Escafandro: a guitarra de Luiz Galvão em inspirados duos


LANÇAMENTOs
Composto por uma série de quatro álbuns, o novo projeto de Luiz Galvão o leva a dialogar com quatro artistas em diferentes propostas...



Por Fabricio Vieira

O guitarrista Luiz Galvão está há umas duas décadas na estrada, percorrendo diferentes vias sonoras e protagonizado alguns dos projetos mais interessantes da cena paulista, como Otis Trio, Nomade Orquestra e Giallos. Agora podemos ver sua voz sob um novo ângulo. Escafandro é uma série que traz Galvão em quatro duos, ao lado de quatro diferentes instrumentistas. O material foi captado em encontros realizados no 74 Club, em Santo André (no ABC paulista, de onde vem Galvão), em diferentes datas entre 2020 e 2021.  O resultado são quatro álbuns independentes mas interligados, editados pelo selo Brava um por vez nas últimas sextas-feiras.

O projeto surgiu durante a pandemia. Veio da necessidade de praticar música improvisada, ainda mais por conta do hiato nas práticas sonoras que o período pandêmico causou. Dividi a ideia com a Ângela, do selo Brava, e ela abraçou entrar nessa empreitada de produzir comigo. Pensamos em outros nomes para o projeto, aí chegamos no consenso/conceito do Escafandro. No meu imaginário, o escafandro sempre provocou sensações de atração e desconforto. A atração, por conta da função do equipamento em si (a possibilidade de respirar e caminhar embaixo da água) e da estética rudimentar e futurista do aparato, algo como um ‘astronauta aquático’. Em contraponto, estas mesmas características me remetem a sobrevivência, risco, fragilidade... Em tempos tão distópicos aos quais estamos ‘submersos’, pareceu providencial batizar um projeto dedicado à improvisação livre de Escafandro. A estética se associa a diversos signos que o equipamento carrega: o risco, a fragilidade, a emergência, o rudimentar, o contemporâneo... E num sentido mais subjetivo, nos dá oxigênio para sobreviver”, conta o guitarrista ao FreeForm, FreeJazz.


Ao lado de Galvão, participam do projeto: Natalia Francischini, também guitarrista, o baterista Flávio Lazzarin, o trompetista Romulo Alexis e Thiago Salas (eletroacústica). “Inicialmente, eu queria fazer um duo com a Natalia Francischini. Antes da pandemia, improvisamos umas duas ou três vezes e gostamos do resultado (pelo lance de ser duas guitarras, abordagens distintas etc). Mas nem tinha esse nome/conceito do escafandro. Aí, em algum momento, a coisa se ampliou. Quando determinamos que seriam quatro artistas, ja desenhamos o projeto todo, que resultaria em quatro álbuns.” A acertada escolha das parcerias veio por “afinidade mesmo”, diz Galvão. “Artistas com quem eu já improvisei bastante durante minha caminhada. Além da diversidade de instrumentação para cada álbum.” O cerne dos encontros era a improvisação livre. A única orientação era temporal, já que a proposta era editar o material em fitas K7, com seu limite de 46 minutos (ou 23 min de cada lado). “Mas nada foi cronometrado.

O primeiro capítulo da série de duos, Escafandro #1, traz um duo de guitarra e bateria, a cargo de seu antigo parceiro de Otis Trio, Flávio Lazzarin. A intimidade expressiva do duo, que já tocou uma infinidade de vezes juntos em diversos contextos, faz com que a música se desenvolva de forma telepática, sem arestas em meio à ruidosidade escolhida como principal via de comunicação (para quem os conhece tocando juntos no Otis Trio ou no Giallos, vale dizer que o que trazem aqui é completamente distinto). Escafandro #2 nos leva a outros rumos. Aqui Galvão está ao lado de Thiago Salas (eletroacústica). A dupla arquiteta explorações improvisatórias de linhas mais divagantes, criações de maior densidade imagética, de ondulante tensão, onde até samplers de vozes ecoam aqui e ali ampliando a dinâmica do trabalho em duo. Escafandro #3 é um embate dialógico de guitarras. Galvão recebe como convidada desta vez a guitarrista Natalia Francischini. Da abertura direta, de ruidosidades cortantes, a temas mais divagantes, uma experiência para se atravessar de uma escuta só, sem pausas. E Escafandro #4 fecha o projeto em grande estilo, com o duo sendo formado ao lado de trompetista Romulo Alexis. Guitarra e trompete nos levam por um free impro que tem os vínculos mais diretos com a herança free jazzística dentro do projeto, em faixas de grande refinamento sonoro, em que suas faces de hábeis improvisadores são exibidas em toda sua limpidez, com a ruidagem em segundo plano, gestando peças de potência expressiva única.    

As propostas de cada duo são amplamente variadas, mostrando a versatilidade expressiva de Galvão, um guitarrista acostumado a circular por jazz, rock e free impro com a mesma desenvoltura. Cada ouvinte terá seu álbum favorito (acho Escafandro #4 especialmente inspirado), mas vale pensar a série em sua completude, no todo formado pelos quatro capítulos, com suas particulares nuances estilísticas, em como a guitarra (o elemento aglutinador do projeto) se abre em múltiplas possibilidades para estruturar as conversas propostas. A partir desta sexta-feira (e durante as três próximas), os encontros serão revisitados ao vivo, um duo a cada semana (também com convidados), no 74 Club. Escafandro sai em digital e fitas K7 (edições limitadíssimas), sendo acompanhado por pôsteres e vídeos realizados em cada encontro. Captação e mixagem por Flávio Lazzarin. Arte em xilogravura por Claudio Caropreso. Produção, Luiz Galvão e Brava.

   

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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)