CRÍTICAs O saxofonista português Rodrigo Amado lança dois novos imperdíveis álbuns, com o trio The Attic e um inédito registro solista...
Por Fabricio Vieira
Rodrigo Amado tinha uma preciosa carta na manga para encerrar 2022: seu primeiro disco solo. Quem acompanha seu trabalho nas últimas duas décadas aguardava com ansiedade esse momento. Amado tem comandado alguns dos mais instigantes projetos contemporâneos, a destacar o Motion Trio e o quarteto This Is Our Language, e faltava essa oportunidade de ouvi-lo sozinho. O formato solista para saxofonistas da free music é praticamente obrigatório: difícil alguém escapar disso. A eclosão da pandemia em meados de 2020 levou muitos instrumentistas a, se não tinham isso em foco naquele momento, explorar mais sua voz solitária. E alguns levaram isso ao público depois, quando puderam voltar a palcos e estúdios. Este é o caso de Amado, que acaba de lançar Refraction Solo (Trost Records). Em meio às variadas novas rotinas que o lockdown trouxe a ele, surgiu o momento de reencontrar, sozinho, a arte de antigos ídolos. “I spent hours and hours in the studio woodshedding. When my usual practice routine started to wear thin, I decided, among other strategies, to investigate classic jazz tunes that were part of my roots as a musician. From those tunes – by Coleman, Cherry, Rivers, Monk and Rollins – Rollins' compositions were the ones that resonated strongest, partly because he was a main influence on my early learning process. Only now I can I understand this better. I think it has to do with the sound”, conta ele na apresentação do novo trabalho. O primeiro concerto que Amado deu após o relaxamento do lockdown foi exatamente em formato solista. Isso aconteceu no dia 4 de julho de 2021, na Igreja do Espírito Santo, em Caldas da Rainha, acontecimento que agora chega aos ouvintes que não estavam lá naquele momento único. Amado é um improvisador de infinita inventividade, sempre nos ofertando música com grande frescor. E nessa gravação nos mostra algo mais. Como sabemos, Amado não é um saxofonista que costuma trabalhar com releituras ou revisitações a músicas de outros artistas. Por isso, surpreende de cara quando colocamos Refraction Solo para tocar. A primeira das três peças que formam o álbum chama Sweet Freedom, nome que vai trazer diferentes ecos ao ouvinte atento. “The name of the first tune is Sweet Freedom, which nods both to Sonny Rollins’ Freedom Suite and to Joe McPhee, through Sweet Freedom, Now What. In a way, Joe's solo music was also a big influence on this recording, for his ability to totally abandon himself to the music and also for his way of balancing the most primal and pure roots with an authentic spiritual vibe. Rollins was, of course, the primary influence for the recording”, explica Amado. E por aí nos leva Sweet Freedom: em seus quase 21 minutos, Amado nos conduz por um labirinto expressivo de múltiplas vias, como que a percorrer e investigar sua longa trajetória, com ecos explícitos de influências/homenagens – Freedom Suite é citada logo no começo, fazendo nossos ouvidos responderem de imediato, especialmente se chegarmos desavisados à escuta (imagino como deve ter sido para quem estava lá presente no dia!; mais surpreendente ainda é quanto lá pela sequência final da peça ecoam as bailantes notas de St. Thomas, antes de mergulharmos em fulminante sequência solista) – em meio a uma inventividade improvisacional sem amarras, de momentos contemplativos a picos explosivos, desconcertando e encantando o ouvinte. Sweet Freedom não se revela apenas como o núcleo do álbum, indo além, funcionando como uma síntese da linguagem de Amado, uma miniatura de seu universo expressivo: ele está todo ali. Inevitável que após ouvir esta faixa não fiquemos com a impressão de que as outras duas, bem mais breves inclusive, “A Singular Blow” e “Shadow Waltz”, acabem por representar certo papel de encore, de luxuosos adendos mais com a missão de completar algumas lacunas e concluir o que tinha que ser dito. De qualquer forma, ouvir as três peças na sequência é necessário para que a experiência que nos oferece Amado seja de fato completa. O fato de a gravação/apresentação ter sido feita em um espaço tão singular – a pequena Igreja do Espírito Santo, que foi construída em 1550 e reformada no século XVIII – apenas engrandece este fundamental álbum; a acústica da igreja leva esta música a seu esplendor, conseguimos ouvir cada detalhe, a respiração, os dedos nas chaves, quase sentimos o músico na nossa frente. Um dos grandes momentos da rica discografia de Rodrigo Amado.
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)