Sax Duos: 12 x Perelman


CRÍTICAs
O saxofonista Ivo Perelman lança novo extenso projeto, desta vez com 12 duos ao lado de outros saxofonistas...



Por Fabricio Vieira


Ivo Perelman tem explorado ao limite alguns formatos que se tornaram nesses tempos uma certa obsessão para ele. Primeiro os duos com o pianista Matthew Shipp, que se multiplicaram desde 2012, quando gravaram a sessão que virou “The Art of the Duet” (Leo Records). Esta parceria, que já rendeu 14 títulos em duo, teve mais um capítulo recente, “Fruition” (ESP-Disk), editado em setembro passado. O mergulho no formato “dueto de sax-piano” foi ampliado em 2021, quando Perelman convidou nove diferentes pianistas para gravar em duo, resultando no box “Brass and Ivory Tales” (FSR). A mais recente exploração obsessiva de Perelman acaba de ser editada: trata-se do encontro que teve com 12 diferentes saxofonistas, que pode ser apreciado no álbum Reed Rapture In Brooklyn (Mahakala Music). O projeto representa redobrada curiosidade para quem acompanha a trajetória de Perelman. Ele passou anos e anos sem colocar outro sopro para dialogar com seu sax tenor. Uma rara exceção foi a participação de Louis Sclavis, que tocou clarinete-baixo em “The Ventriloquist” (2002). Outros encontros do tipo só viriam em tempos recentes, quando ele topou o desafio e gravou com o trompetista Nate Wooley (“Octagon”, “Philosopher’s Stone”, 2017) e os clarinetistas Jason Stein (“Spiritual Prayers”) e Rudi Mahall (“Kindred Spirits”, 2018). Essas experiências com certeza abriram os instintos artísticos de Perelman, o levando ao próximo passo, que era dialogar com outros saxofonistas. E Perelman quis logo fazer um trabalho hercúleo, chamando 12 nomes de diferentes gerações e perfis para duos, gravando um álbum com cada um deles. A maratona aconteceu entre julho e dezembro de 2021, com um encontro ocorrendo a cada cerca de duas semanas, sempre no Park West Studios (Brooklyn, NYC) – exceção da reunião com Roscoe Mitchell, que aconteceu em Madison, Wisconsin.

O elenco de Reed Rapture In Brooklyn traz um belo e amplo panorama de saxofonistas dentre os mais inventivos em atividade. Perelman buscou parceiros que exibissem muitas facetas do jazz criativo, de diferentes gerações e peso sonoro-histórico. Começando por duas verdadeiras lendas, Roscoe Mitchell e Joe McPhee; na sequência, outros destacados veteranos: David Murray, Vinny Golia e David Liebman; daí vem os representantes mais próximos da geração de Perelman: Ken Vandermark, Lotte Anker, Tim Berne, Joe Lovano e James Carter; e termina com os algo mais jovens, que tem feito suas histórias a partir dos anos 2000: Colin Stetson e Jon Irabagon. Claro que vários outros saxofonistas poderiam ter gerado interessantes diálogos, mas destacamos apenas um que realmente sentimos por ter ficado de fora: Evan Parker. Isso pela ligação antiga que Perelman tem com Parker, com quem inclusive teve aulas lá nos anos 80, quando ainda buscava seu rumo sonoro. Teria sido incrível ver esse encontro, mas imagino que o fato de Parker, hoje com 78 anos, estar circulando menos, tocando basicamente na Europa nos últimos anos, tenha sido um fator a pesar contra a realização de tal encontro, enfim... Uma das ideias por trás do projeto era a variedade sonora. Não apenas pelas características diversas dos convidados, mas pela ampla variação instrumental trazida: se todos os convidados são saxofonistas, grande parte inclusive tenorista como Perelman, a maioria buscou ofertar versões menos usuais de seu sopro, sendo que alguns deles até deixaram o sax de lado, optando pelo clarinete. A regra era explorar a improvisação livre, da forma que ela se apresentasse: assim, nos deparamos com uma ampla variedade de resultados, com parcerias mais centradas, outras mais expandidas, indo dos extremos de uma peça de 57 segundos (com Lovano) a uma faixa de 39 minutos (com Mitchell). Seguindo a sequência que aparece na capa do disco, temos, sempre com Ivo Perelman ao sax tenor: 

Lotte Anker (alto e soprano): a saxofonista dinamarquesa é a única mulher e artista vinda da Europa a participar do projeto. Anker é da mesma geração de Perelman e começaram inclusive a gravar na mesma época. Mas ainda não tinham se cruzado em palcos ou estúdios. A multiplicidade inventiva de Anker, tanto ao soprano quanto ao alto, ajuda a criar climas e soluções bastante diversos de um tema a outro, podendo ir do soturno (faixa 3), a passagens mais melódicas (faixa 4) a outras explosivas (faixa 5), sempre com o tenor respondendo de pronto e criando texturas com envolvente contraste. 

Joe Lovano (C melody sax, F soprano sax): este é um encontro especialmente interessante por diferentes motivos. Lovano é o nome mais ligado ao mainstream jazzístico dentre os presentes aqui. Apesar de vez ou outra tocar com gente do free jazz, esta não é sua casa. Vê-lo em um contexto free impro chama atenção. É interessante também ver Lovano deixando o tenor, seu principal instrumento, de lado e tocando apenas saxofones menos usuais e da esfera mais aguda da família, o C melody e o F soprano, que criam um contraste timbrístico excitante e inovador. Apesar das credenciais de Lovano, eles conseguem se manter relativamente distantes do universo propriamente jazzístico. 

David Murray (clarinete-baixo): poucos músicos circularam por amplas vias do jazz contemporâneo como David Murray. Impossível pensar no jazz mais inventivo dos anos 80 e 90 e não citá-lo. Murray veio para a sessão apenas com o clarinete-baixo, seu segundo instrumento. E trouxe todo seu arsenal expressivo, o que permite que nos deparemos até com momentos algo bluesy ou jazzy no ar. Mesmo quando os dois vão um para cada lado, adentrando uma particular voz improvisacional cada, sentimos uma simbiose de ideias que se unem no ar em uma sintonia expressiva irretocável, gerando um dos registros mais saborosos do box. 


Ken Vandermark (clarinete): particularmente, era um dos encontros que eu mais tinha curiosidade em ver o resultado. Os saxofonistas nasceram na mesma época (Perelman, em 1961, e Vandermark, em 64), começaram a vida profissional na década de 1980 e sedimentaram seu espaço na cena dos anos 90. Por vias e com resultados distintos, desenvolveram muitos projetos e parcerias e editaram mais de 100 álbuns cada um. Vandermark também é um sax tenorista de origem, mas optou por tocar apenas clarinete aqui. Em meio ao contraste das vozes, encontramos um diálogo de ideias que se desenvolvem de forma precisa e alinhada (dá até para imaginar eles sorrindo de satisfação por dentro enquanto a música ia acontecendo), em meio a pontos de encantamento que apenas a mais fina improvisação livre nos proporciona.  

Vinny Golia (soprillo, clarinete, basset horn, alto clarinete): pela multiplicidade sonora, este é um dos encontros mais interessantes. Vinny Golia é um multi-instrumentista incansável que toca uma infinidade de instrumentos de sopro – já em sua estreia, em 1977, mostrava sua versatilidade em um arsenal de saxes e flautas. Para a sessão, trouxe os inusuais basset horn (da família dos clarinetes, mais utilizado na seara erudita) e o soprillo (o menor membro da família dos saxofones). São onze peças, nas quais o colorido mutante que resulta da escolha instrumental de Golia a cada momento é um dos atrativos. Sendo exímio e experimentado em todas essas diferentes instrumentações, Golia oferece a Perelman uma parceria que traz diversificados campos sonoros para serem explorados. 

Jon Irabagon (slide soprano e sopranino): uma das vozes mais pulsantes do século XXI, Irabagon tem no sax tenor seu veículo principal; mas aqui resolveu explorar outras vozes menos conhecidas suas, indo para as esferas mais agudas da família dos saxofones. E o resultado são alguns dos momentos mais quentes do conjunto, com Irabagon trazendo muita agilidade improvisacional empunhando slide soprano e sopranino. As ideias vão eclodindo aqui de forma por vezes mais acelerada, com um sadio virtuosismo estimulando nossos sentidos. Linhas cortantes, duelos certeiros.  

David Liebman (soprano): este é um caso similar ao de Lovano, um músico que circula e fez fama em outras vias jazzísticas que não o free. Liebman apareceu com tudo na década de 1970, tocando nos grupos de Elvin Jones e Miles Davis (participou inclusive da joia “On The Corner”), enquanto ia desenvolvendo seu próprio trabalho. Liebman não é alguém que você pensa de pronto quando fala em free improvisation, o que eleva a curiosidade de vê-lo nesse embate com Perelman. Pode-se dizer que é o encontro com sonoridade mais organizada (se não estruturalmente, ao menos sonoramente), com linhas melódicas mais sensíveis, sendo um dos extremos do projeto.  

Colin Stetson (sax contrabaixo, tubax): talvez Stetson seja mais conhecido por seus trabalhos com trilhas sonoras, tendo composto inclusive para filmes de grande repercussão internacional, como “Hereditário”. Mas ele também circula por campos outros da música, de associações com bandas de indie rock, como o Arcade Fire, a passagens pela free music, onde podemos destacar o disco em duo que fez com Mats Gustafsson (“Stones”). Não sei como ele chegou aqui neste projeto, mas sua entrada desperta outro tipo de interesse e proporciona outras possibilidades de interação para Perelman. Provavelmente o encontro mais curioso e o menos empolgante...  

Roscoe Mitchell (bass sax): essa é daquelas colaborações que ficamos felizes de saber que ocorreram. Se os intercâmbios e as parcerias na free music são amplos como em poucos gêneros musicais, muitos nomes acabam por não se cruzar em suas trajetórias; então aqui uma lacuna é completada. Mitchell, de 82 anos, é o mais velho artista a participar do projeto (e foi o único que não foi ao QG de Perelman no Brooklyn; simbolicamente, é muito expressivo que Perelman tenha se deslocado até a lenda para sedimentar o encontro). Sua energia criativa se mantém em ebulição após todas essas décadas em atividade e ele oferece para Perelman um campo único de embate dialógico. A música é a mais atmosférica e contemplativa do conjunto, mas também a mais expressivamente excitante, daquelas que você ouve com interesse sentindo o desenvolvimento de cada minuto, como a interação vai sendo construída nos detalhes, com os pontos de silêncio também sendo de relevância indiscutível. O resultado são três longas peças, de 8, 13 e 39 minutos, que concentram um pouco do melhor de Reed Rapture In Brooklyn

James Carter (sax barítono): tendo começado exatamente tocando em grupos de outros saxofonistas (Julius Hemphill, Frank Lowe), James Carter fica muito à vontade nesses encontros. Ele já havia participado do quarteto de saxofones com o qual Perelman gravou no ano passado – “(D)IVO”  e traz aqui interação e energia como nenhum outro. Carter é daqueles músicos que circulam sem fronteiras, passando pelo free jazz, buscando elementos soul para seu órgão trio, tocando com artistas tão diversos como Kathleen Battle e U2. Mas, o mais importante, é um improvisador muito sólido, que dialoga como ninguém com Perelman (a interação entre eles é a de quem tem uma intimidade artística de há muito, algo que, na verdade, não é o caso). Em toda a ampla gama timbrística e harmônica que envolve o projeto, aqui temos realmente a combinação sonora perfeita; cada nota, cada som funciona em uma coesão bastante prazerosa e estimulante. 

Joe McPhee (sax tenor): com a autoridade que sua história proporciona, Joe McPhee foi o único que optou por usar também um sax tenor. O encontro dos dois instrumentos iguais criam linhas precisas que se organizam paralelamente, sem nunca se contraporem; cada um sabe seu espaço, jogando de forma a nunca invadir o campo alheio. O dueto é algo contemplativo, melancólico em certo sentido (ouça as belas linhas desenvolvidas na faixa 2, a mais longa, com seus 11 minutos). Um encontro que demonstra respeito e admiração, um duo que eu chamaria de gentil, sem que nunca um dos artistas tente estar à frente do outro, com cada tempo e espaço sendo respeitado em uma sensível harmonia expressiva. 

Tim Berne (sax alto): da mesma geração de Perelman, Tim Berne é uma das vozes nucleares que surgiram na cena free nova-iorquina dos anos 80 e se mantiveram em ebulição criativa por todas essas décadas, sempre com propostas novas a nos encantar. Em um esquema clássico no free impro, os dois saxofonistas adentram esses duelos totalmente livres, deixando apenas o fluxo os guiar. Da sessão saíram então apenas quatro extensas peças, com Berne conseguindo extrair de Perelman um pouco de sua voz mais rascante, tendo no duelo da faixa 1 um dos momentos mais excitantes do projeto. 

Por enquanto, Reed Rapture In Brooklyn está sendo editado apenas em formato digital, via Bandcamp. Há a promessa de edição física (CD) no ano que vem, mas não se sabe se todo o material ou apenas alguns títulos. A escolha da gravadora no momento não me parece de todo acertada: a única opção, por ora, para se ter acesso a essa música é comprando ela no Bandcamp e levando de uma vez todos os 12 discos de Reed Rapture In Brooklyn, por salgados US$ 80 (uns R$ 450). Talvez fosse mais amigável com os ouvintes vender os discos separadamente, o que ajudaria a ampliar o número de pessoas com acesso a esse material (afinal, quantos podem disponibilizar US$ 80 por música apenas em formato digital? É possível comprar faixas avulsas a US$ 1, mas há 103 faixas no total!). Se ter acesso aos discos individualmente for uma opção em breve (espero que sim), os álbuns imperdíveis, que recomendo primeiro, são os que trazem os encontros de Perelman com Roscoe Mitchell, James Carter, Jon Irabagon e Ken Vandermark. Claro que é interessante poder ter acesso a todos os registros e ouvir as multiplicidades expressivas proporcionadas por artistas tão distintos. Mas, em um projeto tão amplo, tem que se começar por algum lugar.    


**Photos: Peter Gannushkin

 

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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)