetória de Satoko Fujii.

 

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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)