CRÍTICAs Um precioso lançamento, com registro realizado em 1968, vem completar lacunas na história da arte pianística de Cecil Taylor...
Por Fabricio Vieira
(Photo: Fred Seibert, 1973) |
Fruto de uma apresentação realizada em 18 de outubro de 1968, no Jazz Jambore, em Warsaw (Polônia), na Sala Kongresowa, Respiration foi descoberto nos arquivos da Polskie Radio enquanto um técnico cuidava da catalogação de antigas fitas. Remasterizado cuidadosamente por Grzegorz Piwkowski em abril de 2021, levou ainda mais de um ano para vir a público pelas mãos do Fundacja Sluchaj, que tem se sedimentado como um dos selos mais interessantes da free music, editando importantes artistas novos e resgatando preciosidades como esta. Respiration é relativamente breve. São 43 minutos de música improvisada onde o som de Cecil Taylor já é plenamente reconhecível. Esta apresentação vem de uma fase de retomada e ascensão da carreira do pianista. Após anos sem gravar, ele havia reaparecido em 1966 com um novo grupo e novas ideias, editando naquele ano os clássicos “Unit Structures” e “Conquistador”. Em paralelo, passou a realizar, de forma cada vez mais corriqueira, concertos para piano solo. Se seus trabalhos em grupo estão bem documentados a partir de 1966, seu trabalho solista apenas ganharia o devido acompanhamento editorial na década seguinte (mesmo que já estivesse acontecendo há anos nos palcos). Uma diferença fundamental de Respiration para as outras duas raras gravações que tínhamos dos anos 60 é a qualidade: agora sim podemos ouvi-lo em seus tempos iniciais no formato solista de forma decente. O que Respiration nos mostra é que os elementos basilares de sua arte solista já estavam presentes: o fluxo contínuo e ininterrupto de ideias; os blocos de acordes dissonantes realçando as possibilidades percussivas do piano; a corporeidade densa da música que sai de seus dedos criando camadas que, antes que consigamos absorvê-las completamente, são seguidas por outros blocos de sons, nos engolfando e nos obrigando a se render à experiência sem mais querer interpretar o que está acontecendo à nossa volta. Está tudo ali já. Respiration é um ponto nevrálgico do marco zero da poética solista tayloriana, que ganharia novos elementos no futuro, em um processo interartes que abarcaria também a poesia e a dança.
É impossível compreender a arte de Cecil Taylor sem navegar, profundamente, nas águas de seu trabalho solo. As muitas oportunidades oferecidas por ele a seus ouvintes nesse campo, durante mais de quatro décadas, exige interesse e concentração próprios para serem apreciadas em sua amplitude. Os caminhos que abriu influenciaram indiscutivelmente muitas gerações de pianistas que vieram após ele. De Irène Schweizer a Matthew Shipp, de Alexander von Schlippenbach a Marilyn Crispell, não faltam exemplos de artistas que desenvolveram seus concertos de piano solista focados na improvisação. Inclusive há um exemplo que podíamos chamar de famoso, que extrapola a atenção dos melômanos: Keith Jarrett, que estreou no formato na década de 1970 e tornou as apresentações de piano solista, com sua linhagem mais lírica e melódica, algo realmente de repercussão ampla. Infelizmente Cecil Taylor não alcançou tal fama, muito até por sua linguagem de maior radicalidade, não bem digerível por um público menos focado e profundamente interessado. Escutas ligeiras e interpretações superficiais, calcadas muitas vezes em um imaginário que não se comprova de todo quando colocado à prova, podem criar falsas impressões sobre os recitais de piano de Taylor, podendo ser encarados apenas como “simples” sessões de improvisação: ele senta e toca até esgotar o fluxo de ideias, diriam alguns. Mas há todo um complexo maior no seu fazer musical (vale lembrar que amigos dele contavam que praticava todos os dias, quatro, cinco, seis horas sentado ao piano em casa). Seus recitais não são blocos rígidos de improvisos, clusters e ruidosidades. Ouvidos atentos descobrirão várias camadas expressivas, melodias sutis aqui e ali, microtemas que vem e vão, narratividades que se desdobram de uma peça à outra: cada concerto era uma história nova sendo contada. Quem teve a oportunidade de vê-lo ao vivo sabe que tratava-se de um momento singular, de algo maior na arte contemporânea.
(Cecil Taylor tocou no Brasil em duas oportunidades e,
felizmente, em uma delas em concerto solista. Isso aconteceu em 2007, quando
fez duas apresentações, em São Paulo e no Rio de Janeiro. No Auditório
Ibirapuera, na noite de 28 de outubro de 2007, o pianista fez um show em que
mostrou toda a excelência de sua arte. Taylor mantinha intacta sua verve
avant-garde, no auge de seus 78 anos de idade à época, e não fez por menos:
adentrou o palco ainda durante o intervalo programado entre as apresentações
(era um festival), com parte do público fora da sala, calçando apenas meias,
tocando uma espécie de pandeiro meia lua e recitando um de seus poemas, uma
abertura de impacto indescritível; em alguns minutos, tomava seu lugar em
frente ao piano para nos inebriar com cerca de 40 cortantes minutos de música
densamente sensorial e imagética, irrepetível: uma noite difícil de ser
esquecida por quem esteva lá...)
*Cecil Taylor deixou mais de uma dúzia de álbuns
solistas, entre gravações ao vivo (a maioria) e de estúdio, feitas em mais de
quatro décadas – afora inúmeros bootlegs que circulam por aí. Como em toda
discografia, sempre há os álbuns que se destacam e bem sintetizam o trabalho do
artista. Para quem deseja melhor adentrar essa faceta da arte do mestre Cecil Taylor, em suas múltiplas possibilidades expressivas, destacamos abaixo 5 álbuns imperdíveis para piano solo...
SILENT TONGUES
Recorded: July 2, 1974 (Montreaux, Switzerland)
Released: 1975 (Arista/Freedom)
Sua gravação mais conhecida para piano solo e a melhor distribuída, ganhou diferentes reedições. É o disco-base de Taylor neste formato, um registro fundamental para se iniciar e adentrar sem medo este desafiador universo.
AIR ABOVE MOUNTAINS
Recorded: June 18, 1976 (Moosham Castle, Austria)
Released: 1977 (Enja)
Um dos mais incríveis exemplares da arte solista de Taylor, exibindo todas suas nuances. Sua versão completa apareceu apenas em 1992, em CD: uma peça de 76 minutos, dividida em duas partes.
Fly! Fly! Fly! Fly! Fly!
Recorded: September 14, 1980 (West Germany)
Released: 1981 (MPS)
Uma rara gravação solo dele feita em estúdio. Vemos Taylor menos demolidor, trabalhando temas relativamente breves e concentrados, nos trazendo uma outra faceta de sua voz, com até, por vezes, certo lirismo no ar.
FOR OLIM
Recorded: April 9, 1986 (Berlin)
Released: 1987 (Soul Note)
Disco com variadas perspectivas, abre com “Olim”, de 18 minutos, nos quais o pianista desenvolve com mais vagar suas ideias, com marcantes quase pausas e toques sombrios. Depois, uma sequência de vários pequenos temas, alguns entre 1 e 3 minutos, desafiadoras miniaturas.
THE WILLISAW CONCERT
Recorded: September 3, 2000 (Willisaw, Switzerland)
Released: 2002 (Intakt)
Precioso exemplar da última etapa de sua carreira. Se já não tão mais plenamente enérgico, trazia habilidade técnica em esplendor, no auge de seus 71 anos. A longa peça de abertura, com 50 minutos, mostra que não faltavam ideias e fôlego.
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista
e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a
Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos
Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa.
Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico.
É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell
(Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records),
e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)