CHARLES MINGUS: 100 Anos


No centenário do brilhante baixista e compositor Charles Mingus, uma oportunidade para revisitar e se deliciar uma vez mais com sua obra...

 


Não me importa o que o mundo vê, estou tentando apenas descobrir como deveria me sentir em relação a mim mesmo. Não posso mudar o fato de que todos estão contra mim, que não querem que eu seja um sucesso, Charles Mingus*

 

Por Fabricio Vieira

 

Revolucionário, lendário, gênio. Se tais predicativos não tivessem perdido sua potência devido ao uso inadequado e indiscriminado a que foram submetidos, eles certamente bem sintetizariam quem foi Charles Mingus. O contrabaixista e compositor norte-americano, nascido há exatos 100 anos, em 22 de abril de 1922 em Nogales (Arizona) e criado em Los Angeles, fez de sua trajetória uma das mais impactantes e relevantes da história do jazz. Suas ideias inovadoras, a maestria empunhando o baixo e a inventividade de suas composições fizeram com que Mingus deixasse uma obra marcada com alguns dos mais brilhantes registros jazzísticos já realizados. Teve a vida interrompida com apenas 56 anos, em janeiro de 1979, por uma terrível doença degenerativa – mas em cerca de duas décadas, construiu uma música genialmente inovadora como poucos.


Tendo começado a tocar contrabaixo profissionalmente ainda na década de 1940, Mingus levaria um tempo razoável para sedimentar seu espaço e poder apresentar suas verdadeiras ideias (algo como o que ocorreu com seu contemporâneo John Coltrane, com quem infelizmente não deixou nenhum registro). Em 30 de janeiro de 1956, no Audio-Video Studios, Nova York, Mingus registrou sua primeira obra-prima, Pithecanthropus Erectus, apresentando quatro temas, três seus e o standard “A Foggy Day”. A faixa-título sintetiza suas inovadoras concepções avant-garde, explorando de forma então nunca feita a improvisação coletiva, em um resultado que poderíamos chamar de proto-free, de uma intensidade ainda inédita no jazz. Mingus era um incrível compositor, como mostraria ainda naquela década no clássico “Ah Um”, de 1959, que traz peças imortais como “Goodbye Pork Pie Hat” e “Fables of Faubus”. E seu um pé seu estava no avant-garde, o outro estava na tradição: sua música não existiria como tal sem o blues, o jazz tradicional, o gospel – à sua forma, deixaria isso transparecer nos geniais “Blues & Roots” e “Oh Yeah”. A associação de Mingus com Eric Dolphy (1928-1964) no início da década de 1960 ajudou a levar sua música às fronteiras do free jazz (que ele preferir não romper), deixando faixas desconcertantes como “Folk Forms No.1”, captada em outubro de 1960, uma das mais demolidoras peças feitas à época, com incríveis duelos de sax alto e trompete. Uma série de obras-primas (não é exagero o termo aqui) se sucederam por quase uma década a partir de Pithecanthropus Erectus. Mingus foi um artista que sempre buscou fazer seus caminhos, sempre lutando pela liberdade de sua arte; em 1952, insatisfeito com a exploração das grandes gravadoras, montou seu próprio selo, o Debut, algo incomum à época. Em 1960, seria a vez de, ao lado de Max Roach, organizar um evento independente, o Newport Rebels Festival, como resposta ao rumo comercial tomado pelo tradicional Newport Jazz Festival. Mingus sempre esteve atento ao papel da arte como veículo de protesto e conscientização sócio-política; sua composição “Fables of Faubus”, crítica mordaz ao racista governador do Arkansas Orval Faubus, teria sua letra censurada pela Columbia quando gravada pela primeira vez, em 1959. “Oh, Lord, don't let 'em shoot us!/ Oh, Lord, don't let 'em stab us! Oh, Lord, no more swastikas! Oh, Lord, no more Ku Klux Klan!/ Name me someone who's ridiculous, Dannie. Governor Faubus!”.  

Sua última década de vida pode ser menos impactante em termos de produção musical, mas não deixou de trazer momentos elevados, como os álbuns “Changes” e “Let My Children Hear Music”. É desta última etapa de sua trajetória que a gravadora Resonance Records “raspou o tacho” para trazer a seus fãs algo inédito na celebração do centenário de Charles Mingus. The Lost Album From Ronnie Scott's traz gravação nunca lançada antes oficialmente com apresentações completas realizadas por Mingus e seu sexteto no Ronnie Scott’s Jazz Club, em Londres, nos dias 14 e 15 de agosto de 1972 – a gravação estava programada para sair em 73 pela Columbia, mas, com o rompimento do músico com a gravadora, isso nunca aconteceu. Ao lado do baixista estão os músicos Charles McPherson, saxofonista que tocou em diferentes oportunidades com ele, Jon Faddis (trompete, à época com apenas 19 anos), Bobby Jones (tenor, clarinete), John Foster (piano) e Roy Brooks (bateria). O álbum, que sai em vinil triplo e CD, traz oito temas, alguns bastante longos, como a meia hora de “Orange Was The Color of Her Dress, Then Silk Blues” e os 35 minutos de “Fables of Faubus”. Um empolgante registro para celebrar à altura o centenário de Charles Mingus.

  

*5 Álbuns Essenciais de CHARLES MINGUS*

 

Pithecanthropus Erectus

Atlantic (1956)


Acompanhado de Jackie McLean (sax alto), J.R. Monterose (tenor), Mal Waldron (piano) e Willie Jones (bateria), Mingus entrou em um estúdio em janeiro de 1956 e saiu de lá com quatro peças. A faixa Pithecanthropus Erectus, de sua autoria, leva a improvisação coletiva a campos ainda inéditos, com uma ruidosa energia raras vezes alcançada até aquele momento.  



Mingus Ah Um

Columbia (1959)


Charles Mingus sedimenta aqui o que vinha demonstrando nos anos anteriores, que era um dos grandes compositores de sua geração. Com arranjos que vão à perfeição, abre com a contagiante “Better Git It In Your Soul”, segue pela imortal “Goodbye Pork Pie Hat” (uma das mais belas melodias da história do jazz) e alcança o esplendor com “Fables of Faubus”.  



Oh Yeah  

Rhino/Atlantic (1962)


Acompanhado do genial Rahsaan Roland Kirk, Mingus volta a destacar suas heranças sonoras, às quais adiciona elementos avant-garde em uma combinação única - desta vez, sentado ao piano e explorando vocalizações bluesy. “Hog Callin’ Blues” abre o álbum de forma fulminante e “Passions of a Man” mostra uma outra face das inovadoras ideias de Mingus.

 


The Black Saint and the Sinner Lady

Impulse! (1963)


Composição orquestral que não renega sua herança ellingtoniana, esta grande obra dividida em quatro partes foi pensada para ser degustada sem interrupções e acompanhada de dançarinos. Com baixo, piano, bateria e uma ampla sessão de sopros (destaque aos solos de  Charlie Mariano), a ambiciosa obra foi uma das primeiras a explorar técnicas de overdubbing no jazz, com resultado fascinante.

 


The Great Concert 

Prestige/America (1964)


Em turnê pela Europa, Mingus estava acompanhado de um de seus grupos mais incríveis, com os saxofonistas Eric Dolphy e Clifford Jordan, o pianista Jaki Byard e seu fiel escudeiro Dannie Richmond nas baquetas. Com amplos espaços solistas, versões matadoras de “Fables of Faubus” (com Dolphy no clarinete baixo) e “So Long Eric”. Mingus ao vivo em sua plenitude.  

 

 *In: “Saindo da Sarjeta: a autobiografia de Charles Mingus”, Jorge Zahar Editor. 

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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)