Em diferentes momentos desde que surgiu há cerca de seis décadas, o free jazz tem dialogado com o cinema, em parcerias que culminaram em trabalhos de grande variedade criativa...
Por Fabricio Vieira
A associação do
free jazz com o cinema data desde seus primeiros tempos. E essa parceria já
rendeu frutos nos mais diferentes formatos, entre curtas e longas, ficção, documentário e até animação, e não apenas nas esperadas conexões com o cinema cult e experimental, sendo que alguns artistas, a destacar John Zorn e Willem Breuker, se tornaram verdadeiros profissionais nesse meio. Aqui trazemos uma seleção com
exemplares dentre as mais bem-sucedidas parcerias entre free jazz e cinema
(vale notar que mais de uma vez tal música acabou sendo dispensada pelos cineastas na finalização de seus filmes). E sempre destacando os encontros que depois foram
editados em disco – há, sim, também uma infinidade de trabalhos
desenvolvidos junto a diferentes outras vias artísticas (teatro, dança,
instalações etc.) feitos por representantes do free jazz, mas que existiram apenas
durante a vivência dos espetáculos em si. Ouça, assista, celebre esses
pulsantes encontros interartes...
New York Eye
And Ear Control (1964)
Dir: Michael
Snow
Ayler/ Cherry/
Tchicai/ Rudd/ Peacock/ Murray
O canadense Michael Snow, que também fez carreira como músico, estava vivendo em Nova York quando realizou este experimental filme. A escolha dos músicos convidados para realizar a trilha de seu filme era um verdadeiro dream team de pioneiros do free jazz. De indiscutível interesse histórico, a música seria editada em disco, pelo ESP-Disk, algum tempo depois.
Who’s Crazy
(1966)
Dir: Thomas
White
Ornette Coleman
Trio
Ornette Coleman tinha arquitetado um novo grupo com David Izenzon e Charles Moffett quando recebeu a proposta de fazer a trilha para o filme do diretor belga Thomas White. O trio foi criando a trilha em um estúdio, em Paris, assistindo a uma projeção muda do filme (o processo foi registrado e virou um doc, por Dick Fontaine). Coleman tinha passado a tocar trompete e violino, que usa bastante aqui.
Le viol du
Vampire (1967)
Dir: Jean
Rollin
François
Tusques
O pianista François Tusques, pioneiro do free jazz na França, reuniu aqui dois baixistas que estavam também começando a adentrar este universo, Beb Guérin e J.-F. Jenny-Clark, e o saxofonista Barney Wilen, que participou uma década antes da icônica trilha de Ascensor para o Cadafalso, com Miles Davis. Da climática e cortante música criada, editada em CD décadas depois, foram usados apenas fragmentos no filme.
Chappaqua (1967)
Dir: Conrad
Rooks
Ornette Coleman
O filme do diretor norte-americano Conrad Rooks, centrado nas experiências de um usuário de drogas, traz a participação de diferentes músicos, como Ravi Shankar, Moondog e Ornette Coleman. O saxofonista foi convidado para criar a trilha (ainda antes de Who’s Crazy) e adicionou a seu trio nada menos que Pharoah Sanders. No fim, Rooks rejeitou a música criada por Coleman e encomendou outra para Shankar.
A.K.A. Serial
Killer (1969)
Dir: Masao
Adachi
Masahiko
Togashi/ Mototeru Takagi
Um dos grandes encontros entre música livre e cinema experimental. O radical documentário de Masao Adachi sobre um jovem assassino foi realizado em uma época em que o free jazz estava gestando suas primeiras obras no Japão. Para a tarefa, foram convocados o percussionista Masahiko Togashi e o saxofonista Mototeru Takagi. A música foi editada depois em disco com o título “Isolation”.
Le Temps Fou
(1969)
Dir: Marcel
Camus
Marion Brown
O saxofonista Marion Brown estava vivendo na França no fim da década de 1960. Foi quando o famoso diretor Marcel Camus encomendou a ele a trilha sonora para um filme que estava produzindo. Com um sexteto que contava com Günter Hampel, Steve McCall e Barre Phillips, criou cerca de 40 minutos de música. Infelizmente a trilha de Brown foi cortada da versão final do filme quando lançado internacionalmente em 1970.
Apollon Una
Fabbrica Occupata (1969)
Dir: Ugo
Gregoretti
Mario Schiano
O diretor italiano Ugo Gregoretti, mais lembrado pelo filme coletivo RoGoPag, trabalhou também em vários documentários. Para este filme, que documenta a ocupação por meses da gráfica Apollon pelos funcionários após uma demissão em massa, deixou a trilha a cargo de Mario Schiano. Com um trio, o saxofonista fez uma trilha totalmente improvisada, editada em CD muito tempo depois.
Les Stances À Sophie (1970)
Dir: Moshé
Mizrahi
Art Ensemble Of
Chicago
Em sua exitosa temporada em Paris, o Art Ensemble Of Chicago teve a oportunidade de fazer a trilha sonora deste filme. Estreia do premiado diretor Moshé Mizrahi, Les Stances À Sophie traz o AEC acompanhado de Fontella Bass, com sólidas e contagiantes peças. A trilha logo foi editada em vinil, trazendo uma das peças mais queridas do grupo, Théme de Yoyo.
Ecstasy of the
Angels (1972)
Dir: Koji
Wakamatsu
Yosuke
Yamashita Trio
Twice A Woman
(1979)
Dir: George
Sluizer
Willem Breuker
O saxofonista holandês Willem Breuker, fundador do ICP e da Kollektief, foi também um prolífico criador de trilhas sonoras, rivalizando com John Zorn, no mundo da free music, como quem mais fez nesse segmento. Para este filme de George Sluizer, ele montou um grande grupo com sopros, cordas, piano e percussão. O material foi lançado pelo seu selo, o BV Haast Records.
The Golden
Boat/ Filmworks (1986-90)
Dir: Raúl Ruiz
(et al.)
John Zorn
Nas últimas três décadas, John Zorn tem produzido trilhas para filmes nos mais diversos formatos, documentários, curtas, animação até. Nos últimos tempos, Zorn tem se focado em composição e arranjos, mas na época destas suas primeiras experiências ele também costumava tocar. Nesta coletânea, destaque para o trabalho feito para The Golden Boat, filme do cultuado diretor Raúl Ruiz.
Naked Lunch
(1991)
Dir: David
Cronenberg
Ornette Coleman
O compositor Howard Shore, responsável pela maioria das trilhas dos filmes de David Cronenberg, chamou Ornette Coleman para trabalharem juntos nessa empreitada. Coleman, com seu sax alto, chegou acompanhado de Denardo e do baixista Barre Phillips. A eles se juntou a London Philharmonic Orchestra. A instigante música apareceu em edições mais recentes com alguns bônus.
Space Ghost:
Coast To Coast (1994)
Dir: C. Martin
Croker
Sonny Sharrock
Flat Jungle, Palestinians, New Ice Age... (67-1994)
Dir: Johan Van
Der Keuken
Willem Breuker
Johan Van Der Keuken foi um cineasta e fotógrafo de Amsterdã com quem o saxofonista Willem Breuker muito trabalhou. As muitas parcerias dos dois se estenderam por umas três décadas. Este álbum, com participação de antigos parceiros dele, como Han Bennink e Leo Cuypers, reúne algumas das mais destacadas trilhas criadas por Breuker, como a realizada para o premiado filme “Flat Jungle”.
Anton, Mailman/
Filmworks VI (1996)
Dir: Dina
Waxman (et al.)
John Zorn
As muitas investidas de John Zorn no mundo das trilhas passaram a sair em disco na série Filmworks, que já supera os 20 volumes. Este sexto exemplar da série traz peças criadas para três curtas. Em “Anton, Mailman”, temos uma das não muitas vezes em que ele usou o sax alto em suas trilhas. Ikue Mori, Marc Ribot e Mark Feldman são alguns dos instrumentistas que participaram da criação dessas peças.
United Red Army
(2007)
Dir: Koji
Wakamatsu
Jim O’Rourke
O diretor japonês Koji Wakamatsu (1936-2012) sempre esteve atento à música mais radical feita em seu entorno. Para este que foi um de seus últimos trabalhos, ele convocou o multi-instrumentista Jim O’Rourke para cuidar da trilha. Explorando várias possibilidades sonoras, O’Rourke chamou figuras como Akira Sakata e Chris Corsano para colaborar na empreitada.
Dark House
(2009)
Dir: Wojciech
Smarzowski
Mikolaj Trzaska
O saxofonista polonês Mikolaj Trzaska é o mais novo e provavelmente o menos conhecido desta lista. Atuando desde os anos 90, tem mostrado nos últimos anos seu trabalho por conhecidos selos, como FSR, Not Two e NoBusiness. Para a trilha que criou para este suspense polonês – apelidado de “Polkie Fargo” quando saiu – montou um potente quinteto, com Michael Zerang na bateria.
Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa (2013)
Dir: Gustavo
Galvão
Ivo Perelman/
Matthew Shipp/ Maneri
O diretor de Brasília Gustavo Galvão chamou o saxofonista Ivo Perelman para criar a trilha de seu segundo longa. Perelman convocou dois de seus mais próximos parceiros naquele momento, o pianista Matthew Shipp e o violista Mat Maneri, para a empreitada. O filme ganhou o prêmio de Melhor Trilha Sonora no 46º Festival de Brasília. Sob o título em inglês do filme, a trilha foi editada em CD pelo Leo Records.
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*quem assina:
Fabricio
Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária.
Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda
correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como
Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e
literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns
“Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”,
de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e
Matthew Shipp (SMP Records)