Rodrigo Amado: solo e trio



CRÍTICAs O saxofonista português Rodrigo Amado lança dois novos imperdíveis álbuns, com o trio The Attic e um inédito registro solista...


 

Por Fabricio Vieira

 

O mais celebrado saxofonista de Portugal – e um dos grandes da free music contemporânea –, Rodrigo Amado encerra o ano com dois empolgantes novos registros. O primeiro deles é o novo álbum do trio The Attic, Love Ghosts (NoBusiness Records). O trio fez sua explosiva estreia em 2017 (entre os nossos favoritos daquele ano) e agora chega a seu terceiro título. Ao lado de Amado (sax tenor) estão o também português Gonçalo Almeida (baixo acústico) e o baterista holandês Onno GovaertLove Ghosts foi registrado em 12 de janeiro de 2020 no Namouche Studios, Lisboa, pouco antes de a pandemia eclodir. Este álbum já começa com um ponto extra de interesse para os ouvintes que têm acompanhado o trabalho do The Attic: é um registro de estúdio, sendo que os títulos anteriores eram ao vivo. Trabalhando juntos há alguns anos, os três instrumentistas do The Attic alcançaram nesta altura um equilíbrio de grupo mesmo, soando como uma banda propriamente, não apenas um encontro entre improvisadores. E é de improvisação com sintonia ajustadíssima que se trata aqui. Love Ghosts apresenta quatro novas peças, curiosamente de tamanhos relativamente próximos, com 12, 13, 16 e quase 17 minutos. “New Tone” inicia o trabalho com bateria e baixo em tom introdutório, preparando nossos ouvidos no primeiro minuto para logo o sax chegar brincando com um tema mínimo, que vai sendo cercado por diferentes lados, enquanto Almeida dedilha com vagar e profundidade as cordas, em uma base robusta sobre a qual o sopro vai se adensando. A tensão crescente alcança lá pelo meio da peça já elevada pressão, com o solo de sax fulminando os espaços antes de o tom baixar rumo à conclusão da peça. Este primeiro tema traz todos elementos que fazem do The Attic um grupo sempre excitante. Já a faixa-título oferece outra roupagem, com linhas mais reflexivas e tom mais exploratório, especialmente em sua primeira parte, menos free jazzisticamente incisiva que a peça de abertura, exibindo mais potência em sua fatura final. O baixo vai assumir a dianteira em “Outer Fields”, conduzindo sozinho os dois primeiros minutos, como que pedindo aos ouvintes “agora ouçam com atenção”; a entrada de bateria e sax se faz de forma contida e progressiva, com uma melodia algo soturna, melancólica até, soprada por Amado nos levando a um outro modo de escuta. Com Love Ghosts, o The Attic reafirma que é um dos grupos imperdíveis da atualidade.


Rodrigo Amado tinha uma preciosa carta na manga para encerrar 2022: seu primeiro disco solo. Quem acompanha seu trabalho nas últimas duas décadas aguardava com ansiedade esse momento. Amado tem comandado alguns dos mais instigantes projetos contemporâneos, a destacar o Motion Trio e o quarteto This Is Our Language, e faltava essa oportunidade de ouvi-lo sozinho. O formato solista para saxofonistas da free music é praticamente obrigatório: difícil alguém escapar disso. A eclosão da pandemia em meados de 2020 levou muitos instrumentistas a, se não tinham isso em foco naquele momento, explorar mais sua voz solitária. E alguns levaram isso ao público depois, quando puderam voltar a palcos e estúdios. Este é o caso de Amado, que acaba de lançar Refraction Solo (Trost Records). Em meio às variadas novas rotinas que o lockdown trouxe a ele, surgiu o momento de reencontrar, sozinho, a arte de antigos ídolos. “I spent hours and hours in the studio woodshedding. When my usual practice routine started to wear thin, I decided, among other strategies, to investigate classic jazz tunes that were part of my roots as a musician. From those tunes – by Coleman, Cherry, Rivers, Monk and Rollins – Rollins' compositions were the ones that resonated strongest, partly because he was a main influence on my early learning process. Only now I can I understand this better. I think it has to do with the sound”, conta ele na apresentação do novo trabalho. O primeiro concerto que Amado deu após o relaxamento do lockdown foi exatamente em formato solista. Isso aconteceu no dia 4 de julho de 2021, na Igreja do Espírito Santo, em Caldas da Rainha, acontecimento que agora chega aos ouvintes que não estavam lá naquele momento único. Amado é um improvisador de infinita inventividade, sempre nos ofertando música com grande frescor. E nessa gravação nos mostra algo mais. 

Como sabemos, Amado não é um saxofonista que costuma trabalhar com releituras ou revisitações a músicas de outros artistas. Por isso, surpreende de cara quando colocamos Refraction Solo para tocar. A primeira das três peças que formam o álbum chama Sweet Freedom, nome que vai trazer diferentes ecos ao ouvinte atento. “The name of the first tune is Sweet Freedom, which nods both to Sonny Rollins’ Freedom Suite and to Joe McPhee, through Sweet Freedom, Now What. In a way, Joe's solo music was also a big influence on this recording, for his ability to totally abandon himself to the music and also for his way of balancing the most primal and pure roots with an authentic spiritual vibe. Rollins was, of course, the primary influence for the recording”, explica Amado. E por aí nos leva Sweet Freedom: em seus quase 21 minutos, Amado nos conduz por um labirinto expressivo de múltiplas vias, como que a percorrer e investigar sua longa trajetória, com ecos explícitos de influências/homenagens – Freedom Suite é citada logo no começo, fazendo nossos ouvidos responderem de imediato, especialmente se chegarmos desavisados à escuta (imagino como deve ter sido para quem estava lá presente no dia!; mais surpreendente ainda é quanto lá pela sequência final da peça ecoam as bailantes notas de St. Thomas, antes de mergulharmos em fulminante sequência solista) – em meio a uma inventividade improvisacional sem amarras, de momentos contemplativos a picos explosivos, desconcertando e encantando o ouvinte. Sweet Freedom não se revela apenas como o núcleo do álbum, indo além, funcionando como uma síntese da linguagem de Amado, uma miniatura de seu universo expressivo: ele está todo ali. Inevitável que após ouvir esta faixa não fiquemos com a impressão de que as outras duas, bem mais breves inclusive, “A Singular Blow” e “Shadow Waltz”, acabem por representar certo papel de encore, de luxuosos adendos mais com a missão de completar algumas lacunas e concluir o que tinha que ser dito. De qualquer forma, ouvir as três peças na sequência é necessário para que a experiência que nos oferece Amado seja de fato completa. O fato de a gravação/apresentação ter sido feita em um espaço tão singular – a pequena Igreja do Espírito Santo, que foi construída em 1550 e reformada no século XVIII – apenas engrandece este fundamental álbum; a acústica da igreja leva esta música a seu esplendor, conseguimos ouvir cada detalhe, a respiração, os dedos nas chaves, quase sentimos o músico na nossa frente. Um dos grandes momentos da rica discografia de Rodrigo Amado.


---------

*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)