CRÍTICAs Uma
nova saxofonista tem trazido ares frescos à cena da free music de Nova York.
Seu nome é Zoh Amba...
Por Fabricio
Vieira
(photo: Peter Gannushkin)
Uma pergunta que me fazem de tempos em tempos: “O que há de novo para ouvir no (free)
jazz?”. Muitas vezes o novo é uma descoberta nova, não necessariamente um
primeiro disco feito por jovem artista. E como não estamos no mundo descartável
do pop de consumo ligeiro, álbuns e artistas desconhecidos de uma década atrás
podem, sim, oferecer uma coisa
de aura realmente “nova”, renovadora para a escuta. Mas aqui o caso é outro.
Zoh Amba é nova sob qualquer aspecto. Sua música é uma novidade mesmo, que
chegou há pouco para ajudar a arejar a cena de Nova York. Zoh Amba é uma
saxofonista de 22 anos. Ela nasceu em 27 de abril de 2000 e cresceu na pequena
cidade de Kingsport, no Tennessee – cerca de 55 mil habitantes, segundo o
Wikipedia. Amba sempre se interessou por música e começou tocando violão em
casa. Quando estava no ginásio, viu um documentário na
escola no qual se deparou pela primeira vez com a música de Charlie Parker, o que provocou um choque e abriu
seus ouvidos ao saxofone. Ainda adolescente,
conseguiu um sax e passou a tentar aprender a tocar o instrumento. Ao “The New
York Times”, contou que sua mãe detestava o barulho do sax com ela praticando
dia e noite. Daí um bosque perto de casa passou a ser seu local de ensaio. De
Parker e Coltrane, passou a buscar artistas menos conhecidos. “Eu estava sempre
procurando por instrumentistas com um som dark, aqueles de quem se fala menos,
como Frank Wright, Kaoru Abe, Arthur Doyle, Frank Lowe. Eles mudaram completamente a minha vida”, conta ela. “Ouvi
Albert Ayler quando tinha 13 anos. E escutar essa música me fez apreciar estar
viva e ter um coração batendo no meu peito. Todas essas pessoas me ensinaram a
ter coragem. Elas não apenas me mostraram como tocar, me fizeram sentir que não
há problema em existir, ser você mesmo, mergulhar fundo em seu coração e não
ter medo de nada. David S. Ware fez isso por mim”, diz a artista nas liner notes de seu novo álbum,
“Bhakti”.
Após acabar o high school, decidiu
estudar música de verdade, se mudou e
foi parar no San Francisco
Conservatory. Mas a linha de ensino mais mainstream da escola destoava do que
buscava. No outono de 2020, então, aos 20 anos, quis testar algo diferente e rumou para Nova York. Uma das ideias era tentar
ter aulas com David Murray, o que acabou acontecendo e sendo um passo importante
em sua jornada. “Nós tocávamos muito alto juntos, berrávamos com os saxes em
nossas aulas, e ele dizia: ‘Vamos, me dê mais’”, conta Amba sobre a experiência com Murray. “Ele é quem me
incentivou, tipo, 'não pare, continue, deixe-me ouvir, vá mais longe.’” E o
resultado disso pode ser ouvido em sua música. Zoh Amba tem no sax tenor uma
pegada enérgica, marcada por penetrantes ataques, um cortante sopro que não
nega a herança screaming de Ayler e Ware (sem esquecer que música e espiritualidade são indissociáveis para ela). Na flauta,
seu segundo instrumento, uma pegada mais relaxada. Depois da experiência com Murray, passou uma temporada no New
England Conservatory, em Boston. Em
meados de 2021 volta a NY, decidida a se estabelecer na cidade e fazer sua
música. E foi aí que viu tudo acontecer muito rápido. De um ponto em que nunca
havia participado de uma gig profissional ou entrado em um estúdio, veio tudo
de uma vez nos meses seguintes. Logo estava em gigs com o baterista Francisco
Mela, um imigrante cubano, que tem explorado com muita particularidade as vias
do free jazz. Com Mela,
entraria em estúdio pela primeira vez, em abril de 2021, para gravar o disco em
duo “Causa y Efecto”. Mela a apresentaria a William Parker. Daí conheceria
Tyshawn Sorey. E o pianista Vijay Iyer, com quem se apresentou em duo em
outubro de 2021. E daí viriam várias oportunidades seguidas de gravar e tocar com muitos dos mais destacados artistas da
cena free jazzística contemporânea. Amba começou a gravar no ano passado, mas
todos os seus discos saíram em 2022 (poucos artistas podem dizer que lançaram
tantos álbuns em seu ano de estreia). Por mais que se mostre segura – e
realmente ela tem o que dizer –, não parece exagero ter a sensação de que
estamos a ver uma artista em formação à nossa frente. Quais os próximos passos
de Zoh Amba? Acompanhemos com interesse essa nova voz que tem trazido
algo realmente fresco à música livre
contemporânea.
Causa y Efecto
Zoh Amba/ Francisco Mela
577 Records
Nesta primeira gravação em estúdio feita por
Zoh Amba, captada em 12 de abril
de 2021 e editada somente em setembro deste ano, a saxofonista se une ao
percussionista e baterista Francisco
Mela. Apresentado quando saiu como um encontro Tennessee-Cuba, o álbum traz em sua faixa de abertura certo sabor regionalista, com Mela explorando efeitos percussivos e
cantarolando, enquanto Amba põe a flauta para tocar. Nos
temas seguintes, quando Amba saca o sax tenor, vemos surgir um free jazz mais enérgico.
O Life, O Light
Zoh Amba/ William Parker/ Mela
577 Records
Poucos meses
depois, Zoh Amba volta a
estúdio com Francisco Mela. Mas
desta vez há um terceiro envolvido: nada menos que o lendário William Parker. Diferentemente do
projeto anterior, onde os créditos eram divididos, este é um trio comandado por
Amba, o que eleva sua responsabilidade sobre o projeto. O álbum traz quatro
temas da artista, nos quais podemos sentir mais profundamente a bela e
renovadora energia de seu sopro.
O, Sun
Zoh Amba/ Thomas/ Morgan/ Joey Baron
Tzadik
John Zorn é
também um produtor e descobridor de talentos novos a quem dá oportunidade em seu
selo Tzadik. E não tardou para
ele ver Zoh Amba circulando
pela cena. O encontro resultou na gravação deste álbum. Em novembro de 2021,
Amba entrava em estúdio com seu jovem amigo Micah Thomas (piano), Thomas Morgan
(baixo) e o veterano Joey Baron na
bateria. São sete peças, sendo que Zorn participa de uma delas (“Holy Din”),
levando seu sax alto para um duelo com o tenor de Amba.
Bhakti
Zoh Amba/ Thomas/ Hollernberg/ Tyshawn
Sorey
Mahakala Music
Neste seu mais
recente registro, a saxofonista se uniu a um outro quarteto. Micah Thomas volta
ao piano, mas há de novidade Matt Hollenberg na guitarra e o genial Tyshawn Sorey nas baquetas. Gravado
no Park West Studios, pelo sempre refinado Jim Clouse, Bhakti traz Amba focada apenas no sax tenor e mostrando linhas
improvisacionais elaboradas e certeiras como nunca. Depois de “Altar-Flower”,
que abre o disco com seus 29 minutos de alta energia, recomenda-se uma pausa
para retomar o fôlego. Até aqui, seu melhor trabalho.
Alien Skin
Zoh Amba/ Shipp/ Perelman/ Parker/ Fowler/
Hirsh
Mahakala Music
Animado pela
explosiva apresentação de encerramento do Vision Festival 2021, o saxofonista e
produtor Chad Fowler teve a ideia de reunir alguns dos presentes naquele dia
para uma sessão de gravação. E assim reuniu no Park West Studios, no Brooklin
nova-iorquino, este sexteto. Fowler foi chamando amigos que tem gravado para
seu selo Mahakala Music,
Matthew Shipp, William Parker, Ivo Perelman e o baterista Steve Hirsh. Para arejar este velho
encontro de amigos, entrou no grupo Zoh
Amba. Foram dois dias em estúdio, resultando nas cinco intensas peças
que formam Alien Skin. É
incrível ver Amba plenamente integrada e tocando com fluência e potência sem
titubear, sem se intimidar: ela tinha 21 anos na ocasião, no meio de artistas
que tem muito mais que a idade dela só de experiência; Parker, de 70 anos,
começou a tocar em meados da década de 1970; Shipp e Perelman, ambos com 61
anos, iniciaram suas carreiras na década de 1980. Zoh Amba mostra aqui que veio para ficar e vai tocar, com muita
personalidade, com quem se encontrar pelo caminho. Alien Skin será editado em CD no dia 11 de novembro.
(Sessão de gravação de Alien Skin)
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez
mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de
S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires.
Colaborou também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos
últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É
autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo
Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live
in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)