Keith Jarrett: a arte do piano solo


CRÍTICAs Uma nova gravação da última tour europeia de Keith Jarrett, quando estava completamente focado em apresentações solistas, acaba de ser editada pela ECM Records...  

 



Por Fabricio Vieira

 

Em certo aspecto, pode-se dizer que as apresentações solistas acompanharam Keith Jarrett por toda a vida. Ainda criança, quando estudava música clássica, subiu a um palco pela primeira vez para se apresentar sozinho com seu piano. Claro que isso é mais uma curiosidade histórico-biográfica. Pra valer mesmo, Jarrett passou a desenvolver sua linguagem solista apenas com a chegada da década de 1970. Levantamento do site keithjarrett.org contabiliza mais de 450 apresentações solistas em sua carreira. A primeira teria ocorrido no fim dos anos 60, mas não só não existe registro como não se tem certeza se teria acontecido em 1968 ou 69, no Crystal Ballroom, em Portland. Jarrett fez sua primeira gravação para piano solo em um estúdio, o que é curioso se pensarmos que ele exploraria o formato durante toda a vida basicamente ao vivo. Facing You é fruto de uma sessão realizada em novembro de 1971 em um estúdio em Oslo e se tornaria também seu primeiro registro a sair pelo selo ECM, responsável por praticamente toda sua ampla discografia solista. Esta primeira gravação é formada por peças não muito extensas, sendo que apenas uma alcança os 10 minutos, e mostra uma linguagem em formação. Nos palcos, expandiria sua voz e passaria nos anos seguintes a improvisar de forma mais livre e extensa, com as ideias se desenvolvendo sem amarras. A primeira gravação ao vivo editada, Solo Concerts: Bremen / Lausanne, com registros captados em março e julho de 1973, já mostra o esquema que marcaria sua trajetória, com peças que chegam a se desenvolver ininterruptamente por cerca de 1 hora. Um pouco depois, em janeiro de 1975, em Köln, Alemanha, Jarrett daria um concerto que, surpreendentemente, se tornaria um hit global. Surpreendente porque trata-se de improvisação livre e normalmente um público mais amplo não se interessa por esse tipo de música. Originalmente um LP duplo, com uma peça de cada lado dos vinis, relançado em CD no começo dos anos 80, The Köln Concert tem sido reeditado continuamente; no fim de 1975, saiu em EUA, Japão e Alemanha. Mas com o apelo que mostrou apareceu com o passar dos anos em edições locais em países como Brasil, Iugoslávia, Alemanha Oriental, Polônia, Espanha, Coreia do Sul, México, França, Canadá, Arábia Saudita, Bulgária, China, um verdadeiro best-seller global, com estimadas mais de 4 milhões de cópias vendidas. E continua gerando interesse e recebendo novas edições (em 2021, por exemplo, saiu de novo, em SACD, no Japão). Reouvindo The Köln Concert, continua não ficando claro, em toda sua complexa beleza, o motivo de ter se tornado um hit... 

Os concertos solistas fizeram parte de toda trajetória de Keith Jarrett. O pianista fez apresentações solo ininterruptamente entre 1971 e 1997 (apenas em 1986 não constam concertos para piano solo). Em 2002, o seu 150º concerto (!) no Japão foi uma apresentação solista. E 2015 e 2016, em seus últimos anos de atividade, fez apenas apresentações para piano solo. No Brasil, Jarret se apresentou no formato em três oportunidades: 1987, 2011 e 2012, deixando inclusive um disco gravado por aqui, Rio. Se a primeira apresentação pública de Jarrett ocorreu em 1957, só ao piano, é simbólico que seu último concerto, que aconteceu 60 anos depois, em 15 de fevereiro de 2017 no Carnegie Hall (NYC), tenha sido uma apresentação solista. Jarrett sofreu um AVC em 2018, o que acabou por afetar seus movimentos e locomoção, o levando a encerrar a carreira. Se o público não verá mais Jarrett nos palcos, a ECM tem de tempos em tempos soltado uma nova gravação inédita. Segundo o produtor alemão Manfred Eicher, chefe da gravadora, há nos arquivos da ECM pelo menos umas 100 gravações inéditas realizadas profissionalmente (ou seja, discos “novos” de Jarrett podem seguir sendo lançados por muitos anos ainda). Nesses tempos, Eicher tem dado atenção à derradeira turnê europeia do pianista, que aconteceu em julho de 2016 e passou pelas cidades de Budapeste, Bordeaux, Viena, Itália e Munique. Dessas apresentações, foram editados já os concertos feitos em Munique (Munich 2016) e Budapeste (Budapest Concert). Agora chegou a vez de os ouvintes terem a oportunidade de degustar Bordeaux Concert, que está sendo lançado neste 30 de setembro.

A música pianística que Jarrett levava aos palcos pode ser encarada como uma suíte, uma nova suíte a cada apresentação. Não se trata de peças individuais que juntas formam um disco (ou um concerto). Na verdade, isso aconteceu em seu álbum solo de estreia: em Facing You, realmente eram peças, no sentido mais usual, a formarem um álbum. Mas quando as apresentações solistas foram ganhando corpo, o que passamos a ver é ele criando partes de um todo, como se fossem movimentos de uma suíte. Especialmente durante os anos 70 e 90, seus concertos, sempre de cerca de uma hora e pouco, se desenvolviam de forma quase ininterrupta, sendo normalmente compostos por duas, três ou no máximo quatro partes (conjunto que normalmente recebia o nome da cidade onde ocorria sua execução). Às vezes, um standard aparecia no bis. Mas o núcleo desses trabalhos era a improvisação desenvolvida por meio de longas peças, nas quais toda sua história musical poderia aparecer, entre sequências mais atonais e abstratas, linhas jazzísticas que pululavam aqui e ali, um tom bluesy, alguma herança erudita; tudo sempre com muito lirismo (e há, claro, suas ruminações e balbucios, indissociáveis de sua obra). Nos anos 2000, em uma nova etapa em sua carreira, após o colapso que sofreu no fim da década de 90, seus concertos sofreram uma sensível mudança. Se a proposta de suíte permaneceu permeando sua música, as ideias passaram a se dividir em mais partes, dez, doze, até mais (nomeadas agora por algarismos romanos), como se as pausas passassem a ser necessárias mais repetidamente, como se o seu fluxo de ideias tivesse se tornado mais sintético. Pensando a música no geral, o todo apresentado a cada noite no palco, há apenas um problema: o hábito dos aplausos (a variar de um público a outro) ao fim de cada parte, que acaba rompendo mais frequentemente o desenrolar sequencial da suíte. Esteticamente, essa maior fragmentação altera a recepção da música, com a experiência sendo menos encantatoriamente inebriante: antes tínhamos que mergulhar por longos períodos ininterruptos, ondulando nossas percepções levados pelo dedilhar imprevisível de Jarrett. Não que ele tenha deixado de desafiar e encantar os ouvintes, mas a concentração exigida passou a ser rompida mais rapidamente, se tornando mais difícil dar tempo de entrar em modo êxtase...


Bordeaux Concert faz parte desta etapa da trajetória de Jarrett. São 13 faixas, apenas temas seus, nada de standards, em um total de aproximados 70 minutos de música captados na famosa cidade vinícola francesa, na noite de 6 de julho de 2016, no Auditorium da Opéra National. A maioria dos temas é relativamente curta; apenas Part I excede os 10 minutos (alcança os 12 minutos), ilustrando bem o modo de síntese que caracteriza sua voz no século XXI. Quem conhece a obra de Jarrett sabe como se dá o essencial daquilo com que irá se deparar aqui. Ele não vai criar algo fora do desenho que estruturou (e nos acostumou) nessas décadas de piano solo, apesar de, sim, sempre ser uma novidade aquilo que nos traz; nessa viagem a que nos leva uma vez mais, estarão os elementos que esperamos e conhecemos, aqueles que norteiam sua música desde os anos 70. Há os momentos com ar jazzy (Part X) e os momentos mais abstratos (em Part I e Part IV). Mas, de modo geral, o clima de Bordeaux Concert é mais lírico, melancólico até (como bem pontuam Part IX e Part XI, por exemplo). Não parece fazer muito sentido ficar narrando o que aparece em cada peça, até porque a ideia da improvisação livre é ir surgindo e surpreendendo o ouvinte. E com as facilidades de se ouvir hoje um disco que acaba de sair, o melhor é dar play e acompanhar Jarrett. Uma experiência interessante é contrapor este novo disco (editado em CD, digital e vinil duplo) a seus pares Munich 2016 e Budapest Concert, captados com poucos dias de diferença, e ver o quanto a voz de Jarrett se altera, dentro do seu esquema próprio, cada vez que sobe no palco – um bom contraste é Munich 2016, que traz peças mais agitadas e um punhado de standards. Keith Jarrett já disse que sua música é improvisada em uma determinada noite e que deveria desaparecer tão rapidamente quanto surge. Se esta é uma das magias da improvisação mais livre, os discos, por sorte, evitam que esse efeito da criação instantânea se concretize, que a música evapore no ar. E, assim, continuamos sendo chamados a voltar a ela sempre uma vez mais. 

 

---------

*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)