Michael Bisio em três momentos



LANÇAMENTOs Com três novos álbuns na praça, o baixista Michael Bisio mostra o refinamento de um trabalho desenvolvido há quatro décadas...  

 


Por Fabricio Vieira

 

O baixista Michael Bisio está na estrada desde a década de 1980 e tem feito parte de inúmeros projetos com muitos dos mais destacados nomes da free music. No Brasil, tivemos a oportunidade de vê-lo no palco apenas uma vez, em agosto de 2013, como parte do quarteto de Ivo Perelman. Tendo já participado de algumas dezenas de álbuns nessas quatro décadas, Bisio editou nos últimos tempos três novos títulos, como líder e colíder, todos gravados no primeiro semestre de 2021, com diferentes parceiros. Um desses frutos novos vem de uma de suas parcerias mais duradouras, junto ao pianista Matthew Shipp. Além de tocar no trio de Shipp há mais de uma década, Bisio mantém com ele um duo de contrabaixo e piano que, desde sua estreia com “Floating Ice” (Relative Pitch, 2012), mostra o quanto esse diálogo pode ser frutífero. Um outro registro deles surgiu um tempo depois, “Live in Seattle” (2016, Arena Music Promotion). E agora temos o prazer de ouvir uma nova gravação em estúdio do duo. Bisio e Shipp retornaram ao Park West Studios (NYC), mesmo local onde fizeram a gravação de estreia da parceria. Isso aconteceu no dia 5 de abril de 2021, sempre aos cuidados do fino engenheiro de som Jim Clouse. O resultado do encontro aparece agora pelo selo polonês FSR. Flow Of Everything traz nove faixas, com pouco mais de uma hora de música, que flui tão coesa que pouco sentimos o salto de um tema a outro (curiosa a escolha/sequência dos títulos, que poderiam formar um poema, ilustrando bem a fluidez dessa música: Flow/ Bow For Everyone/ Everything/ Of Now/ Of Everything/ Go-Flow/ Flow Of Everything...). É uma música verdadeiramente em duo, um diálogo preciso no qual as faixas vão nascendo da intimidade dessa relação, da confluência das duas vozes, que se complementam de forma indissociável. Há momentos de grande lirismo, como “Bow For Everyone”, com sua melancólica marcante melodia, que se desenha após uma penetrante abertura do baixo conduzido pelo arco. Um contraste a essa tocante peça é a faixa-título, a mais arisca do álbum, marcada pelo pulsante dedilhar de Bisio atacado sem trégua por Shipp, que estilhaça o piano em linhas desconcertantes. Um disco para se deliciar noite adentro.

Michael Bisio lançou no fim do ano passado um outro muito interessante projeto, com uma proposta bastante distinta. Em 26 de janeiro de 2021, no Dreamland Recording Studios, também em Nova York, Bisio se uniu a Joe McPhee (tenor e soprano), Fred Lonberg-Holm (violoncelo) e Juma Sultan (percussão) para uma sessão que resultou no disco The Sweet Spot (Rogue Art). Foi Bisio que entrou em contato com Michel Dorbon, da Rogue Art, com a proposta de fazer um disco do quarteto, que tocava há algum tempo junto mas ainda não tinha gravado com tal formação. É curioso que temos aqui duas gerações distintas, com McPhee e Juma tendo iniciado suas carreiras ainda nos anos 60, e Bisio e Holm sendo músicos que foram desenvolvendo sua linguagem a partir dos anos 80; e a junção dessas décadas de histórias de free music resulta em uma música do século XXI, fresca e intensamente atual. Com sete temas distribuídos por 55 minutos, o álbum traz composições dos membros do quarteto, além releituras de peças de dois baixistas, “Human Being”, de Charlie Haden, e “For Django”, de Henry Grimes. No encarte, encontramos uma poesia de McPhee (“The dance begins/ Moving to rhythms of a heart set free/ freezing time and bending space/ in a most peculiar fashion”...), que servirá de inspiração para a faixa-título, que começa com uma cantoria do saxofonista, algo realmente interessante já que não é tão comum ouvirmos a voz dele em ação. A intersecção das cordas tem um relevante papel, trabalhando juntas, se complementando e se contrapondo, como vemos logo na abertura do álbum (“Malachai”) e nas faixas “e320” e “Free 3”, com Holm e Bisio indo do arco ao pizzicato, ao mesmo tempo ou de forma alternada, criando texturas por vezes cortantes.

As novidades de Bisio têm ainda um terceiro capítulo, que está saindo nesta semana, também em quarteto, mas com parceiros e proposta distintos dos de “The Sweet Spot”. Sob seu comando, este outro grupo traz Bisio acompanhado de Mat Maneri (viola), Karl Berger (vibrafone) e Whit Dickey (bateria). MBefore (Tao Forms) foi registrado na mesma época dos outros dois novos discos, tendo sido captado no Clubhouse Studio (NY) em março de 2021. O álbum oferece nove temas, sendo a maioria composições de Bisio (duas, de Berger) e uma revisitação ao standard “I Fall in Love Too Easily”. É uma música de vibração camerística, com fantástica interação entre contrabaixo e viola (que já se revela logo na abertura do álbum), com o vibrafone sutil de Berger soltando pinceladas no ar, enquanto a bateria delicada e veloz de Dickey cria as camadas que dominam o espaço, por entre as quais os instrumentos vão avançando. Se a ideia não é a de protagonismos, há pontos de destaque a cada um aqui e ali, como o preciso solo de baixo no tema de abertura ou as belas linhas melódicas salpicadas por Berger em “Cristal Fire”. Sobre o trabalho, diz o próprio Bisio: “MBefore isn’t about four individual soloists or a front line with a rhythm section. The album is about the ensemble and its collective consciousness – it’s about the group aesthetic, with the resulting sound having a transparent quality. With vibes and viola instead of, say, saxophone and trumpet, that means there’s a sonic clarity, even a kind of sweetness. That clarity and transparency allows the contrapuntal quality of the music to really come out, so that you can hear everyone’s lines at once – and the subtle harmonies created by the crossing of those individual lines”.

 

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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)